quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO – I – OS INÍCIOS!

2009 Bahia 034

Caatingas, serrados e agreste: meu mundo; os horizontes, longínquos, que emolduraram – tal qual a dourada e rococó moldura do retrato em preto e branco, margeando e prendendo dentro dela um austero e severo velho de enormes bigodes, olhos negros amendoados, lábios finos, cabelos negros escorridos – minha vida teve, nos de sempre, páramos agrestes, céu de poucas nuvens e sol forte, ardente, torrando o chão de áridas terras, vincando, enrugando e bronzeando a pele amarela que ganhei da mãe – uma índia da tribo dos tapuias -; minha vida? uma vida mais de vaqueiro a andar sempre - como um mascate – mas meio sem rumo, sem precisão de retornar ás antigas casas, um sempre andar, andar, a cada dia, a cada ano, nas secas e nas invernadas: carência de sair à busca pastos cada dia mais distantes, os tão necessários pastos com ramas e matos para alimentar os gados do patrão, dar ao gado força - ao menos - o suficiente para que as brancas vacas de longos chifres, tetas pequenas, dessem crias o mais poder, pois de cada quatro crias uma é minha, e minhas vacas e meus bezerros e meu cavalo e meu jegue precisando de pasto e eu a cada ano indo mais longe, me afundando sertão afora à busca de menos pobres e raspados pastos. O sal: o sal comprava do patrão; cada cabeça de gado que sobrevivia às durezas da caatinga aumentava a carência de sal (conheci um vaqueiro mineiro, vindo dos lados do Jequitinhonha, que pronunciava “sali” e não sal, “bassoura” ao invés de vassoura e “meli di abeia” e não mel de abelha, muito amigo, virou meu compadre, compadre Bié, que gostava de contar, com seu palavreado musical, histórias de assombração e da mula sem cabeça que, segundo Bié, existiam e ainda existem, em grande número no vale do Jequitinhonha) aumentava mais ainda a dívida com o patrão, seu Ramalho que contava - mais quando bebia umas pingas era que o patrão soltava a língua, no normal era de poucas falas, calado, rídico, apenas vez ou outra um “tá tudo bão com as vacas?”, “então tá bom” – que era descendente direto do bravo João Ramalho, português safado de esperto, casado em regime de temericó com mais cinquenta índias, não sei como dava conta de tantas, semelhava, este português João Ramalho, ao boi inteiro no pasto de tantas vacas ou do galo no terreiro de muitas galinhas, e eu pensava, quando seu Ramalho contava essas histórias, e na maioria das vezes concluía - comigo mesmo, em silêncio sem comentar – que isso, de ficar casado com mais de cinquenta índias era igual as histórias de mula sem cabeça do amigo Bié: não passa de invencionice da mente humana, nada de fato ocorrido de verdade, onde já se viu uma mula sem cabeça, por onde ia conseguir enxergar? pelos buracos traseiros, sujos de cocô ou de amarela urina?, pura invenção, nada real, mas continuando o que antes falava: a cada ano que passava, menos eu via o patrão e suas histórias; vez ou outra, por puro acaso a gente se encontrava nas vaquejadas de junho ou julho: bom dia, Nenzão!; e eu, cerimoniosamente retirava o chapéu de coro da cabeça: bom dia, meu patrão, senhor Ramalho!; e quantas cabeças nós temos agora Nenzão?; pois acho que mais de cem, meu patrão, coisa de cento e oito se não errei nas contas; errou não, Nenzão, o Quinzinho recontou as cento e oito que você criou que se juntaram a outros e mais outros tantos e se constituiu uma grande boiada – minha – que Quinzinho e mais uma comitiva de vaqueiros está levando para vender na capital e comprar sal e remédios; careço de sal, meu patrão: os pastos cada vez mais longe, poucas aguadas e é o sal segura a boiada perto dos currais para dar leite e lamber as crias; Quinzinho vai trazer sal e você paga com cabeças de gado, o sal anda cada dia mais caro, uma carestia infernal, estamos em tempo de vacas magras, vaqueiro Nenzão; e então a gente se separava na festança da vaquejada, vaqueiros e peões de um lado os patrões do outro, eles falando de políticas e entre nós se contava de vacas, de mulheres, da seca brava e se contava histórias acontecidas ou não e se escutava os cantadores que ralhavam a viola afinada e com a garganta molhada de pinga, bucho cheio de farinha e rapadura que cantavam:

“Tornou a dizer de novo

Ali aos seus camarada:

- Boi e vaca que morrer

Hoje, de perna quebrada,

Tudo isso é para comer

A mim não se deve nada.

Ficou o povo animado

Com as palavras do patrão

- Vamo agora comer muito

Farofa, carne e pirão...

Até eu estive lá

Também dei meu empurrão.” (*)

(*) Luís da Câmara Cascudo, Vaqueiros e Cantadores.

domingo, 9 de novembro de 2014

ESCREVER E CAMINHAR 6

 

Em 2008 um grupo de amigos resolveu criar um BLOG para comemorar os 40 anos do ano de 1968 – ano de péssimas memórias, ano do recrudescimento da violência imposta pelos generais de plantão responsáveis pelo golpe militar de 1964 - e me interessei, de imediato, em participar; tive, naquele momento, o apoio – muito grande - e o estímulo de amigos no sentido de que minhas limitações no uso da internet não bloqueassem ou dificultassem minha participação no ARQUIVO 68, sugestivo nome do blog. Mas o que importa aqui, neste relato, é que àquela época já havia escrito algumas histórias e algumas delas, mero acaso, remetiam às vivências do ano de 68 e naquele ano – 2008 -, nascimento do ARQUIVO 68, andava a experimentar um período de profunda e generalizada descrença, vivia um momento de forte niilismo e consequente péssima sensação de descrença nas possibilidades do HOMEM em superar suas injustiças e suas desumanidades.

E foi então, vivendo o estado de espírito acima, que iniciei a redação das histórias a serem postadas no ARQUIVO 68 e ao redigi-las ou revisá-las percebi que algo de novo ocorria comigo: tive, enquanto trabalhava nas histórias, a consciência de que o escrever me libertava das “garras” do niilismo, da descrença e enquanto escrevia voltava a crer nas possibilidades de reação às misérias humanas, me rejuvenescia (pode isso, aos 65 anos? pode, sim) e lutava – enquanto escrevia – tal como havia lutado, quando jovem, em 1968. O escrever me transforma: creio em mim, no homem, na luta e mais que isso: o escrever passou a integrar a minha vida, dando a ela mais sentido e saúde. Penso que vale a pena abrir aqui um parênteses: havia interrompido a escrita destas memórias há semanas em função de viagem a São Paulo para acompanhar minha esposa internada em hospital para tratamento de problema cardíaco e como sabia, de antemão, que o período de internação seria longo comprei o pesado e “volumoso” A interpretação dos sonhos, do Freud, para fazer com que as horas corressem mais depressa e – surpreso – encontro meio aos sonhos e ás teorias do velho Freud esta passagem, na verdade, uma carta do filósofo-poeta – assim Freud o chama - Schiller ao amigo Körner: ...“A razão de tua queixa, segundo me parece, se encontra na coação que o teu entendimento impõe à tua imaginação... Não me parece bom, além de desvantajoso para as obras criativas da alma, quando o entendimento examina com demasiada severidade, já nos portões, por assim dizer, as ideias que chegam...” e foi aqui no hospital, anos e anos após ter consciência do prazer que o escrever me proporciona, que fui encontrar o “suporte” teórico ao que instintiva e solitariamente havia ocorrido em minha alma ao me por a escrever; e fecha o parênteses.

Então... então, claro, a partir de 2008, entusiasmado, passei a fazer do ato de escrever um exercício diário – nem sempre tão diário assim - de sensibilização e de crescimento no processo de humanização e de busca da integração e de entrega interior ao belo, às causas e aos caminhos que objetivam o aperfeiçoamento e o desenvolvimento. E isso tudo comigo quieto: o eu comigo mesmo e o escrever oferecendo mais sentido à vida, o ato de escrever, de rever e reescrever cada palavra, cada parágrafo, da tentativa de descobrir a equação que soluciona o final de uma história e do pensar uma nova história se tornando momentos de felicidade, me fazendo mais humano, mais comprometido e, importante, mais feliz!

E plagiando o professor Pasquale: É isso!

Vamos, então, à crônica prometida ao jovem jornalista Anselmo.

Estava, salvo engano, no sexto dia de caminhada quando nuvens começaram a cobrir o céu que até aquele dia de caminhada vivia um azul infinito e belo, seu constante anil cobrindo as montanhas e vales e rios e riachos até aquele sexto dia quando, já de manhã, claras nuvens cobriram o sol até então imponente - e senhor – com seus raios queimando as costas e os braços e os pastos e as plantações pondo tudo a secar: os rios como que se desnudando e mostrando pedras antes não vistas, volumosas e barulhentas cachoeiras se transformando em magros fiapos d’água a pingar em negras pedras, o nariz a sangrar; mas... tem sempre um mas: o caminho pelo qual andava naqueles dia era de “roxas” terras - de bonitos cafezais - que quando encharcadas pela água da chuva se transformam em vermelhas e grudentas piçarras que colam no solado das botas aumentando absurdamente seu peso, impedindo o caminhar; e também tem outra coisa: além do desconforto do caminhar sob chuva pelo peso das botas e risco de escorregar, o que ocorre – de fato – é que o mal estar que sinto ao caminhar sob chuva é o ancestral medo de raios e trovões, muito presentes naquela região. E daí? Daí que apesar da importância de boas e molhadas chuvas na região, torcia – escondido de mim mesmo - para não chover e a covardia egoísta floresceu quando, à noite, acessei o clima tempo – em uma lun-house que lembrava um vulcão tanta fumaça de cigarro - e ao constatar que a previsão era – em toda aquela semana - apenas nuvens e zero de chuva, vergonhosamente, fiquei feliz.

Continuando: penso já ter confessado que o caminhar faz deslizar em minha memória - como em um sonho - a infância! Paisagens, cheiros, silêncios e cantares e voos de pássaros e de velhas casas brancas com suas janelas azuis...

