segunda-feira, 20 de abril de 2009

Memórias...

Acostumei-me, logo cedo, a morar longe de casa, para estudar. Somente o primeiro ano, do antigo curso primário, foi feito comigo morando em casa, com meus pais; não havia escola onde eles moravam e o segundo e o terceiro já foram feitos em escolas rurais, perto da casa de uma irmã. Chegou a vez de cursar o quarto ano, para “tirar o diploma de grupo”; e lá fui eu morar em Pedregulho, na casa de uma tia, que improvisou, na sala de sua casa, uma cama, onde eu dormia. Uma nova rotina se estabeleceu: ia de manhã para o grupo, à tarde fazia o “curso preparatório para o exame de admissão” e à noite, às 19:00 h, ia à reza, na Igreja, com minha tia; cumprido o ritual da reza do terço, íamos até a casa da minha avó, “tomar a benção”; lá morava um primo, que, também longe da casa dos pais, tinha ido para a cidade estudar. Não éramos amigos.
No início, era, para mim, tudo estranho, cheio de novidades e de muitos medos: de dormir na sala sozinho, de levar uma surra dos maiores, no grupo escolar, do cachorro que, todas as manhãs, ao ir para a escola, teimava em me perseguir...
No Grupo Escolar, havia fila para tudo: para entrarmos na sala de aula, para irmos para o recreio e para, felizes, sairmos para a rua, ao término das aulas, ao meio dia. Filas onde fiz minha primeira grande amizade e encontrei com Eliana, primeira e querida namorada; eram organizadas em ordem crescente, por tamanho, e, na da minha classe, eu era o primeiro, ao lado de um japonês, o Nho Chito, colega de sala, de fila e de carteira; sim, também de carteira, porque, naqueles tempos de outrora, sentávamos em dois, nas antigas carteiras duplas.
Aquelas carteiras - com suas bases de ferro torneado, tampos feitos com madeira de lei, envernizadas, bonitas, com os furos para encaixar os tinteiros de vidro, a cavidade para guardar as canetas de pena, lápis e o espaço embaixo para os livros e cadernos tinham vida própria, se transformavam em uma “classe” ou sala de aula à parte; era nelas que a vida escolar acontecia, com todas as trocas possíveis: confidências, fofocas, lições de casa, “colas”, lanches, ajudas e caguetagens; era, na verdade, o depositário da vida escolar real, longe da chamada, das cópias, lições, ditados e do “diário” da professora...
Éramos, o Nho Chito e eu, os primeiros da fila e sentávamos na carteira mais próxima da lousa, o que era bom para “copiar” as lições, e, também, entre as mais próximas da mesa da professora, o que era ruim pois facilitava sua vigilância e freqüentes puxões de orelha.
Naquele dia, depois da cópia do “ponto” de Geografia, feita às pressas, houve tempo para um cochicho:
- “Hoje vai ter briga na saída. O Mário da Chicuta quer pegar o Chupança. Vou ver, vamos?”
- “Mas onde que é isso, de briga?” perguntei.
- “Logo ali no começo do cafezal...” Fomos, solene e furiosamente, calados pelo berro estridente da professora:
- “Quietos! já disse. Terminaram já a cópia?” Seus olhos percorreram rapidamente nossos cadernos e como, efetivamente, já havíamos terminado, reclamou da letra feia e da falta de capricho.
Na saída, me afastei da turminha de sempre, responsável por carregar a pesada bolsa da Dona Cotinha, e segui o novo amigo até o “ponto” das brigas, há uns quinhentos metros do Grupo, no final de um quarteirão onde se juntavam a linha de trem e o cafezal. Fez-se a roda e os dois briguentos se enfrentaram sob nossos olhares e torcida. O Nho Chito começou a torcer pelo Chupança e eu o acompanhei solidário. Perdemos. Um soco do Mário na cara do gordo Chupança transformou seu nariz em uma bica de sangue; o rosto vermelho sangrando, berros, palavrões; o sangue descendo pela camisa branca assustou a todos e, como em todas as brigas, nunca se sabe de onde, aparece a turma do deixa para lá. Gostei da briga!
