domingo, 12 de abril de 2015

A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO - VI - FOI QUANDO NENZÃO CHEGOU EM CANUDOS E VIU O CONSELHEIRO!


 

 


Foi um dia - tardezinha, quase noite - que chegamos – Estevo, na frente, montado em seu cavalo selado, com o corpo tão ereto de elegância que parecia mesmo que tinha engolido uma madeira berimba, depois vinham as quatorze cabeças de novilhos e os cabritos e lá mais atrás eu, montado em pelo no cinza jegue - a Canudos: e como era Canudos?; nos imediatos enxerguei a vila como um amontoado de casebres e marrons taperas que escreviam desenhos de tortas ruelas, nas janelas vincados rostos espiando e nas sinuosas e estreitas ruelas amontoados de gentes: de início o que mais enxergava ali eram velhos e velhas de rostos enrugados, magros, as mulheres com os cabelos presos em tranças no alto da cabeça e os velhos homens com cabelos e barbas compridos, maltrapilhos, pés desnudos – um ou outro de calçado com alpercatas de couro - dedos e unhas sujos e os calcanhares calejados, grossos de caminhar descalço pelas caatingas da vida. A chegada à vila de Canudos aboiando as novilhas e os cabritos – mistura para almoços e jantares – alegrou aqueles todos rostos enrugados e os mais corajosos atreviam perguntas: a vontade de uma lasca de carne no prato fazendo perder a paciência de esperar as repostas que sempre chegam – boas ou nãos -: e quando é que se vai matar estas gordas novilhas?; apreciaria muito ajudar no desossamento, tenho prática nisso, tanto em matar quanto em desossar; outro velho, desdentado, manquitolando: pois eu garanto que tenho ciência em esticar o couro, salgar e deixar no sol para curtir inté ficar bom mode fabricar coletes; e Estevo: quem vai dar as ordens de dia e hora de matar é o Conselheiro, é ele que via isso resolver; e Estevo abria caminho nas estreitas ruelas de Canudos e eu seguia cuidando das quatorze novilhas e dos cabritos que – assustados, tanta gente – obravam o tempo todo, sujando a rua com suas bostas pretas e as crianças – poucas – faziam estripulias querendo puxar as novilhas pelos rabos e tentando montar a cabalo nos cabritos: fora daqui moleque do capeta, berrava bravo Estevo espantando com tapas – dados no ar - iguais aos que se usa para espantar muriçoca e os moleques fugiam e voltavam – curiosos – e os mais velhos seguiam aquela procissão de novilhas e cabritos até a porta da branca igreja, cruz no alto, janelas pintadas de azul, coberta de marrons telhas de barro, linda igreja, imponente meio aos casebres e as taperas da vila e Estevo grita para Bentinho, que orava – rosário comprido nas mãos - na porta da igreja: boas tardes, Bentinho!, podia fazer o obséquio de chamar o Conselheiro?; Conselheiro está a rezar pelo bem de nossas almas, já vou até ele e volto com notícias amigo Estevo; e percebi, naquela hora, que Estevo era muito respeitado por todos, enxerguei isso no olhar do Bentinho que era o grande ajudante do Conselheiro.

E, depois de longa, silenciosa e calma espera, se aproxima, guiado pelo Bentinho o Conselheiro: alto demais em sua magreza, cabelos compridos, barba caindo nos queixos, olhar dirigido ao infinito, seguros passos largos definindo seu andar, roupas esgarçadas, no peito uma cruz de madeira e o rosto marcado por rugas, profundas rugas, rugas desenhadas pela sua alma, alma presa dentro do corpo e aquele rosto enrugado, marcado de feroz serenidade lembrou o rosto de minha mãe que uma noite, à luz da lamparina, disse: sabe, filho meu, que uma ofensa, uma maldade com a alma da gente é igual quando se bate – com martelo de ferro - um prego em uma taboa: fura e mesmo que adespois se retire o prego da taboa ele deixa ali um sinal que fica, escurece o furo, marcando a magoa para os sempres; e Estevo – depois de pedir benção - contou ao Conselheiro do presente do Major Santana: as quatorze novilhas e dos cinco cabritos e não enxerguei sorriso na boca do santo homem ali na nossa frente, quieto, parecia desgrudado deste mundo e me afligiu: será que emudeceu, perdeu a fala, por castigo de deus? será, mesmo, que até um santo como o Conselheiro tem lá suas rusgas com o grande senhor que desconfia de tratos dele com o Belzebu?; quando finalmente falou saiu uma voz rouca, seca, dos fundos do peito: agradeço em deus o adjutório do Major Santana; acerte Estevo, você mais o Bentinho e o Pajeú e mais o Chiquinho e mais o Norberto a hora e o dia da morte e a distribuição das carnes das vacas para o pobre povo de minha cidade, cidade de deus, e de antemão aviso: desse alimento não careço, minha fome é outra; e o Conselheiro virou de costas e caminhou para dentro da igreja para terminar suas orações e preparar suas prédicas, e os velhos e as velhas e mais o Lalau e o João da Mata que acabavam de chegar se juntaram para um cantar:

“D. Sebastião já chegou

E traz muito regimento

Acabando com o civil

E fazendo o casamento!

 

O anti-Christo nasceu

Para o Brasil governar

Mas ah! Está o Conselheiro

Para dele nos livrar.

 

Visita nos vem fazer

Nosso rei D. Sebastião.

Coitado daquele pobre

Que estiver na lei do cão” (1)

(1)  In OS SERTÕES, Euclides da Cunha.

 

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