Do alto de uma pequena montanha se via, lá embaixo, o sinuoso o vale, a estrada vermelha de chão batido com seu solo socado e moldado por rodas de pesados e lentos caminhões e carrocinhas que transportam galões e galões de leite; mais ao fundo do vale a antiga, velha e imponente casa de fazenda, à sua frente – como em um desenho - o curral e suas vacas ruminando, descansando e os bezerros socando forte as tetas da mãe à busca de leite, no ar o forte e quente cheiro de curral; pouco mais abaixo – em direção ao sul - as altas e verdes árvores ladeando a estrada e protegendo do sol a casa branca e seu telhado vermelho e suas janelas azuis descoradas e mais a frente à pequena e delicada ponte que atravessa o córrego de águas claras, transparentes; deve ser bom de pescar – vara de bambu e minhoca de isca - prateados e espertos lambaris do rabo vermelho, e ao me aproximar passei a ouvir o barulho da correnteza, córrego pedregoso com forte correnteza o que me leva a concluir que além dos lambaris, sob as negras pedras formando as locas – moradia das escuras gambevas, dos amarelos bagres e dos cinza escuros mandis e manditingas; e eu ia assim caminhando distraído, pescando e fisgando, ágil - em minha imaginação - lambaris e gordas gambevas quando vi – rodeado por dois cachorros vira latas - um senhor gordo e alto, andava com as dificuldades impostas pela idade, o bastão de guatambu ajudando o equilíbrio; o cão late nervoso e o velho gira bravo o bastão de guatambu, berra alto, voz forte e rouca ameaçando arrebentar os ossos do vira-lata cor de vinagre: sai Duque! cachorro desgraçado, não me obedece, mais não? então leva cacete seu cão de merda; e vai sacodindo o bastão de guatambu no ar tentando, sem sucesso, quebrar as costelas do Duque, que continua a ganir, dentes brancos à mostra, e eu – medroso - me preparando para enfrentá-lo com meu cajado de bambu, a adrenalina nas últimas e dizem que o cachorro percebe o homem que tem medo pelo cheiro da adrenalina que exala, será mesmo meu deus do céu?, não devia ter tanto medo assim, nasci na roça, acostumado com cachorros, e então – felizmente - os berros e as maldições jogadas ao ar pelo senhor Mário - o gordo e velho senhor dono da fazenda de casa branca e janelas azuis descoradas, moreno, barba branca de dois ou mais dia, paletó preto, camisa de flanela, chinelos havaianas nos pés - deram resultado, o Duque fugiu com o rabo enfiado entre as pernas, latindo chiado, vez ou outra criava coragem e voltava a cabeça em direção ao velho e mostrava os olhos tristes – como que pedindo perdão - pela brabeza do dono que aliviado com a obediência do cão: bom dia! este desgraçado do Duque vez ou outra teima em não me obedecer e eu tenho que meter o cacete nas costelas dele, mas o senhor vai indo para Aparecida?; sim, estou indo para lá; posso andar um pouco com o senhor?; claro que sim, a gente aproveita e conversa um pouco; quer água de mina? tem uma mina d’água logo ali, é a mina que buscamos água para uso na cozinha e para beber, água pura que nasce ali embaixo das pedras do morro; vamos sim até a mina. Abrindo um parênteses: nessas caminhadas pelas pequenas cidades de Minas se percebe claramente o orgulho das pessoas da região com a qualidade das águas das minas que brotam aqui e acolá: elogiam suas águas frescas, claras e falam do prazer em beber água na concha das duas mãos, sugando e molhando o peito, o que ali, naquele dia frio não era de todo agradável e fecha-se o parênteses. O senhor mora aqui?; sim moro naquela casa ali e o senhor de onde vem? Venho de Salvador; nossa que longe, veio andando pé de lá?; não, venho caminhando desde Alfenas; desde Alfenas, tá louco, longe, tenho parentes por lá, um irmão e uns tios; achei a cidade bem bonita, grande; e bebíamos água e parlamentávamos quando fomos interrompido pelo ganir do Duque: latia nervoso ao mesmo tempo ciscava o chão em volta de uma moita de gabirobas, e no espaço entre um latido e outro se ouvia, do meio da moita de gabiroba o chiiiii...nervoso: é cobra, é o chiado do guizo de cascavel, com a seca brava elas vêm a procura d’água, melhor ter cuidado, cobra venenosa; rápido, medroso, meti a mochila às costas e junto com seu Mário que esqueceu o doloroso reumatismo e andou célere para a estrada, deixamos Duque às turras com a cascavel e já distantes, seguros, sentamos no barranco da estrada: eu ainda ajeitando melhor a mochila e seu Mário se recompondo da rápida fuga, se põe a contar: minha filha, quando tinha sete anos foi mordida por uma cascavel e eu tive que ir com ela para a cidade em busca de socorro e o médico da Santa Casa receitou sete injeções e falou que a menina podia estar salva, mas que eu cuidasse bem dela porque a doença do veneno poderia voltar a aparecer depois de sete meses, e caso não aparecesse logo aos sete meses que poderia voltar depois de sete anos e, aí sim, caso não aparecesse – depois de sete anos – é que se poderia considerar minha filha curada de vez da doença e foi isso que aconteceu, ela está viva, mãe de sete netos, e foi depois daquilo, quando a cascavel mordeu minha filha, que aumentou mais o meu medo de cobra e se uma cobra cascavel tivesse me picado quando criança eu seria hoje um homem morto, naqueles tempos não tinha recursos, nem médicos, e é acho que é por isso que muito cuidado e ando sempre a olhar o chão, não enfio a mão para catar gabiroba de medo de cobra; e o Duque continuava ainda às turras com a cascavel e o seu Mário voltou aos seus berros e a lançar pragas no cachorro: sai seu desgraçado, quer morrer seu puto? – e enquanto berrava atirava – desajeitado - pedras no cachorro e na cascavel seu Mário contou que as cascavéis moram mais ao fundo no cerrado e que aquela que o Duque queria morder tinha um guizo de sete gomos, era então uma cobra já criada com sete anos de idade, cada guizo demora um ano para crescer. Até mais obrigado pela água da sua mina; até logo, boa viagem e chegando a Aparecida, reze por nós; sim, rezarei.

Caminhei por mais três horas e cheguei faminto à pequena cidade – me foge agora o nome: acho a pousada, o banho, onde tem um restaurante com boa comida? logo ali, vire a direita depois de dois quarteirões da praça, tem um bom; muita fome e no pequeno restaurante a memória da infância reativada: comi moganga, chouriço, torresmo, couve, frango com ora-pro-nobis...!

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

ESCREVER E CAMINHAR–5 -

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Há dois anos estive em Portugal e, saindo de Porto, fiz o Caminho Português para Santiago de Compostela: coisa de uns treze ou quatorze dias de caminhada, mochila às costas, andando – devagar para sentir os cheiros, os ares - quilômetros e quilômetros por milenares estradas romanas, colhendo doces e negros figos no pé, apreciando o estrelado céu e procurando, sem muito sucesso, a estrela Vênus e a constelação do Cruzeiro do Sul naquele outro ponto da abóboda celeste (e já que o assunto é escrever e caminhar é importante a expressão Abóboda Celeste, título de uma composição que Dona Tarsila escreveu na lousa com data marcada para a entrega e eu deixei para a última hora e por isso perdi o treino com o time de futebol cuidando da redação da Abóboda Celeste que, para mim, foi um marco: percebi, ao término da redação, que poderia escrever sobre garrafa, pedra, torres, montanhas). De volta de Santiago de Compostela, em Lisboa, comprei o último livro do Vargas Llosa – O herói discreto – com direito a pequeno um carimbo na primeira página: Bertrand Livreiros – Este livro foi comprado na livraria mais antiga do mundo, e sempre que reiniciava a leitura do livro dava, antes, uma passadinha e re-relia o carimbo: chegando ao Brasil vou contar para o meu neto, acho importante; mas o que quero mesmo contar do livro é uma frase do filho Fonchito ao pai Rigoberto: “nunca é tarde para isso, papá – retorquiu o miúdo . – Ainda tens muito tempo, podes dedicar-te àquilo de que realmente gostas. Agora estás reformado e tens toda a liberdade do mundo para fazer o que quiseres.” Vou escrever as duas ou três próximas frases com cuidado redobrado, mas mesmo assim, antecipo: por favor, não as entendam como uma apologia à pobreza e muito menos como possível desculpa pela não condução da minha vida tal como poderia tê-la feito; então vamos lá: sou o décimo filho de uma família de roceiros – colonos e depois meeiros em lavouras de café – e fui o único da família que teve a oportunidade de estudar; os demais labutavam nas roças de café ou de arroz ou de milho de sol a sol, e só chegaram, quando muito, ao segundo ou terceiro ano - alfabetizados em escolas rurais, fazendo contas de cabeça melhor que por escrito, enfim: bons e rudes irmãos, carinhosas irmãs, pai e mãe e todos - orgulhosos – sorriam quando aos sete anos me ouviam dizer vou ser professor. E porque toda essa história? o que tem é que nunca em meu interior – nunca, repito – foi aventada a possibilidade de viver de uma profissão artística e o mais interessante é que, penso agora, caso essa possibilidade tivesse ocorrido e – eu tivesse força e talento para tanto - teria me tornado artista plástico, vivendo a vida a desenhar e a redesenhar os periquitos e as igrejas barrocas que aprendi – ao colo do Tio Olímpio – quando criança, e que vivia a rabiscar em mesas, folhas de papel e grossas areias. Agora e viver da escrita, da escrevinhação pura e simples? jamais passou pela cabeça tal possibilidade, embora quando adulto e na ativa, sempre que frequentava Seminários e Cursos me via “reescrevendo” palestras dos doutores, dos altos executivos, transcrevendo fitas gravadas, “passando a limpo” aquele falatório todo, transformando a linguagem falada em um discurso escrito: imaginando que viveria bons momentos com aquele trabalho, nunca, realmente, executado. Então no dia a dia no trabalho - e em suas tensões - à prática e o exercício da escrita se resumiam a projetos, planos, propostas e quando resultado desta prática era “aprovada com certo louvor” eu colocava o mérito da avaliação aos componentes técnicos e objetivos que eu havia repassado para o papel, enfim, nunca vi – nestes trabalhos – uma possível habilidade na escrita. De fato, enquanto na ativa, escrevi umas cinco ou seis histórias, que mostrava – envergonhado - a poucos amigos. Outra hora conto desta minha mania – que tenho agora, depois de aposentado - de escrever: no momento vou cumprir o compromisso com o jovem e sorridente jornalista Anselmo e escrevinhar a prometida crônica.

“Fomos rever o poste.

O mesmo poste de quando a gente brincava de pique

E de esconder.

Agora ele estava tão verdinho!

O corpo recoberto de limo e borboletas.

Eu quis filmar o abandono do poste.” : Manoel de Barros, Poemas Rupestres .

Já disse, em outro escrito, que o caminhar pelos cerrados, atravessando pequenas cidades, subindo e descendo pela Mantiqueira, instiga o carinho com que carrego as memórias de minha meninice, mas cuidadoso, repito: memórias atravessadas pelo prisma da idade que alcancei, e assim, fico - a todo momento, enquanto caminho - revendo e vendo postes verdes, “cobertos de limo” , repletos de saudades, de inocentes amores, de medos e de orgulhos; quintais onde, meio a bananeiras e pés de mexerica enredeira se misturam galinhas e galos e pintinhos e patos e porcos e leitões e cachorros e, vez ou outra, uma mansa jacutinga e joãos de barro e sabiás laranjeira, todos à espera da comida, aguardando ansiosos e barulhentos – uma sinfonia, dodecafônica a ouvidos mais apurados, mais uma sinfonia – aguardando, repito, o “pritititititiii” da dona da casa, o milho debulhado no avental sendo jogado, esparramado pelo quintal – pri ti ti tiiiiiiiii- e todos avançam ao milho amarelo esparramado ao chão, meio a ciscos e cocôs e penas caídas – céleres e egoisticamente engolindo cada grão como se fosse o último, o quintal se transformando em uma flutuante nuvem de penas e pernas e pius e coins e que que qué; quieto, ainda sem latir, apenas o cachorro vinagre, atento ao olhar e à mão da dona que vai, a qualquer momento, apontar : é aquele ali Lulu e aí, sim, disparado, o esperto Lulu - acatando à ordem - avança e logo tem sob seu peso, preso, o frango carijó de oito meses que cacareja forte, esperneia de medo de ser cozido com quiabo, jiló e com comigo ninguém pode, a faca afiada primeiro abrindo caminho suave estradinha entre as penas do pescoço, e só depois – a estrada amarela meio as carijós penas - alcançar fundo a veia aorta, o pires embaixo para colher o sangue, misturado com o limão para não coalhar e virar galinha a cabidela.

Nas praças das pequenas cidades, quase sempre frente a uma igrejinha bem cuidada e de portas abertas para solitárias orações, os homens velhos se reúnem para conversas: chegam, quietos, em suas bicicletas e vão se reunindo aos outros dois que já chegaram, fazem uma roda à sombra do jacarandá mimoso que protege do sol suas as cabeças – todos cerimoniosamente vão retirando os chapéus, deixando à mostra os poucos cabelos brancos, molhados de suor – e falam de suas bicicletas, do jogo de ontem que viram na televisão e vão se acalmando, se acalmando e ficam de cotó, tiram do bolso traseiro da calça o canivete e o pedaço de fumo goiano, alisam a palha de milho na língua, conversam e picam o fumo, e esfarelam o fumo na concha da mão esquerda, acertam o fumo macerado na mão como uma pequena leira – ou lera? – que é cuidadosamente jogada na palha de milho, já bem alisada com as costas do canivete e com a baba da língua e pacientemente, dedos ágeis, enrolam o cigarro, e agora sim, o pito pronto, sentam confortável no bando de cimento, sob a sombra do pé de jacarandá mimoso, riscam a binga e acendem o cigarro, fortes tragadas, a fumaça branca saindo pelo nariz e continuam a falar da vida, do Seu Barbosa que Deus levou domingo passado e deixou viúva Dona Gertrudes: ainda faceira, diz um; mas que falta de respeito pensar assim; reclama outro: a pobre coitada ainda não saiu do luto e já se fica pensando besteira; mas o que conta é que sou viúvo e sei o quanto é dura essa vida de solidão nas noites; e todos riem, alegres e maliciosos: mais o compadre, ainda tem essas vontades? a idade não acabou com elas?; que nada, compadre, inda padeço de amores e sabores. Mais calado e quieto um senhor alto, magro, camisa aberta ao peito, atento às conversas – percebo isso pelo acenar com a cabeça para baixo e para cima quando aprovava o assunto e balançando de lado quando o que ouvia não lhe agradava o ouvido, discordando com a cabeça, e depois me contou que largou de fumar pito de fumo por ordem médica – o diabo de uma tosse e o doutor me disse que se eu não largasse ia morrer de longa morte sofrida e aquilo me meteu medo – e as mãos acostumadas com o canivete herdado do pai – a folha já gasta, pela metade – com necessidade de se sentirem ocupadas se dedicam a raspar e modelar galhos de goiabeira e de mangueira, tirando as cascas, acertando ângulos e produzindo carrinhos de boi, carrocinhas de carregar leite, cavalinhos que quando prontos oferece, de presente, para a meninada da região, que nos de agora, segundo ele, andam mais é se interessando pelos desenhos da televisão. A tarde toda a praça é ocupada pelos velhos e os brancos alpendres das casas, o vaso com a samambaia de metro – verde, verde – pendurado no teto e ocupando enorme espaço, quase cobrindo a mesinha de ferro pintada de branco e os três banquinhos o chão de ladrilhos brilhando de tão bem encerado, vermelho, sobre a mesa a branca toalha de algodão, xícaras de louça e as velhas ocupam as mãos e as mentes com agulhas de tricô, de crochê, conversam quietas e fabricam sapatinhos e casaquinhos de lã que prontos serão doados para o leilão da creche, bebem elegantemente - o dedinho minguinho para cima - o café coado na hora, comem biscoito de polvilho assado, falam da vizinhança, do padre novo que chegou na cidade e vive a falar no celular, isso é mau exemplo; que isso comadre, deixe o coitado do padre usufruir das modernidades; gosto disso não; mas das conversas da mulheres dava para eu ouvir pouco, apenas quando passava frente ao alpendre e dizia boa tarde e vez ou outra o assunto encompridava: o senhor é peregrino?; sim; está indo praAparecida? sim, estou; reze por nóis lá; rezarei.