Mas, foi aí que, sem mais nem menos, o Nho Chito se põe a correr, pernas para que te quero: a capanga onde carregava os cadernos voando pelos ares, querendo escapar do corpo; fugia de seu pai, que morava por aqueles lados, logo abaixo da linha de trem, junto à Mina, no meio do cafezal, e se aproximava da roda da briga, e já àquela hora, bêbado e bravo.
Foi a primeira vez que vi o seu Takamura: tinha seus sessenta anos ou mais, baixinho, braços grossos de tamanduá, mãos redondas, com as unhas grandes muito sujas, sobrancelhas com fios grossos e compridos cobrindo os olhinhos pequenos, uma boca com lábios salientes e poucos dentes e o rosto coberto por ralos e brancos fios de barba. Feio.
A turma que assistia à briga, liderada pelo Mauro, começou a zoar com o velho que, embriagado, berrava palavras incompreensíveis, cambaleava e, nervoso, nos ameaçava, balançando no ar a cesta cheia de verduras que trazia para vender na cidade. Em um movimento mais brusco, lá se vai para o chão o pai do amigo e sua cesta de verduras, esparramando pés de alface, folhas de couve e tomates pela linha de trem. Corremos todos; fui para casa carregando uma tristeza ou uma angústia, não sei bem o que...Mas muito triste, certamente. Bebia muito o seu Takamura.
No dia seguinte, o Nho Chito, em um raro momento de folga, entre as cópias, ditados, leituras e outras tarefas - que quase não dávamos conta de fazer, repentinamente, me disse:
- “Ele não é meu pai.”
No Grupo Escolar, o ritual de saída, ao término das aulas, ao meio dia, era diferente das escolinhas rurais que havia freqüentado; naquelas, nós, em dias de sol, ficávamos esperando que sua luz passasse pela porta e alcançasse a mesa da professora: era a hora da saída. E a professora, sentindo nos pés o calor do sol quente, consultava seu relógio de pulso, com grossas pulseiras de ouro, e com sua voz suave, nos comunicava, solene:
- “Vamos guardar o material; hora da saída”; o zunzum era geral e aguardávamos apenas o delicado “Até amanhã, vão com cuidado” para sairmos a passos lentos até a porta e, a partir dela, como se fosse dado o tiro de largada para uma corrida de cem metros rasos, partirmos a toda: felizes, sorrindo, numa algazarra que lembrava bandos de papagaios, maritacas ou periquitos.
Já no Grupo Escolar era diferente. Não sabia, ainda, onde o sol devia chegar para avisar do término da aula. Assim, era sempre pego por uma grata surpresa quando ouvia a voz forte de Dona Cotinha: “Vamos guardar os objetos. Hora da saída. Devagar...” Felicidade indescritível; enfiávamos, de qualquer jeito, os cadernos e livros nas bolsas, nas capangas ou nos embornais, dependendo das posses; eu carregava uma capanga de brim azul, mas todos cumpríamos esta “obrigação” com a maior das alegrias: afinal era a rua que nos esperava.
Arranjadas as bolsas, capangas ou embornais, aguardávamos, todos, ansiosos, a ordem: “Fila para sair: os menores na frente. Sem correria e quietos, por favor”; ao final da frase, o Nho Chito e eu já nos encontrávamos na porta da sala, última do andar térreo, e dali olhávamos, ansiosos, o amplo e longo corredor.
A meta que nos impúnhamos era sermos os primeiros e ganhar a rua; assim, se vinha, em sentido oposto ao nosso, uma fila de alunos de outra classe, o que fazíamos era deixar nossos colegas para trás e disparávamos pelo imenso corredor até onde o mesmo se encontrava com o outro menor - que dava acesso à rua - e lá ficávamos plantados, parados aguardando o restante de nossa classe: era a maneira de marcarmos posição, “cercando” e impedindo a passagem da outra fila em nossa frente.
