Foi um dia - tardezinha, quase noite - que chegamos –
Estevo, na frente, montado em seu cavalo selado, com o corpo tão ereto de
elegância que parecia mesmo que tinha engolido uma madeira berimba, depois
vinham as quatorze cabeças de novilhos e os cabritos e lá mais atrás eu,
montado em pelo no cinza jegue - a Canudos: e como era Canudos?; nos imediatos
enxerguei a vila como um amontoado de casebres e marrons taperas que escreviam desenhos
de tortas ruelas, nas janelas vincados rostos espiando e nas sinuosas e
estreitas ruelas amontoados de gentes: de início o que mais enxergava ali eram
velhos e velhas de rostos enrugados, magros, as mulheres com os cabelos presos
em tranças no alto da cabeça e os velhos homens com cabelos e barbas compridos,
maltrapilhos, pés desnudos – um ou outro de calçado com alpercatas de couro - dedos
e unhas sujos e os calcanhares calejados, grossos de caminhar descalço pelas
caatingas da vida. A chegada à vila de Canudos aboiando as novilhas e os
cabritos – mistura para almoços e jantares – alegrou aqueles todos rostos enrugados
e os mais corajosos atreviam perguntas: a vontade de uma lasca de carne no
prato fazendo perder a paciência de esperar as repostas que sempre chegam –
boas ou nãos -: e quando é que se vai matar estas gordas novilhas?; apreciaria
muito ajudar no desossamento, tenho prática nisso, tanto em matar quanto em desossar;
outro velho, desdentado, manquitolando: pois eu garanto que tenho ciência em esticar
o couro, salgar e deixar no sol para curtir inté ficar bom mode fabricar coletes;
e Estevo: quem vai dar as ordens de dia e hora de matar é o Conselheiro, é ele
que via isso resolver; e Estevo abria caminho nas estreitas ruelas de Canudos e
eu seguia cuidando das quatorze novilhas e dos cabritos que – assustados, tanta
gente – obravam o tempo todo, sujando a rua com suas bostas pretas e as
crianças – poucas – faziam estripulias querendo puxar as novilhas pelos rabos e
tentando montar a cabalo nos cabritos: fora daqui moleque do capeta, berrava
bravo Estevo espantando com tapas – dados no ar - iguais aos que se usa para
espantar muriçoca e os moleques fugiam e voltavam – curiosos – e os mais velhos
seguiam aquela procissão de novilhas e cabritos até a porta da branca igreja,
cruz no alto, janelas pintadas de azul, coberta de marrons telhas de barro,
linda igreja, imponente meio aos casebres e as taperas da vila e Estevo grita
para Bentinho, que orava – rosário comprido nas mãos - na porta da igreja: boas
tardes, Bentinho!, podia fazer o obséquio de chamar o Conselheiro?; Conselheiro
está a rezar pelo bem de nossas almas, já vou até ele e volto com notícias
amigo Estevo; e percebi, naquela hora, que Estevo era muito respeitado por
todos, enxerguei isso no olhar do Bentinho que era o grande ajudante do
Conselheiro.
E, depois de longa, silenciosa e calma espera, se
aproxima, guiado pelo Bentinho o Conselheiro: alto demais em sua magreza,
cabelos compridos, barba caindo nos queixos, olhar dirigido ao infinito,
seguros passos largos definindo seu andar, roupas esgarçadas, no peito uma cruz
de madeira e o rosto marcado por rugas, profundas rugas, rugas desenhadas pela
sua alma, alma presa dentro do corpo e aquele rosto enrugado, marcado de feroz
serenidade lembrou o rosto de minha mãe que uma noite, à luz da lamparina,
disse: sabe, filho meu, que uma ofensa, uma maldade com a alma da gente é igual
quando se bate – com martelo de ferro - um prego em uma taboa: fura e mesmo que
adespois se retire o prego da taboa ele deixa ali um sinal que fica, escurece o
furo, marcando a magoa para os sempres; e Estevo – depois de pedir benção - contou
ao Conselheiro do presente do Major Santana: as quatorze novilhas e dos cinco
cabritos e não enxerguei sorriso na boca do santo homem ali na nossa frente,
quieto, parecia desgrudado deste mundo e me afligiu: será que emudeceu, perdeu
a fala, por castigo de deus? será, mesmo, que até um santo como o Conselheiro
tem lá suas rusgas com o grande senhor que desconfia de tratos dele com o
Belzebu?; quando finalmente falou saiu uma voz rouca, seca, dos fundos do peito:
agradeço em deus o adjutório do Major Santana; acerte Estevo, você mais o
Bentinho e o Pajeú e mais o Chiquinho e mais o Norberto a hora e o dia da morte
e a distribuição das carnes das vacas para o pobre povo de minha cidade, cidade
de deus, e de antemão aviso: desse alimento não careço, minha fome é outra; e o
Conselheiro virou de costas e caminhou para dentro da igreja para terminar suas
orações e preparar suas prédicas, e os velhos e as velhas e mais o Lalau e o
João da Mata que acabavam de chegar se juntaram para um cantar:
“D. Sebastião já chegou
E traz muito regimento
Acabando com o civil
E fazendo o casamento!
O anti-Christo nasceu
Para o Brasil governar
Mas ah! Está o Conselheiro
Para dele nos livrar.
Visita nos vem fazer
Nosso rei D. Sebastião.
Coitado daquele pobre
Que estiver na lei do cão” (1)
(1) In
OS SERTÕES, Euclides da Cunha.
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