A noite a praça é dos jovens e seus celulares: dois rapazes frente a frente, cabisbaixos manipulam com o dedo indicador a minúscula tela: olha só, viu, o Romeu tá saindo com a Marisa, me mandou mensagem agora; e o outro rapaz: verdade, mesmo? sem tirar o olho da tela de seu celular, de onde escuta ou vê alguma coisa e solta uma escandalosa gargalhada – e percebendo o inconveniente da altura de seu riso tapa a boca com a mão esquerda – mas continua sorrindo do barulho estridente: piada suja meu foi aquela mina de São Paulo quem mandou, porra, forte demais, meu, forte demais; no banco de cimento o casal de namorados, as costas pequenas e magras da bonita menina apoiada nas largas e fortes costas do rapaz moreno, também bonito, os pés no banco, cada qual com seu celular, os dedos manipulando minúsculas teclas: você não me ama mais; bobagem, sua, ti amo cada vez +; então pq ficou com a Luiza no baile de sáb?; tudo mentira, fiquei ñ, num fui ao bailei; verdade?; juro por deus nossa sra; me dá um bj?; um bjão amor!

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

CAMINHAR E ESCREVER – 4 -

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Li, há tempos, uma carta da Clarice Lispector a Fernando Sabino na qual ela confidencia ao amigo sua insatisfação frente ao silêncio do jornal a uma sua crônica: será que a crônica que mandei virou um bolo de papel amassado e está na cesta do lixo? foi mais ou menos assim o que ela escreveu; no meu caso, e nada de querer me comparar – não sou nem sombra dela, para usar um ditado antigo – penso que deletaram o arquivo com os escritos da caminhada que fiz no sul de Minas; (por falar em deletar: lembrei-me do início do instigante romance – O cerco de Lisboa – do velho Saramago) mas, enfim, o educado e sorridente jornalista Anselmo não manda notícias, será que perdeu meu endereço de e-mail? E decidi - emburrado aqui em minha caipirice turrona – a não procurá-lo: que delete meus rabiscos, tudo bem, mas a boa educação – que esperava dele – era que me comunicasse a decisão do jornal em não publicar, eu acreditaria – melhor dizendo -, fingiria acreditar em sua desculpa de que foi o editor que implicou com a crônica, que a mesma não está de acordo com a política editorial do jornal e estaria tudo resolvido, baixaria essa minha ansiedade, copiada da grande Clarice.

Abro a caixa de e-mails e encontro: “sua crônica será publicada, no jornal de domingo, caderno da cidade. O jornal vai, a partir dessa publicação, avaliar a aceitação pelos leitores. Boa sorte e abraços, Anselmo” e eu fiquei radiante, tolamente orgulhoso, querendo que a sexta-feira já fosse sábado e que o sábado já fosse logo domingo para eu acordar logo cedinho, e no escuro ainda ir para a banca de jornal do seu Ângelo e comprar dois exemplares, no mínimo, do jornal, mas o Anselmo me disse que quando publicassem que mandaria um exemplar para minha casa, e eu poderia então – de pijama, ver e rever a crônica publicada - mas pode ser que ele esqueça, acabe a gasolina da moto do entregador, tanta coisa pode ocorrer então vou me prevenir e comprar três exemplares, ou quatro, dá de a seleção ganhar o jogo no sábado e ai esgota mais que depressa a edição do jornal...

No antigo Grupo Escolar, hoje primeira a quarta série, exercitávamos três tipos de escrevinhação: descrição, narração e composição; não consigo lembrar a diferença entre composição e narração, a descrição, sim, me lembro bem, tinha que ser objetiva, restringir-se a comentar o solicitado no título – minhas férias de julho, por exemplo – ou quando a descrição era frente ao surrado quadro de gravuras contar direitinho quantos pintinhos rodeava a mãe galinha, suas cores, não esquecer do cachorro que dorme sob o pé de manga, nada de escrever dos possíveis sons, da magia de uma mãe galinha ciscar o chão à cata de minhoquinhas para os pintinhos amarelos... Eu escrevia narrações, composições e descrições. Foi na quarta série do ginásio – hoje corresponde à oitava série – quando chegou para dar aulas de português Dona Tarsila, bonita professora, baixa, um pouco gorda – sensualíssima aos meus olhos de pré- adolescente -em suas justas saias escuras, moldando as ancas redondas, blusas claras, os peitos querendo sair mundo afora e foi ela que leu – em voz alta, para a classe - uma narração – ou composição - que eu havia escrito e ao término da leitura pediu atenção ao seu final, quando para esconder uma forte emoção face a situação criada encerro a narração com um seco “por favor, me empreste a gilete para eu apontar meu lápis” e Dona Tarsila comentou do efeito psicológico daquele final, eu envergonhado e orgulhoso, ou melhor: meio envergonhado e inteiro orgulhoso, mas o que quero contar aqui – agora – é que, à época, não cabia dentro de mim uma possível habilidade na arte de escrever: era como jogar bola: jogava e pronto –; e mesmo mais tarde, adulto, confundia esta possível habilidade com o domínio de conteúdo e assim menos que a habilidade em escrever o que prevalecia – em minhas redações, narrações, descrições e composições - eram meus parcos conhecimentos – livrescos – de um assunto e era este conhecimento do conteúdo que tornaram minha “redação” digna de ser avaliada como boa ou ruim. Chega, por agora, outra hora conto mais.

Foi nessa caminhada de agora pelo sul de Minas que estreei o prazer de caminhar com o da leitura; explicando: nas caminhadas anteriores – por questão de peso e espaço na mochila – não carreguei nenhum livro: se era pequeno eu iria sofrer por acabar a leitura no primeiro ou segundo dia, e fazer o resto da caminhada sem ter o que ler, agora se o livro fosse taludo, grosso, iria me incomodar pelo seu peso, não ira caber na mochila e então, eu não havia, até então, tido o prazer de uma leitura à tarde, sentado no banco de uma praça da pequena cidade, ou da leitura – deitado - na escura e silenciosa madrugada – esperando o dia amanhecer -; mas nessa caminhada de agora não: em pequeno e leve e-reader nada menos que dois livros novos e – mera coincidência – em um deles - Lucas Procópio, do Autran Dourado - trata da longa viagem do louco Lucas de Diamantina para Alfenas sonhando – como um Dom Quixote – em reverter a realidade à custa de poesias: sim, o louco Lucas, delirava em sua loucura com o retorno das Minas de seus sonhos à força de belas poesias declamadas em coretos das pequenas vilas por onde passava, mas vou parar de contar a aventura do louco Lucas Procópio e muito menos contar o seu final. Mas, como dizia antes, o louco Lucas Procópio caminhava de Diamantina para Alfenas, de onde iniciei minha caminhada: Alfenas, com sua praça repleta de coqueiros, os coqueiros repletos de maritacas, papagaios e tuins, cantando desafinados, desarmonicamente – uma algazarra profunda de sons competindo com o toque do relógio da igreja matriz, os bancos do jardim sob a sombra de ipês e quaresmeiras, os ipês floridos, o chão amarelo de suas flores caídas e eu tentando decifrar em minha memória a diferença entre maritacas e papagaios: os tuins são pequenos, lembro bem, mas e aqueles maiores ali: qual é o papagaio e quais são as maritacas, ou são todos papagaios, ou todos maritacas e eu sabia disso tão bem, tinha os nomes e as cores em minha mente: a verde e amarela Maracanã, a Tiriba, os Tuins menores que os também verdes Periquitos, reconhecia – no ar - o penoso e sofrido voo da Maritaca, parecendo que ia cair de cansada, as asas sacolejando apressadas abaixo do corpo, reconhecia o Cuiú pelo topete vermelho na cabeça e agora – a velhice e a distância rotineira com a natureza – fico a sofrer aqui na praça de Alfenas para identificar a maritaca, o periquito... logo logo, penso, não vou saber a diferença entre galinha e vaca tão acostumado de comprar e comer congeladas carnes nos supermercado, e deu vontade de copiar aqui uma frase inteira do A vida no céu, do Agualusa: “- ... Sabes o que cheirava a savana após a chuva?! Sabes o que é correr livremente, sem nunca tropeçar em paredes? Podes dizer-me a que sabe uma manga colhida dos ramos mais altos de uma mangueira? Sabes sequer o que é uma mangueira?” ; e continuo: sabes o que é cair de mangueira abaixo e chupar a manga colhida com as costas doidas do tombo, a camisa suja do amarelo caldo da manga e do preto da bosta de vaca que amaciou o tombo, tanta coisa!

No quarto dia de caminhada , salvo engano, tem-se que percorrer vinte e oito quilômetros e não há no meio do caminho ponto de apoio para a compra de lanche, mas há, sim, o Recanto dos Amigos, um restaurante caseiro, isolado ao meio do cerrado, beira da estrada. Seu Gerônimo e Dona Rosa, seus donos: um casal mais para sessentão que para cinquentão, ele falante, ela quieta, olhar brilhante: quer um suco de melancia?; obrigado, o que quero mesmo é almoçar, a senhora tem?; vou preparar: come bife de porco?; sim, como; e dona Rosa se enfia cozinha a dentro e fico com seu Gerônimo: cigarro de palha à boca – fumo de corda dos bons: goiano, diz ele enquanto solta a fumaça azul pela boca e pelo nariz, tosse vez ou outra e vai contando: eu, quando moço, trabalhei muito tempo de vaqueiro para um fazendeiro paulista que tinha terras aqui por Minas e lá pelos lados do pantanal no Mato Grosso, e era eu – vaqueiro – que levava o gado magro daqui de Minas e trazia gado gordo lá do pantanal, mais de mil cabeças por viagem, comitiva com três berranteiros, musicais berrantes de longos chifres, dos bons, duas treinadas vacas madrinhas para guiar o rebanho, cavaleiros ajudantes, o cozinheiro, dormindo em redes sob o céu...tempo bom, de gente moça, agora não dou mais conta. E, ali, meio do serrado, a Mantiqueira azul ao fundo, grande, majestosa, o pensamento voa até o conto de Guimarães Rosa – Entremeios com o vaqueiro Mariano – e copio as perguntas do escritor ao vaqueiro Mariano: e seu Gerônimo, tem mesmo boi que toma ódio das pessoas?; se tem, por demais...E seu Gerônimo enrola outro cigarro e vai contando, carregando o seu sotaque mineiro, o olhar saudoso dos tempos que se foram, do som dos berrantes, das noites nas casas das tias em pequenas vilas – a gente ia molhar o ganso, diz sorrindo, coisas de rapaz novo e contou da vaca branca que deu cria em plena estrada e se recusou a seguir caminho, e quando de volta do Pantanal, seis meses depois, lá estava ela e seu bezerro – já grandinho – e se juntou ao gado gordo que trazia para Minas, mode o patrão vender para fazer dinheiro e era assim a vida, ano após ano, tempo bom, de rapaz solteiro.

Dona Rosa cobre a mesa com um pano de prato branco e trás o almoço: feijão grosso, arroz, couve, dois ovos fritos e bife de porco; depois do almoço café de coador, perfumado; o sol se esconde por detrás de uma nuvem grossa: será que chove, seu Gerônimo?; pra esta semana, não, talvez na que vem chove um pouco; o vento do sudoeste não trás chuva, seu Gerônimo?, trás não: vento de chuva é o noroeste. Mesmo assim o melhor é espantar a preguiça, colocar a mochila às costas e caminhar até o pé da Mantiqueira: mais uns doze quilômetros e chego ....

terça-feira, 16 de setembro de 2014

CAMINHAR E ESCREVER – TRÊS –

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Maldita a hora em que cedi à tentação – (puxa vida, na infância a palavra “tentação” – carregada do sotaque espanhol do Frei Elói - não nos deixai cair em “tentacion” – era, para mim, pura musicalidade e fazia com que eu aguardasse sempre, ansioso, no fim do pai nosso, à época padre nosso que estais no céu...demorando para chega no o pão nosso de cada dia...; pulei para a adolescência, imberbe, amarelas espinhas espalhadas pelo rosto, a musicalidade perdeu espaço e – então - “tentacion” chegava aos ouvidos carregada de erotismo, do carnal pecado, de minhas mãos tocando os delicados ombros da namoradinha na matinê de domingo, ela sentada uma fileira à minha frente, as alças brancas do vestido salientando as magras costas morenas, ossudas e eu não enxergava a tela com o Flash Gordon no Planeta Marte – em preto e branco - assassinando com sua pistola mágica estranhos aborígenes de orelhas enormes, vindos de infinitos planetas, minhas mãos acariciando as costas morenas da namorada e o seriado terminava, abriam a cortina de ensebado veludo vermelho, a luminosidade e o silêncio da rua entrava cinema a dentro e a gente saia timidamente separados, o pai dela era bravo, sonhando com domingo que vem) de, por sugestão do Seu Patrício, me comprometer a escrever as tais crônicas para o jornal. Ando achando desagradável a experiência a de escrever por obrigação: o jornalista Anselmo mandando e-mails – educados – cobrando prazos, reclamando do número de palavras, tantas laudas, você em iniciado frases com letras minúsculas e isso não pode, sugerindo mais objetividade nas narrativas e simplicidade no vocabulário – “nosso público é classe d”, e eu cá com minhas ideias querendo vagar nuvem arriba e a cabeça não obedecendo às mãos que teimam em digitar...

Escrever é um ato solitário que, para mim, tem os seus melhores momentos nas silenciosas madrugadas, a caneca de café amargo ao lado do teclado, um gole leva a uma frase, relembro o livro que ando a ler e digito mais duas frases, livre, intuitivo, sem me perguntar o que ando a escrever, sem me preocupar com a objetividade solicitada pelo sorridente Anselmo, sem racionalizar – besteira pura pensar no porque escrevo - , e foi só agora, com a obrigação de mandar a crônica para o jornal é que surge a dúvida do porque escrevo; penso que – talvez, o escrever – seja para tapear a timidez, a baixa autoestima: ninguém quer saber de ouvir histórias, ainda mais histórias velhas, de velhas cidades, tão pouco fantásticas as histórias, de velhos amores, e percebo, na solidão do pensar o escrever, uma sutil diferença entre escrever uma história e refletir sobre o meu eu; tentando explicar: ao escrever uma história, mesmo me enfiando todo na personagem (Dona Florianette, brava e bonita professora de português explicando o porquê personagem é de duplo gênero: masculino ou feminino), me misturando com ela em seus íntimos momentos, salvaguardo – penso – minha intimidade, minhas covardias, minhas fraquezas, meus orgulhos e minhas desumanidades, ou pelo menos me sinto assim: encoberto, salvo; mas agora, me pergunto?; como posso escrever a desumanidade de uma personagem, uma sua tara, se a personagem, sem o autor, não existe?; quer dizer então que suas taras, suas ingenuidades e suas desumanidades são minhas e o escrever é nada mais do que eu deitar no sofá e me deixar analisar? Melhor parar com isso: o que acho mesmo, de verdade, é que estou parecendo adolescente em véspera de prova: reagia, desordenadamente , à pressão de ter que estudar com sentimentos de fortes dores de cabeça, passava a alisar o rosto me ordenando: melhor fazer logo a barba, esquecia da barba e acariciava o pinto, que prontamente reagia, ficava sexualmente excitado sonhando com abraços e pernas e peitinhos, o estômago roncava e me sentia morto de fome, o meu time perdeu o jogo, que merda, o tempo passando com o livro de latim aberto à sua frente, a terceira declinação: i, orum, is, o jeito era estudar. Então vamos à crônica:

As manhãs têm sido frias, o sol tendo que se esforçar para abrir a espessa cortina da neblina branca, por a cara para for e colorir de vermelho o horizonte, aquecer os ossos e as mãos frias que vão se alternando na tarefa de segurar o cajado – cada hora uma buscando o bolso para se aquecer - , o nariz soltando fumaça branca lembrando o trenzinho do caipira do Villa - piuiii, piuiii – : gosto, muito, de caminhar: o pensamento voa, os sonhos se tornam possíveis, reais sonhos no aqui e no agora.

Enfiado na Mantiqueira, no sobe e desce morro e montanhas, em estradinhas de chão cortando os cerrados com suas sofridas e retorcidas árvores – tão bonitas em sua rusticidade - , as montanhas coloridas com enormes triângulos de verdes cafezais e com retângulos de suaves pastos com bois e vacas berrando, seriemas de topete arrepiado cantando alto e agudo o seu que! que! que!, convidando a fêmea para o acasalamento, botar seus ovos meio do pasto, em um ninho encostado no monte do cupim, longe das vistas do teiú que vive de comer ovos crus, e um bando de periquitos tuins em sinfonia querendo acordar o mundo. Meio a tanta distração esqueço das setas de orientação do caminho: acho que estou perdido, ando mais uma meia hora, nada de setas e a experiência de andarilho diz: meia hora sem sinal, você está errado, o melhor é voltar, caminho – indeciso mais um pouco - e do alto de um pequeno morro vejo uma fazenda mais a frente – coisa de vinte minutos, calculo – e decido andar até lá e me informar.

Saio da estrada municipal, atravesso o mata-burro para alcançar a fazenda - casa caiada, grande, janelas azuis – com o curral entupido de vacas brancas com manchas pretas, e conforme vou me aproximando dou umas tossidas e raspo a garganta - sem vontade – anunciando minha chegada; preso por uma corrente ao moirão do curral um cachorro vinagre, forte, dentes enormes, late e uiva ameaçador, defende seu território do inimigo, ainda bem que está preso, ancestral o medo de cachorro; fora o latido do bravo cachorro cor de vinagre, e um muuuu! ou outro das vacas no curral impera o silêncio da Mantiqueira. Me aproximo da cancela do curral e percebo que a ordenha das vacas é feita não pelas mãos humanas dos velhos retireiros agachados com o balde entre as pernas, mas por elétricas mãos de ferro que apertam e desapertam – ritmicamente - as cinco tetas cor de rosa das vacas em fileira, o leite saindo por mangueiras de plástico até o latão... e do meio a imensidão de brancas e gordas vacas de machas negras, que ruminam ordenada e pacientemente o capim, a olhar ao infinito com um negro e brilhante olhar que reflete a total ausência de preocupação com as mazelas do mundo, o leite sendo tirado pelas elétricas e frias mãos de ferro, e, como dizia, do meio da nuvem de obedientes vacas surge, se levanta – demoradamente - um homem alto, gordo, paletó escuro, e tão logo se coloca totalmente de pé caminha a passos lentos em minha , e posso, então, observá-lo melhor : alto, gordo, o paletó preto ensebado cobre uma camisa de flanela surrada, os olhos cheios de remela, as calças teimando em cair – o improvisado cinto feito de corda com um grosso nó, mal feito não segura as calças, o ventre cabeludo à mostra – o rosto com o inchaço vermelho típico do alcoólatra, o olhar se dirigindo a mim e – como as brancas e gordas vacas – não me veem, me atravessam e se dirigem para o infinito. Os dois parados, quietos, um frente ao outro, eu surpreso resolvo tomar a iniciativa: bom dia, estou fazendo o caminho para Aparecida e acho que me perdi; o alto e gordo homem a meio metro de mim, quieto, não me vê, fede a urina e suor quieto, mudo; insisto: a estradinha que passa logo ali embaixo é a que vai para Turvolândia; nada: o gordo homem sozinho com ele mesmo, as vacas ruminando, o cachorro vinagre parou de latir e de saltar para escapar da corrente, ainda bem, e o fedido homem tão próximo, mas em sua loucura não me vê, e eu a imaginar suas possíveis reações – uma vez em um baile na roça enquanto dançava alegremente com a filha do fiscal fui violentamente esbofeteado no rosto por um louco, também alto e gordo, só que sem o inchaço e vermelhidão no rosto e sem exalar a catinga que sai deste gordo homem, com seus quarenta ou cinquenta anos, sei lá -; o cachorro volta a latir e do outro lado do curral surge um vulto, caminha a passos firmes e rápidos, um jovem rapaz de calças jeans apertadas, chapéu de cowboy, botas sujas de negra bosta de vaca: bom dia, estou indo para Aparecida e acho que me perdi...; ‘dia, perdeu não, tá certo; é que não tenho visto o sinal do caminho; logo ali, depois de uma meia légua o senhor vai ver, depois de um mata-burro o sinal do caminho, quer um copo de leite?; obrigado, vou aceitar – curioso para ver se ele ia tirar o leite com as mãos ou ia desatarraxar as mãos de ferro, elétricas e nem um nem outro: catou uma caneca de alumínio e meteu em um galão de leite já cheio e me ofereceu...Bebi o leite que mantinha ainda a quentura do corpo de uma daquelas vacas brancas de manhas negras que continuavam a olhar o infinito, ruminando a total falta de preocupação com o futuro, mansas em sua quietude, suas tetas cor de rosa massageadas por elétricas mãos de ferro e o homem gordo, sujo e fedido foi voltando – quieto - para o meio das vacas, alcançou um cocho à beirada da cerca do curral e lá, devagar – acomodou seu corpo pesado.

Vou indo, obrigado pelo leite; de nada, e que mal lhe pergunte: está caminhando sozinho?; sim, caminho só...; que Deus e Nossa Senhora te acompanhe!; vai acompanhar!

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

CAMINHAR E ESCREVER–DOIS -

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E como vai essa vida de escritor?

Certo dia, há tempos, um editor aventou a possibilidade de publicar um livro meu a partir da seleção das histórias que ele conheceu em meu blog; entusiasmei-me, claro, quando ele marcou o dia, a hora e local – uma antiga livraria de São Paulo – para nosso encontro, cheguei uma hora antes do combinado, ansioso, sonhando com o livro pronto, fantasiando uma capa com fortes cores e com a noite do lançamento, eu lá todo importante assinando meu nome depois do abraço, e os minutos não passavam, acho que ele não vem, desistiu, deve ser, mas ainda faltam quinze minutos para as onze horas; peço outro café e tento me concentrar na leitura do Lucas Procópio, pelo menos finjo que leio para a hora que ele chegar – se vier – me pegar de olho em um bom livro, de um autor que ele – com certeza - respeita muito, será que ele já leu Autran Dourado?, claro que leu, pode ser até que o tenha conhecido pessoalmente, editor é sempre letrado; vejo – agora - que lá vem ele agora – pontual – , caminha em minha direção a passos largos, terno escuro, alto e elegante em sua gordura, camisa de linho e gravata italiana, cabelos brancos: e como vai essa vida de escritor?

Gelei! Levantei-me da cadeira, sem saber se falava bom dia, se abraçava, quais são as normas que regem o encontro de um prosador – prosador, sim, viva Cristóvão Tezza! – com um editor?; sentou – o editor - na cadeira ao meu lado, tão a vontade, pedi mais café que chegou logo, quente, fumacento, perfumado e eu sem coragem de tomar o meu: ia derramar, que vexame, as mãos desobedeciam a cabeça, tremiam, se eu resolver tomar o café desta pequena xícara vai ser um desastre, com certeza, vou derramar café na mesa, pior ainda se mancho de preto a branca camisa de linho do editor e aí sim é que o livro – melhor dizendo, o sonho do livro - vai para as cucuias, nada de lançamento, nada de autógrafos. O que que você tem?, não está se sentindo bem?, o que foi que houve?; foi nada não, só um susto (deus do céu, onde já se viu, ele vai adivinhar o motivo do susto, devia ter ficado quieto, em boca calada não entra mosquito); susto? susto do que? tá vendo bruxas?. E chegou mais café pedido pelo editor, que discorreu a respeito das dificuldades de se editar um livro hoje em dia, as editoras não investem em novos autores - o tal do mercado - e estes ficam esquecidos, sem oportunidades, grande prejuízo para a cultura brasileira e eu senti que ia me acalmando, peguei coragem de tomar a xícara de café, bebi, vi que a mão já obedecia a superior ordem de não de tremer, e eu sabendo que falava superficialidades pedia a deus para que o editor com sua bonita gravata italiana e sua camisa branca de linho me perguntasse o que andava eu a ler para então eu poder contar da minha descoberta do Autran Dourado, mineiro bom, escritor premiado, pouco conhecido, será porque em Minas nascem tão bons escritores? serão as montanhas negras, o clima seco, o silêncio quieto exigindo que a vida seja vivida com econômicas prosas, monossilábicos diálogos – ‘dia!; dia!; boom?; boom! - .

E o editor catou o pen-drive com as histórias, me ofereceu um cartão de visitas com telefones, e-mails e nos despedimos e foi esta a primeira vez na vida que alguém me chamou de escritor – como vai essa vida de escritor? – e aquilo – ser chamado de escritor - me causou um susto danado: eu escritor? tá mais é doido o editor, deve ser força do hábito, trejeito de sua profissão, a profissão marca o homem, e como marca – há muito tempo li, em um jornal, uma tira de quadrinhos em que um vendedor dizia à esposa: fui mandado embora; e ela: e do que você está rindo?; e ele, o vendedor: é o maldito sorriso de vendedor que não me larga - , não sou escritor, sou um aposentado que escreve - apenas isso – um dia lendo Clarice Lispector - acho que em Aprendendo a Viver – ela se pergunta se é uma escritora e que não se imagina como tal, diz alguma coisa como “escrevi os livros quando eles espontaneamente me vieram, e só quando eu realmente quis” – agora se ela - a grande e bela Clarice - não se vê como escritora, imagine eu aqui, um simples pedagogo aposentado, mas melhor parar porque isso não tem fim, vou me socorrer – mis uma vez – com o professor Cristóvão Tezza: me considero apenas um prosador, um contador de histórias, com isso não estou dizendo que sou um bom prosador, o mais provável é que não, mas um prosador, sim – na prosa onde tudo cabe, menos poesia, como diz o Tezza -; prosador - acho mais simples - cabe mais dentro de mim, com minhas incompetências e infinitas preguiças, menos de andar e de ler.

Mas acho que é hora de deixar de lado tanta prosa e cumprir a crônica prometida ao jornalista Anselmo.

Primeiro dia de Caminhada!

“Por forma que o dia era parado de poste.

Os homens passavam as horas sentados na

porta da Venda

de Seo Mané Quinhentos Réis

que tinha esse nome porque todas as coisas

que vendia

custavam o seu preço e mais quinhentos réis”

Manoel de Barros, Poemas Rupestres

Apesar da idade e uma boa experiência em solitárias andanças, sempre, no primeiro dia que inicio a caminhada me sinto ansioso, com uma injustificada urgência de sair estrada a fora que faz com que eu engula o café sem prazer, sem assoprar o suficiente e ele – por pirraça, penso - desce queimando goela abaixo, escovo os dentes mal e apressadamente, faço tudo correndo, atabalhoado, sem pensar ...E quando, enfim, meto a mochila às costas me vejo a – semelhante a um peru velho - dando voltas em torno de mim mesmo, batendo com a mão na bunda verificando o bolso traseiro, me perguntando: será que não estou esquecendo alguma coisa?; não, esqueci nada não, tá tudo aqui; paro e rememoro: os remédios enfiei na nécessaire no fundo da mochila, mas, mesmo assim melhor conferir e desafivelo a barrigueira da mochila, tiro das costas e jogo sobre a cama, abro cada uma de suas infinitas divisões para ir conferindo: estão lá os remédios de uso contínuo, a bolsinha com o remédios para eventuais dores, picadas, a agulha para furar as bolhas do pé, a fralda do neto que será a toalha nestes dias, cueca, outro par de meia, o chinelo, duas garrafinhas com água nos bolsos, as frutas secas...e como é que cabe tanta coisa nesta mochila que volta às costas comigo ainda descrente da vistoria realizada, ainda a dar voltas em torno de mim mesmo, a bater na bunda para checar os bolsos traseiros; a solução? é a velha e salvadora liturgia do sinal da cruz: em nome do pai: mãos à testa, sim estou de óculos; do filho e bato no centro do peito: sim, a máquina fotográfica está pendurada no pescoço , do espírito: mão ombro esquerdo: sim, os documentos no bolso da camisa; santo, e bato a mão no ombro direito: sim, a blusa de frio no bolso direito da mochila, e em voz alta grito amém, “amém nois tudo”, agora é só enfiar o chapéu na cabeça para proteger a careca, catar o cajado na cama, agora sim, tudo pronto ... mas, tem sempre um mas: mas, mesmo com a mochila às costas me agacho desequilibrado pelo peso da mochila e reolho embaixo da cama para ver se não esqueci nada, aproveito que estou agachado para checar se os cadarços das botas estão bem amarrados, e então – confiante? - saio porta a fora, alcanço a rua e inicio a andança ainda com uma ponta de dúvida se está – realmente - tudo na mochila (deus do céu: em casa ando da sala até o banheiro para encontrar a escova e a pasta, busco no outro quarto a toalha de banho, o chinelo está ...e agora, tudo, tudo, por quinze dias aqui dentro desta mochila, às minhas costas?; deve ser essa a causa da ansiedade, das inúmeras voltas que dou em torno de mim mesmo, dos tapas na bunda, de olhar sempre mais uma vez embaixo da cama da pousada para conferir que não esqueci nada...)

A manhã está fria - geou de madrugada - e o sol aponta – tímido - no horizonte, a lua toda prata esqueceu de se esconder, quer conferir se o sol vai mesmo aparecer; caminho a passos firmes, no meu ritmo lento, e o barulho dos caminhões e o cheiro de óleo diesel vão se desfazendo, a cidade – pequena – vai, lentamente, ficando para trás, o silêncio invadindo e impregnando meu corpo, tomando conta do meu ser; à frente uma porteira com o mata burro ao seu lado, a estrada de chão, o corpo se acostumou com o peso da mochila. Paro e me encosto no moirão da porteira, bebo um gole d’água, olho para trás e vejo lá longe, meio a neblina, a torre da igrejinha, ainda dá para ouvir longe, longe o sino do relógio bater e conto as batidas com a ajuda dos dedos: uma, duas....sete: são sete horas...

Guardo com muito zelo as memórias de minha meninice - na verdade nunca sei se são memórias ou invencionices, tão misturadas me apresentam - e me enfiar pelas montanhas de Minas Gerais a dentro, cortar os cerrados, atravessar – com cuidado - os mata-burros, ouvir o canto do galo, o muuuuhh da vaca oferecendo as tetas ao bezerrinho, sentir o cheiro de café passando no coador, ver a fumacinha branca saindo pela chaminé, tudo isso, mais, claro, tudo o que ainda virá nos dias e dias de solitária caminhada que tenho pela frente, me levam à infância, não um retorno puro e simples à infância – ridículo aos setenta se sentir com sete ou oito – mas retorno ao que vivi sob o crivo – ou sob o prisma – da idade que tenho, da vida que vivi. Um dia, não me lembro nem quando nem com quem andava a conversar – mais provável que comigo mesmo – disse que Minas com suas montanhas, suas vilas e riachos, seu quieto povo e o seu pão de queijo e o seu toicinho frito e o biscoito de polvilho me comove e gostei muito mesmo de ter dito que me comove, e me lembro ainda, que na tal conversa procurei me justificar: fico a vontade por não ser mineiro: Minas me comove; penso que o que me comove é esta volta às memórias da infância que o lento caminhar me permite.

No alto de um enorme e imponente pé de sucupira o urubu me observa quieto, olhos negros, cabeça pelada, bico catando piolhos nos pés; enquanto tento fotografar me lembro do casal de urubus - Dito e Luzia – meus amigos das dunas que andam sumido e, o que é pior, tenho visto um enorme gavião na mangabeira sob a qual Dito e Luzia fizeram seu ninho e andavam a chocar os ovos, será que o gavião deu fim no ninho do Dito e da Luzia, quando voltar vou verificar, e aqui no alto da sucupira o urubu – garboso - posa para a foto, quieto; será que no hemisfério norte, acima do equador, não tem urubu? por quê? porque os homenageados são sempre os corvos: um filme muito sensível e antigo japonês – O Corvo Amarelo – depois o belo Cria Corvos do espanhol Saura e o meu urubu , aqui do pé de sucupira, fotografado, abre as longas asas e inicia o voo silencioso: os urubus são silenciosos em seu voo, em seus ninhos, em seu acasalamento – cultivam o silêncio e talvez por isso – pelo silêncio que caracteriza essa negra ave, que me lembrei do poema O corvo, do Poe: o solitário corvo, ave feia, escura, pousa sobre um busto de Palas e arguido responde: “nunca mais”...melhor mudar de assunto, o galo canta o seu coocoricooocooh, passo frente a uma pequena casa caiada de azul, o jardim protegido com delicada cerca de bambu, os cães me observam em silêncio, não latem, deve ser o frio. Olho para o céu de um azul infinito, enorme, sem nada de nuvem, nem mesmo um fiapinho, lindo céu, com o sol livre para projetar a sombra do corpo no barranco da estrada, uma sombra grande, com as pernas compridas, mas sei que vai ir sumindo, devagarzinho sumindo, até ela se enfiar toda dentro de mim, se misturar comigo, isso quando for lá pelo meio dia e então, cansado, escuto - meio longe - o ruído calmo do pequeno riacho, que corre forte sobre negras pedras, passa sobre a pequena ponte: hora de – calmo – retirar a mochila das costas, tirar o chapéu, lavar os óculos e as mãos na correnteza do riozinho, provar – com as mãos em concha - a branca e fria água, ajeitar a bunda na moita de capim barba de bode, catar a matula e almoçar.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

CAMINHAR E ESCREVER–HISTÓRIAS - UM -

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E já que você gosta de escrever porque não aproveita essa sua peregrinação e rabisca o seu dia a dia para o jornal? acho que com isso dá até para ganhar trocados o suficiente para pagar os albergues, eu bem sei que não precisa, mas dinheiro a mais, mal não faz, é o que penso.
Conheci – e, com o tempo, tornei-me amigo de Seu Patrício – em uma das caminhadas que fiz, talvez no Caminho da Fé , ou o da Luz, ele andando sempre depressa e eu devagar: um velho espanhol, homem alto de pernas longas, bravo, estourado, um infarto – quando realizava o Caminho da Fé - duas pontes de safena, marca-passos e a proibição, para ele grave e triste, de realizar longas caminhadas, proibição, aliás, solenemente reafirmadas aos finais de semana junto ao irmão padre, que obriga o Seu Patrício, mãos sobre a Bíblia Sagrada, jurar a não mais se aventurar por longas andanças em solitários caminhos e menos ainda a visitar uma determinada e obscura casa de oferta de masculinos prazeres, e esta parte do juramento é sempre realizada em código – o irmão recita e ele repetia a promessa em latim – tornando inacessível ao leigo ouvido de Dona Cecília, mulher de Seu Patrício, que – véu negro cobrindo os cabelos brancos, rosário às mãos, contrita - participa da cerimônia semanal de promessas e juramentos do marido ao irmão padre; este – Dom Marcos - uns dois anos mais velho que o irmão, que agora conta com seus setenta e mais de dois anos , e aos domingos, após celebrar a missa das nove, sempre recheadas de solenes prédicas - seu preferido e usual tema atual, do alto do púlpito rococó – é defenestrar o espiritismo kardecista que em sua imaginação impregna com mais perigo as ovelhas de sua paróquia do que as novas igrejas de crentes, mas – aí ele só pensa, baixo, ninguém ouve - tudo farinha do mesmo saco, todos uns legítimos filhos da puta; continuando: tão logo dá por encerrada suas obrigações litúrgicas dominicais, pega sua lambreta vermelha e se prepara para passar o resto do santo dia de domingo com o irmão e a cunhada, onde busca esquecer um pouco sua vida de sacerdote - tão logo encerra a liturgia das promessas e rezas com o irmão e a cunhada. Quanto às promessas – solenemente realizadas na sala, frente a imagem de São Tiago, todo iluminado por acesas velinhas coloridas e enfeitado com perfumadas flores colhidas no quintal por dona Cecília – é bom que se diga que muitas vezes não são cumpridas, mais no que se refere à promessa de visitas à obscuras casas de prazer – alegres encontros para usufruir as cortesias de dona Mercedes com seus rosados seios fartos – que, talvez por ser de curta duração – coisa de hora, hora e pouco, afinal os setenta anos pesam - e são facilitados – a tentação, segundo o irmão padre - pela proximidade da casa de dona Mercedes com a Caixa Econômica, onde seu Patrício é cliente e rotineiramente aparece a cada início de mês: passa pela porta rotatória de vidro que nunca apita apesar do marca passos, a do aeroporto vez ou outra apita, as mãos cheias de boletos de contas a pagar com o salário de aposentado, não usa os serviços da internet para transações bancárias de medo de “raquers” e também porque a obrigação de ir à Caixa é desculpa para sua saída mensal sem maiores explicações a Cecília, sua mulher por mais de quarenta anos: vou ao banco pagar as contas, logo de tarde eu volto; e a obrigação de pagar as contas é - nem sempre, mas quase sempre - emendada com os suaves e doces encontros com a puta Mercedes, sempre à tarde, na casa dela, as outras meninas dormindo descansando do trabalho noturno; enfim, as duras e pesadas contas e prestações a serem pagas são a tentação – o capeta - para descumprir a promessa feita aos domingos – o solene irmão padre, as mãos sobre a bíblia, os olhos fechados e naquela hora o sentimento verdadeiro de cumprir -; mas, Deus do céu, o seu Patrício tem que ir à Caixa pagar as contas, a casa de Mercedes tão encostada na Caixa, dois quarteirões, a carne é fraca, pensa sempre enquanto toca a campainha da casa branca de janelas azuis e antecipa em sua mente o rosado rosto de Mercedes, seus cabelos longos, ela sempre abre primeiro uma janela da veneziana, o vê e sorridente: entre benzinho, estava mesmo te esperando, ando já de saudades do meu bem. E se sua rotineira obrigação de ir ao banco pagar as prestações e contas compromete a promessa jurada o mesmo não ocorre com a outra promessa - a de não mais realizar suas inocentes caminhadas que costumavam durar semanas, dias, meses - : seu Patrício não mais realiza grandes caminhadas, ou peregrinações que é como ele gosta de dizer.
Olhe seu Patrício, eu gosto de escrever, mas sem compromisso; nunca tive coragem - ou competência - para mandar meus rabiscos para jornais, escrever, para mim, é coisa mais de gastar o tempo que me resta nessa vidona que deus me deu (e que ele nunca saiba que escrevi deus com o d minúsculo, católico fervoroso, frequentador da missa dominical regadas de fervorosas orações, confissão e hóstia santa); pois saiba que já conversei com um jornalista, amigo de meu irmão, aquele que é padre, e ele quer seus relatos, que ele chama de crônicas, acho uma bobagem estas classificações: crônicas, novelas, romances, no fundo, bem no fundo, tudo não passa de histórias, de prosas você não acha?; sim, acho que sim, que é tudo a mesma coisa, mas seu Patrício preciso pensar melhor...; ele, o jornalista, disse que tem que ser histórias curtas, que o povo não tem mais paciência de ler coisas compridas e eu mesmo, posso dizer que nunca consegui atravessar um livro inteiro, me cansa.
O jovem jornalista, Anselmo, é um rapaz simpático e bonito, moreno, sorridente, tem a segurança dos jovens, sem as dúvidas e as complicações que o tempo vai metendo na cabeça da gente: procure ser o mais objetivo possível, use uma linguagem clara, poucos adjetivos – por favor, nada de montanhas azuis, isso não existe, as montanhas são negras -; tá bom, Anselmo, tentarei ser objetivo, embora reconheça que sou dado a voos de longas divagações.
1 - Caminhos e andanças!

Mochila às costas e todo o dia pela frente: montanhas, morros, rios, cachoeiras, pastos, pontes, pinguelas, riachos, córregos, o céu de um impensável azul ...e depois daquele morro o que é que vem? vem outro morro ou talvez um campo, ao fundo um riozinho de águas claras, piscoso, uma paineira que convida ao repouso sob sua sombra, lanchar, beber água, tirar as botas e por as pernas para cima, descansar olhando por baixo dos galhos a nuvem que passa, ver – quieto para não espantar - o canarinho da terra carregando um gravetinho no bico para construir seu ninho. Besteira? deve de ser, mas gosto destas besteiras, acho!
O desejo de caminhar dias e dias é velho em mim. Quando jovem acompanhei, invejoso, pela revista O Cruzeiro, os soldados do exército que caminharam de São Paulo a Brasília, quando de sua inauguração: os pés em frangalhos, machucados, os coturnos - duras e pesadas botas - com os saltos em pedaços, o couro rasgado, desgastado, as fotos com os pés feridos que - há época – me causaram profundo desânimo: caminhar por longas distâncias é puro sacrifício, sofrimento; desisti da ideia, que voltou a brotar em mim já velho, aposentado, com tempo de sobra e, nada de coturnos, mas com calçados macios, fiz, com um amigo, parte do Caminho da Fé: andamos pela Mantiqueira a dentro por uns quatro ou cinco dias, os dois orgulhosos por terem percorrido mais de cem quilômetros a pé; caminhamos de Águas da Prata até Borda da Mata de onde voltamos para casa. Mais que entusiasmados, mês e meio depois, voltamos ao caminho, agora para percorrer de Borda até Campos de Jordão e foram mais cinco dias de caminhada e eu já equipado com bota própria para caminhada, roupa leve, de fácil secura, e uma boa mochila.
Viciei!

quinta-feira, 31 de julho de 2014

A HISTÓRIA DE ARCEBIDES - XIV - E FOI QUANDO ARCEBIDES ENCONTROU O SEU DESTINO!

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“Na estrada de Caxangá

tudo passa ou já passou;

o presente e o passado

e o passado anterior” - “in” João Cabral de Melo Neto, O motorneiro de Caxangá

E foi Luzia que um dia me falou com sua voz aveludada: mas veja pois Arcebides, o que importa se você não tivesse fugido de sua vila lá nos Jequitinhonha por causa da morte do delegado, que nem foi você que matou? nos de hoje, no de agora, isso pouco importa, pouco valor tem, e sabe por quê?, porque, Bem, você fugiu e pronto! Isso de ter ficado lá, perto de sua mãe e de seu pai, não existiu, não é essa a sua vida: a sua vida é que você fugiu por causa da morte do delegado que você não matou; e aquela sua fala – ainda hoje sinto um pouco de vergonha de contar - me assustou, achei muita clareza naqueles ditos. Nós dois estávamos, Luzia e eu, deitados com preguiça, descansando na cama, foi em uma tarde de outubro ou novembro, e aquela fala de Luzia cravou fundo dentro de minha cabeça: de verdade eu nunca em antes tinha pensado assim, e fiquei admirado da sabedoria de sua fala e nós dois deitados com pouca roupa na cama, era de dia, o sol lá fora queimava os arrozais, retorcia as folhas dos pés de milho, era tempo de uma secura geral mesmo ali nos goiás das veredas e dos chapadões e foi que bateu em mim uma saudade das caatingas cinza, do ar seco que entra nos peitos e sangra o nariz quando se respira fundo queimando os pulmões. E Luzia – adivinhando, será? - tocou com sua mão pequena e lisa meu ombro nu: pensa em voltar para lá, para junto dos seus, Bem?; ando pensando nisso, mas não tenho mais certeza de nada, lá tudo é nos iguais, e é sempre em cima do que já existe, do que se conhece, que é que se constrói o futuro, e nos meus maiores momentos de agora o que imagino é fazer um futuro diferente, um futuro desligado do passado, será que dou conta disso? E Luzia soltou todo o corpo em cima do meu, falou baixo: dá conta sim, Bem!; e foi ai que me dei conta que gostava de Luzia.

Luzia, uma mulher que parecia duas: uma delas era a Luzia - tia na casa das putas de Dona Inês - que gostava de ronronar feito gata no rabo do fogão, se aquecendo nas brasas dos fregueses, uma Luzia faceira, que apreciava manejar meiguices, sonhos e tinha a outra Luzia: olhos negros, carinhosa e por demais entendida da vida, que sabia encontrar o que se passava em meu coração, lembrando um pouco a mãe da gente – com o perdão da comparação - , mas – lembrava sim - uma mãe nova, esperta, amiga era o que era essa outra Luzia, de abraços e carinhos tantos e eu – cheio de decidida coragem - resolvi arguir: não quer ir conhecer as caatingas do Jequitinhonha?; mas Bem, mode o que, ir para lá Arcebides? acha que carece mesmo?; a gente pode ter lá uma casa pequena com um jardinzinho na frente, plantar um pé de rosa vermelha, que acho a mais linda, no outro lado, bem em frente à porta fazer canteiro com onze horas coloridas, malvas cheirosas, cravo de defunto, desenhar um arco-íris de tantas cores, você não gosta dessas belezuras?; muito, gosto é por demais, e também de ver as galinhas ciscando as folhas atrás de escondidas minhoquinhas de um chiqueiro com porcos de engorda para matar e comer carne, fazer banha. E fomos ficando a falar, conversando os dois com os corpos encostados um no outro e aquilo foi acendendo vontades, desejos, misturando sonhos com carinhos, e resolvi de vez que queria viver com Luzia, que mostrava ali naquela tarde, com o sol alumiando lá fora, que não tinha nojos em seus préstimos de mulher, a cabeça cheia de invencionices, os dois juntos, colados, aquilo por demais me agradava: e é isso que deve ser a vida, é o leste que ando atrás, será, mesmo?

E naquela tarde combinamos o futuro.

O senhor vê – nos de agora - o nosso sítio, a casa em que construímos com tijolo e telhas de barro, aqui moramos, tem o chiqueiro com porcos, o curral para tirar o leite, a tulha com fartura de milho para ser trocado por fubá, a charrete dom rodas de pneumáticos, mais nos fundos a mina d’água clara, boas terras para o plantio, o chiqueiro hoje com cinco capados de engorda, se bem que agora, com a idade que chegou, temos trabalhado menos, respeitado mais os dias santos e os dias de sábados e domingos, comida até sempre tem com a graça de deus, filho para criar não tivemos, os cachorros guardam a casa quando vamos dormir na vila para rezar na igreja em dias de festas de santos, o jardim com o pé de rosa vermelha, o canteiro de onze horas, Luzia fez outro com cravo de defunto e malva cheirosa, no fundo da casa, perto da mina, o pé de manga rosa, que carrega nos janeiros, manga das melhores, amarela, cheirosa, chamando passarinhos pequenos – sabiás, sanhaços, tiés - e bicudos tucanos e, sabe o senhor que mesmo ainda hoje, na velhice, apreciamos de gostar de esquentar cada um o corpo do outro nos frios das noites, de conversar de nossa vida nas tardes quentes de dezembro, os dois aqui vivendo ao deusdar, fechando os olhos para não ver o doer das dificuldades esperando o de noitinha para acender rádio de pilha com boas modas e o dormir no silêncio das caatingas do vale.

Pois é essa vida que ando a viver e é o que me leva a pensar que encontrei o meu destino, achei o lugar onde carecia de ficar, o lugar que sempre andei atrás, meio sem saber, mas que para ele sempre havia rumado: sabe o senhor que penso que é assim que vivemos a vida que, de verdade, não passa das boas coisas e das besteiras que fizemos até o dia de ontem, e que o hoje nada mais é do que o ontem de amanhã, uma vida de difícil entendimento quando se pensa forte na busca de seu entendimento, e até, no mais das vezes, desisto de entender e passo a querer apenasmente, com a graça do bom deus, viver.

Foi bom ter contado ao senhor e agradeço a paciência de ter me escutado, mas chegou as horas do descanso, do cerrar os olhos, dormir se esquecendo, se apagando a vida no escuro do sono e aguardar a claridade do amanhã, se ela chegar. Boa noite!.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

A HISTÓRIA DE ARCEBIDES–XIII–FOI QUANDO ARCEBIDES RESOLVEU PROCURAR O SEU DESTINO!

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“Do que serve afligir-se em meio a terrores, se o homem vive à lei do acaso, e nada pode prever ou pressentir! O mais acertado é abandonar-se ao destino.” Édipo Rei, Sófocles.

E Arcebides fechou os olhos devagar, tragou bem fundo o cigarro de palha com fumo goiano, a fumaça chegou forte aos pulmões e foi ai que descansou a mente, deu aquela vontade de soltar a fumaça bem devagarzinho, sentindo uma cosca quentinha da fumaça nos bigodes, namorar a fumacinha azul clara sumindo no ar misturando o seu cheiro com o amargo perfume do café de bule que inundava a sala, lá fora o sol quente, os cachorros latindo contra uma visão que só eles viam, uma assombração, seria?, bebeu mais um gole de café doce e continuou a sua história:

A verdade é que fiquei parado, estatelado, enquanto ia vendo o Militão ir sumindo estrada a fora, montado na carroceria do caminhão com a caravana do circo, eu escutava seu assobio feliz que entoava as canções que iria cantar no Circo Veneza; os caminhões foram sumindo, sumindo, iam alcançar o horizonte, deixando uma nuvenzinha marrom de poeira fina na estrada, o barulho dos motores já se apagando nas veredas, sem poder de fazer mais eco no chapadão e uma nuvem de tristeza foi tomando conta de mim e aconteceu – comigo – em um tempo tão pequeno, coisa de minutos, mas que me pareciam infinitos, de uma dúvida por demais de grande ir tomando conta de todo o meu corpo, e era a dúvida de não estar indo para o leste se o leste era o meu destino, não entender por que andava acompanhado o cigano Igor para o norte, para Goiás, e tive vergonha de mim, da fraqueza de não ir á caça do meu destino, fosse ele qual fosse, mas para isso urgia mais d’eu saber onde estava o destino, o que é que eu – de verdade - queria, para onde iria, se o leste era o que me aguardava ou se o leste era apenas uma invenção de fugir de mim e eu não sabia - e reconhecia, naqueles minutos - minha incapacidade de sonhar o futuro, de saber para onde eu ia, reconhecendo a falta de saber, a oquice da cabeça, o vazio n’alma. Parado, a caravana de caminhões sumiu da vista, o horizonte vazio e foi quando o cigano Igor, solene em seu cavalo, quebrou o silêncio meio as veredas e falou com voz segura: vamos embora, sobrou um cavalo agora para vender; e me deu um ódio grande de ouvir aquela fala, o Militão buscando o seu destino, eu invejoso, e o cigano pensando em vender o cavalo e eu respondi raivoso: vou para o norte não, vou para o leste; fazer o que no leste?; achar o meu destino; só a dois dias daqui e chegamos no Porto Nacional, onde tem casa de mulheres, vamos?; eu estava ainda pensando o que decidir quando um comichão de vontade de mulher invadiu meu corpo, embraseou meu ventre, foi dominando todo o meu pensar, uma vontade grande de carinho, de sentir lábios quentes, do calor úmido de línguas se enrolando e sugando salivas, de gemer incontroláveis gemidos saindo do mais fundo do ser e eu decidi: dois dias a mais ou a menos não faz diferença e de Porto Nacional eu caminho para o leste e acho meu destino!

Em uma rua de terra com a calçada forrada de grandes pedras arenosas, casinhas azuis com pequeno alpendre iluminado por uma lampadinha vermelha; em uma casinha, na porta, uma morena alta: entrem, boa noite, tem cerveja gelada e meninas quentes; e entramos, Igor e eu, a moça morena acendeu a luz da sala e berrou alto: tem freguês; sentei em um sofá de plástico, a moça morena ligou a vitrola e soou alto a voz grossa de Nelson Gonçalves – fica comigo esta noite, e não se arrependerá, lá fora o frio – eu acompanhava o ritmo batendo com os dedos no braço do sofá; do corredor aparece e entra na sala uma pequena mulher, morena, os cabelos lisos caindo até os ombros, olhos negros abaixo de sobrancelhas cerradas, negras, nariz pequeno e lábios grossos...Luzia! Linda, Luzia, se aproximou de mim, a perfumada cabeça batia no meu peito – tão pequena -, pegou em uma das minhas mãos, e foi se aconchegando feito gata na brasa, ronronava - parece –, acomodou-se em meus joelhos: toma cerveja, bem?; sim, quero, bem gelada; Nair, manda uma cerveja bem gelada aqui pro meu bem, dois copos; e eu fui abraçando aquele corpo pequeno, sentia os peitinhos rijos se esfregando logo acima do meu umbigo, tão pequena a Luzia, de dentes tão brancos, e com uma voz docemente baixa e audível e fomos para o quarto; Luzia fechou a porta e apagou a luz, ficou tudo escuro e eu não achava mais o copo de cerveja em cima do criado mudo, e só depois, bem depois, com a luz acesa foi que vi o copo que a espuma da cerveja tinha desenhado uma seca rendinha em sua borda, lambi a rendinha e desmanchei o desenho, bebi o resto da cerveja amarga, quente e Luzia: volte amanha, de dia se quiser!

Foi dia seguinte, de dia que Luzia me contou que não conhecia seu pai: minha mãe se apaixonou por um loiro alto, de bigodes, eu me lembro de um retrato dele vestido com a farda de soldado da Coluna Prestes, uma carabina na mão, o olhar severo, ele, meu pai, junto a um bando de soldados ficaram acampados na praça perto da igreja matriz de Porto Nacional, minha mãe tinha medo de guerra, de tiros, e meu pai foi embora com a Coluna, eles fugiam da polícia do governo e então não deu tempo para eu conhecer meu pai; e sua mãe? onde ela mora?; morreu quando eu tinha ainda uns doze anos, pegou tifo; acho que gosto de você; também gosto de você; e fui gostando e fui ficando mais de uma semana em Porto Nacional.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

A HISTÓRIA DE ARCEBIDES - XII–FOI QUANDO MILITÃO AVISTOU, AO LONGE, A CARAVANA DE UM CIRCO!

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Fugíamos - o cigano Igor, Militão e eu – sempre, um dia ou dois à frente das carroças da tribo de ciganos, galopando em direção a Goiás, para o norte, com o sertão das caatingas dando lugar às verdejantes veredas, se enxergando, no fim do horizonte, negros chapadões, os buritis, solenemente enfileirados enfeitando as veredas; no céu azul pipocam tucanos com seus pesados bicos vermelhos, voando desajeitado, um voo desengonçadamente inseguro, parece que vai cair, exigindo das negras asas o esforço de bater contínuo e rápido, para cima e para baixo, os olhinhos negros – tristes – procurando uma árvore para pousar, o melhor seria se encontrasse uma mangabeira ou um jalapão, porque os buritis se encontram, parece que desde o sempre, ocupados pelas vermelhas araras, barulhentas, de curvados e fortes bicos, e nos úmidos chãos das veredas os preás deixavam seu cheiro e seus redondos caminhozinhos ao meio do capim verde, que faziam lembrar os túneis que as máquinas furavam para o metro de São Paulo passear dentro do chão, feito minhoca, e batia lembranças do Parque Dom Pedro, de jogar baralho valendo dinheiro, de passear de noite no Parque Xangai e ganhar sonho de valsa acertando bolotas de barro na boca do palhaço com o estilingue de forquilha torta e, coisa mais de melhor, nos dias de final de mês, dia de pagamento do ordenado, à noitezinha, tomar banho, passar perfume e ir para a Rua Aurora visitar as casas das bonitas e morenas meninas, levar uma cerveja gelada e dois copos para beber no quartinho dos fundos com uma mineira bonita – Dulcinéia, era o seu nome – fazer amor com ela me chamando de Bem!, e imaginar – sonhando - a vida de homem casado, de sempre deitar acompanhado de mulher, tem que ser uma boa vida, pensava, o corpo sacudindo pelo trote molengo do cavalo que seguia desviando o caminho do leste, indo para o norte, e o que será que eu vou fazer no norte? E o que eu pensava em fazer no norte? Sabia não: até hoje, velho, com reumatismos endurecendo as juntas, acomodado, continuo a ser homem de ideias curtas, com dificuldades de pensar o longe, o depois de amanhã e naquela viagem de fuga, o rápido galope do cavalo fazendo as paisagens mudarem sempre – da cor de palha de milho do sertão catingueiro para o verde das veredas, do elegante voo do carcará para o desajeitado voo dos tucanos - dificultavam ainda mais essa minha pouca inteligência de enxergar o futuro que deus me reservou, e então eu resolvia que o melhor era cutucar o cavalo, apressar ainda mais sua marcha, e ir vislumbrando novas serras, as horizontais chapadas, admirar o repetitivo cantar do bem te vi que voava de buriti em buriti, seguindo os fugitivos viajantes, alertando de sua presença: bem te vi! bem te vi! e o seu piar canto me lembrou do Nestor, um sergipano que trabalhava como apontador de máquinas em São Paulo e sempre que bebia, contava a história de um jagunço que quando caminhava pelos sertões de caatinga, o intestino desarranjou, o recurso era procurar uma moita para fazer suas necessidades, e tão logo encontrou uma moita, abaixou as calças e estava se preparando para agachar quando ouviu o bem te vi cantar: bem te vi! bem te vi! e o jagunço, envergonhado, se alevantou de sua posição de agachado, suspendeu mais que depressa as calças até a cintura e continuou a andar com as pernas apertadas uma na outra de medo de sujar as calças - e Nestor, bêbado, enquanto contava a sua história teatralizava o andar cambaleante do jagunço segurando as calças, e a gente ria de sua imitação perfeita - e o jagunço andou mais um pouco quando viu outra moita, e apertado por demais, baixou as calças, se ajeitou para cumprir suas necessidades e de novo o bem te vi: bem te vi! bem te vi! e o jagunço, novamente, subiu depressa as calças e continuou a caminhar com as pernas coladas uma na outra para evitar lambanças, não era mais nenhuma criança para sujar as calças e andar debaixo do sol quente com as calças fedendo, os intestinos roncando e o jagunço viu outra moita, se arrumou para cumprir a urgente necessidade e o bem te vi: bem te vi! bem te vi! e o jagunço nervoso: fica quieto que meu cu tá aqui! e obrou, aliviou o corpo das necessidades e continuou o caminho, e Nestor dava risadas de sua história - sempre repetida - e repetia também mais um gole de pinga!

Foram mais de duas semanas caminhando para Goiás.

Em uma tarde, o céu azul sem nenhum algodãozinho de nuvem de enfeite, o sol castigando a nuca e as costas de quente, apeamos dos cavalos, para um descanso, no alto de um chapadão, apreciando o lá embaixo: uma imensidão de campo tingido de verde - as veredas -, e daquele alto também dava para enxergar, tão lá embaixo, a nascente do rio das Mortes, que depois ia se engrossando e se serpenteando pelas veredas e suas águas brancas sob o sol se transformavam em espelho obrigando a gente fechar os olhos, melhor então era ver as fileiras de buritis que pareciam de brinquedo de tão pequenos vistos daquela altura do chapadão, os urubus voando rente com nossas cabeças, nas alturas, e lá e embaixo, um fiapo cor de areia riscando o verde das veredas, uma estrada de chão que acompanhava as curvas do rio das Mortes, e foi quando todo aquele mundão de silêncio se assustou com o urro de um leão – ourrrourrrurrr! –; mas será que tem leão aqui?; tem não, o que tem aqui é onça suçuarana, cor de vinagre que come borregos e cabritos; mas isso não é urro de onça. E não era uma mentira: o urro bateu nos muros do chapadão e reverberou ecoando de volta - ourrrourrrurrr!; e foi daí que eu que os olhos do Militão começaram a brilhar feito que tinha um sol dentro deles, e aquele brilho foi se esparramando pelo todo de seu rosto, o homem se transformava, sorria por inteiro ao ouvir o novo ourrrourrrurr!: é um leão! é um circo! dá para ver, preste atenção, é uma caravana de circo! é o circo, o circo!; será que endoideceu o Militão?

Tinha endoidado não: como o urro do leão, não era mentira, não era engano dos ouvidos deu para ver lá embaixo, na estrada arenosa - meio ao infinito verde das veredas - caminhões, uns quatro ou cinco, em fila, colados um no outro - brummmm! brummmm! e Militão apontava enquanto repetia, gritando para ele mesmo: é um circo, é o circo! e foi saindo daquele estado de sonho, olhou para mim, mais do que para o cigano e disse: voum'imbora com eles, adeus!; montou o cavalo e tocou para a planície, em direção aos caminhões do circo, forçando o cavalo a forte galopar, o cavalo escorregando as patas dianteiras pelo íngreme barranco do chapadão e Militão berrou: vem comigo para a estrada, vem!; e eu, sem muito pensar e sem saber o porquê, toquei o cavalo na tentativa de alcançar Militão que vez ou outra olhava para trás e dava para ver que ele ria de contente quando notou que eu ia em direção ao circo e eu pensava será que ele está imaginando que vou junto dele? não vou não, quero vida de andar com circo não!

Alcançamos o planície e os cavalos – agora parelhos - galopavam em direção à caravana; os caminhões seguiam devagar com dificuldade de vencer os sulcos de areia que se formavam na estrada e um, mais pesado, entalou, acelerou forte para escapar e suas rodas giraram em falso, jogando areia para cima e cavando um enorme buraco na areia e o pesado caminhão que puxava a fila entalou, a caravana parou meio a vereda, os homens pulando dos caminhões, o leão urrava bravo em sua jaula amarrada na traseira do caminhão atolado, crianças corriam pelo mato e atiravam pedras nos preás e nas araras, as mulheres aproveitando a parada, faziam suas necessidades atrás de uma moita de mangabeiras, e o caminhão entalado roncava forte, queimava os pneus, e nos juntamos aos homens do circo e ajudamos a colocar capim e uma taboa no buraco de areia, embaixo dos pneus, agora ele poder sair: engate a reduzida e afunde o pé no acelerador, berrou um italiano forte, rosto vermelho do sol, e a gente empurrando o caminhão – brummm!brummm! – viva! escapou do buraco depois de solavanco forte: viva! Viva! berrava Militão, entusiasmado, meio fora de si, abobado na alegria de seu sonho.

Na carroceria do caminhão em letras vermelhas: Grande Circo Veneza! Militão, à vontade, se apresentou ao italiano que agora fumava um cigarro de papel e suava molhando a camisa, gotas de suor caiam do rosto encharcando o peito: meu nome é Militão, já trabalhei em circo como cantor; e Hipólito enxugou o rosto de suor com a manga da camisa: sabe, mesmo, cantar?; sim, quer ouvir?; e Hipólito, imediatamente, gritou alto: o rapaz aqui quer cantar em nosso circo, atenção; e o pessoal do circo foi se aproximando, as mulheres deixaram as moitas onde faziam suas necessidades, filhos nos colos, os meninos deixaram de atirar pedras nos preás, os operários e artistas deixaram os caminhões e fizeram um semicírculo, sentados no chão, e foi inventado ali um palco, meio da infinita verde vereda e o seu fundo era o chapadão de negras pedras, e Hipólito: pode iniciar sua apresentação de cantoria, primeiro com voz feminina e Militão com voz agudíssima cantou e dançou requebrando sensualmente os quadris:

Tomo um banho de lua
Fico branco como a neve
Se o luar é meu amigo
Censurar ninguém se atreve
Mas é tão bom sonhar contigo
Oh! luar tão cândido…

e foi entusiasmando seu público - artistas e trabalhadores do Grande Circo de Veneza - e Hipólito gostou da apresentação – mostrava isso com um largo sorriso em seu rosto – e ordenou que Militão continuasse sua apresentação e sob o silêncio das grandes veredas, agora com voz masculina,Militão não se fez de rogado, e soltou a voz aveludada, masculina:

Luna que se quiebra
Sobre las tinieblas de mi soledad
Adónde vas?
Dime si esta noche tu te vas de ronda
Como ella se fue;
Con quién estás?…

e todos aplaudiam, contaminados pela beleza da voz e da elegância da apresentação e ao término da segunda canção,Hipólito disse: quer cantar no Veneza?; sim, quero; então venha com a gente, tem lugar para cantor.

E Militão foi se aproximando de mim, seu rosto era só felicidade: voum’imbora Arcebides, esta é minha vida: o real, para mim, é a apresentação, é o palco; boa sorte, que deus lhe ajude, vá mesmo; você pode devolver o cavalo para o cigano?; posso; e Militão me abraçou forte: tomara que você encontre seu leste; vou encontrar, adeus, amigo!; adeus!

quinta-feira, 15 de maio de 2014

A HISTÓRIA DE ARCEBIDES–XI–E FOI QUANDO A TRIBO DE CIGANOS RECEBEU SEU IGOR COM FESTAS E HONRARIAS!

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“Vaguear pelo mundo, sem se possuir nada e sem ter necessidade de coisa alguma, a não ser do pão de todos os dias; não humilhar ninguém; percorrer a terra, tranquilamente e sem ninguém nos conhecer! ...Também eu quero viver assim.” A mãe, Maxim Gorki.

Continuo, então, ao que andava a te contar,

Foi em uma madrugada que encontramos o acampamento da tribo de Igor no pé da serra Geral: umas quatro carroças rodeando uma tenda enorme, o toldo descorado pelo sol e pelas chuvas, puído, mais ao fundo, separadas tendas menores – uma aqui e outras ali -, no meio da praça, perto da grande barraca de lona, uma fogueira ainda acesa – o fogo minguando de cansado de alumiar a escuridão para espantar a onça suçuarana que não apareceu, dois cachorros magros, costelas à mostra, ladraram forte, bravos, dentes à mostra e Igor ralhou bravo: quieto listrado, se esqueceu do dono? e foi só ouvir a voz grave de Igor que listrado e o outro cachorro, ganiram um caim! caim! longo, os rabos girando forte, os pintos não segurando a urina, se mijaram todo, e das tendas foram saindo gentes: ciganos com os olhos remelentos, mulheres com os negros cabelos despenteados, peitos desnudos, uma velha de cabelos brancos: meu filho, meu filho! e todo aquele povo acordou barulhento, a fogueira teve seu fogo reanimado com sabugos de milho, os tocos de angico se abrasearam vermelhos e soltaram chamas amarelas, o caldeirão com água para ferver colocado no centro da fogueira, sorrisos, abraços: e por onde esteve por tão longo tempo?; andei ficando preso; e te soltaram?; não: fugi da cadeia com a ajuda destes dois aqui; e foi só então que fomos – Militão e eu – notados pelo bando de ciganos.

O dia foi clareando devagarmente, dando tempo para que a tribo de ciganos se visse toda acordada e o silêncio da madrugada foi sendo quebrado – pouco de antes dava para ouvir o barulho das minhocas fazendo tuneizinhos dentro da terra - por uma crescente onda de misturados sons, uma algazarra infernal de vozes, sorrisos, gargalhadas, cantos, um rapaz pegou o violão e ponteou uma música alegre, Igor entrou em sua barraca e ficou por lá em amores com as moças que havia roubado e enquanto um velho cigano afiava a faca para matar o cordeiro, outro colocava mais tocos de angico na fogueira e o sol apareceu – plenamente - na barra do horizonte.

Uma senhora, cabelos brancos, peitos caídos, chegou até onde Militão e eu estávamos - eu um pouco desorientado, já desacostumado que andava de ouvir tanto barulho, monte de cores, gentes, alegrias – e ofereceu a cada um caneca com café quente – ralo, doce – e perguntou pelo nosso nome - me chamo Luiza, disse - , e apontou para duas tendas que ficavam debaixo de um pé de jenipapo: estão vazias, querendo descansar...Terminei de tomar o café e senti bater em todo dentro de mim uma canseira boa, o café tirou o amargo de losna que tinha na boca, um rapazinho cigano desarreava os cavalos, senti uma preguiça boa de nada fazer, fechar os olhos e dormir, um nada pensar, desculpe-me pensando que o mundo gira de qualquer jeito, tanto faz eu estar aflitamente pensando quanto lerdamente quieto, ocioso no pensar e no fazer, e deitei na tenda debaixo do pé de jatobá e dormi.

Dormi fundo, pesado e acordei com o barulho de música lá fora, senti o delicioso cheiro da carne do carneiro assada na fogueira, os ciganos cantavam, bebiam festejadamente, não cabiam em si de felicidades, dançavam, os homens com olhares para os corpos morenos das mulheres que volteavam, rodopiavam - sensualmente – ao ritmo de uma música alegre, libertadora, e aproveitei para ficar apreciando aquilo tudo de dentro da tenda, quieto, sentindo que aquele mundo não era o meu, o mundo dos gerais, das veredas, um mundo mais quieto e talvez um pouco mais triste e contido. Saí da tenda, comi carne de carneiro assada, me ofereceram e tomei goles e goles de uma forte bebida, me senti embriagado, a língua grossa dentro da boca e os ouvidos, mais sensíveis, trazendo a música para dentro da alma e os olhos fixos nos corpos das ciganas que rodopiavam em volta da fogueira, as chamas amarelo avermelhadas dos troncos de angico subindo e queimando o ar, aquecendo meu ventre, e surge uma grande necessidade de mulher, de tocar em morenos corpos, beber seios, roçar lábios, sugar salivas, sentir as ondas de dois corpos unidos, acho que o domina o homem é o que tem no meio das pernas...Voltei, cambaleando, para a tenda e tornei a dormir.

Acordei, já escuro, o gosto de losna amargo tomando outra vez conta da boca, a saliva grossa, o ar carregado e fedido dentro da barraca, saí para mijar, tudo já escuro, as estrelas dominavam o céu negro, uma estrela caiu e fiz um pedido: quero mulher, e me lembrei das moças da rua Aurora, nas noites do dia de pagamento, na sala, um sofá vermelho e a gente bebia cerveja gelada, as moças gostavam de beber cinzano, faziam amor com hora marcada, sentavam em meus joelhos e me chamavam de Bem, Benzinho, vamos logo meu bem! Voltei para a tenda e deitei, os olhos fechados para pegar novamente no sono: senti no escuro da noite um vulto clareado pela luz das estrelas que entrava na tenda e senti delicadas mãos tocando meu corpo, se enfiando abaixo da camisa, lábios grossos – carnudos - procurando os meus, os seios firmes, grandes e longas pernas tomando conta de meu corpo, as mãos pequenas ousando liberdades maiores, se enfiando calça a dentro e acariciando minhas partes, eu querendo cegamente tatear o rosto e desvendar sua beleza, e ela fugindo do meu tocar, só ela se dando ao direito de tudo fazer, as roupas atiradas ao lado dos corpos nus, quem seria? mulher casada ou moça virgem? quem seria que quietamente me dominava, mas isso de saber quem era em alguma importância? naquela tribo eu só conhecia Igor e a velha de peitos caídos que me ofereceu café, aqui seios fortes, redondos, e dava para eu escutar o seu respirar ofegante e o meu coração batendo forte, fora do compasso de tempo, batendo apressado, e o seu tum! tum! tum! chacoalhando meus ouvidos. E, silenciosamente, tal como havia entrado o corpo saiu nu da tenda em direção à fogueira, as nádegas fortes, os longos cabelos chegando às costas, e com o andar silencioso, amassando as moitinhas de capim com o peso de seus miúdos pés e foi sumindo, devagar se evaporando pela noite, não olhou para trás, lá fora a música foi diminuindo e se escutava o coaxar de um sapo e o cricri!...cri! de um grilo noturno, até que o silêncio voltou a dominar o mundo!

De madrugada Igor chegou na tenda em que dormia e vi que ele já vinha acompanhado de Militão e acordei com seu falar: temos que palestrar, Arcebides!; e os meus olhos – acomodados com a escuridão da madrugada - se recusando a obedecer a ordem de abrir, queriam continuar descansando fechados; Militão boliu sorrindo com minha preguiça: tem vergonha não? tanta preguiça que nem parece mineiro; e Igor, agachou-se, sentou em cima dos calcanhares e com sua voz grave e calma: tenho que fugir senão logo a polícia morde meu calcanhar; nós, ciganos, resolvemos que iremos para o norte, região dos Goiás, comigo sempre um ou dois dias à frente da tribo e agora vocês é que decidem se vão mais uns tempos comigo ou se querem pegar outro caminho, sozinhos; os cavalos, agora três, estão selados, prontos, vamos?

E foi assim que o silêncio e o descanso da madrugada deu-se por finado: um pouco em antes dava para escutar o cair do sereno para orvalhar as plantas, e agora, tão de repente, ainda escuro, o céu coalhado de estrelas, e já vem a brava necessidade de se tomar decisões, para onde vou? será que acompanho, mais o Militão, o cigano Igor nessa fuga sem fim, indo agora para o norte e eu querendo ir para o leste? mudo eu o meu rumo? deus do céu, careço de repouso de tanto fugir; e eu comigo mesmo ali pensando e os olhos de Igor exigindo respostas; o Militão, ali do meu lado, tomou a iniciativa de falar: qualquer paixão me diverte, até a hora que eu encontrar um circo para eu poder cantar e dançar eu sigo vocês para qualquer ponto cardeal; então vamos, falei e concordei por fora, mas comigo mesmo decidido que o que eu carecia era de um ou dois dias para eu saber tomar um rumo mais meu, de acordo com o que eu queria, só que eu não tinha certezas do que queria e tinha então que resolver um rumo a tomar, mesmo sem certezas de saber o que, realmente, eu queria.

O rapaz que tocava alegres músicas no violão chegou com três cavalos arriados; Igor tomou as rédeas do maior, um cavalo negro, montou e do alto do animal nos olhava pedindo pressa: embora antes que clareie o dia!