Um dia qualquer, mas, com certeza, na primeira semana de aula, estávamos “guardando posição” no corredor, quando me encontrei com Eliana, que, pequenina, puxava a fila do primeiro ano da classe da Dona Antônia, que ficava no final oposto do corredor. Tínhamos, naquele dia, apressado bastante o passo, corrido mesmo, e os colegas de nossa classe estavam bem atrás: eu e o Nho Chito “guardando” o local, fazendo com que a fila do primeiro ano esperasse por nossa saída. Ficar ali parado - o Nho Chito e eu, com nossos colegas de classe lá atrás, vindo a passo normal - e com a outra fila completa em nossa frente era uma situação constrangedora, embora repleta de um estúpido orgulho infantil. Às vezes, também, ali parados, dávamos de cara com a professora da tal classe prejudicada pela nossa impertinência; as conseqüências, nestes casos, eram castigos: entre outros, faziam, por exemplo, muitas vezes, nossa fila esperar pela passagem de todas as outras classes do Grupo, outras vezes, nos encaminhavam, o Nho Chito e eu, para a diretoria, onde nos esperava o meigo e educado sr. Everton, o diretor, que nos dava conselhos e sempre nos ameaçava que da próxima vez.... Mas, naquele dia, não houve professora ou inspetora de alunos a nos vigiar e foi lá, na esquina de um corredor com outro, que ficamos frente a frente: Eliana e uma coleguinha, a Marina, na ponta da fila do primeiro ano, e eu e o Nho Chito, aguardando o restante da nossa classe. Nos olhamos, sorrimos com os olhos e ela, de supetão:
- “Quantos anos você tem?”.
- “Dez, e você?”
- “Sete.”
Começou ali nosso namoro.
Linda, morena, dentes brancos, cabelos longos e lisos, magricela, em seu uniforme de blusa branca e saia azul marinho; descobri, logo mais tarde, que era irmã de um colega de classe, que, um pouco por causa dela, se tornou inseparável amigo.
Com o tempo passei, mesmo em dias em que não havia briga para assistir e torcer, a deixar a turma que carregava a bolsa da Dona Cotinha e a acompanhar o Nho Chito na saída para casa. Percorríamos um outro caminho: íamos por trás do Grupo e andávamos mais de seiscentos metros pela linha de trem da velha Mogiana; neste percurso, disputávamos prova de equilíbrio sobre os trilhos, apostávamos corrida, tendo que, sempre, pular um dos dormentes, mas o melhor mesmo era rodar o arco que Nho Chito deixava escondido sob um pé de café. Também conversávamos muito e nos tornamos amigos. Combinávamos, e íamos, nadar escondido na cachoeirinha do poço fundo, roubávamos frutas dos quintais e devaneávamos o tempo todo, com o Nho Chito demonstrando, já em sua infância, sua irresistível vocação para detetive. Líamos gibis e tentamos fazer, como os índios e mocinhos norte-americanos, o pacto de sangue: só não o concluímos por falta de coragem de “enfiar” nos dedos a ponta fina e enferrujada do compasso escolar para trocar nossos sangues; valia, no entanto, a intenção: passamos a nos considerar irmãos.
Encontrava-me com a Eliana no cinema. Ela e suas amiguinhas sentavam-se em uma fileira e eu na fileira de trás; começava o filme, as luzes se apagavam, ela cruzava os braços magros sobre o peito e as mãos ficavam sobre os ombros para que eu as segurasse. Durante o filmem acariciava suas mãos, alisava seus cabelos e era só: apesar de imberbe, sem nenhum traço de puberdade, ficava extremamente excitado com aquelas carícias.
Quando um motivo qualquer impedia a tão querida aproximação, assistia aos filmes e torcia para que o Durango Kid, o Zorro ou o Hopalang Cassid matasse logo todos os índios que cabiam na tela. O motivo impeditivo de nossa aproximação tinha um nome: seu pai ou sua mãe a acompanhava ao cinema. Descontávamos na fila do grupo escolar, onde trocávamos olhares e sorrisos; na saída, ela sempre acompanhava Dona Maria Aparecida, sua mãe e professora do terceiro ano.
Um novo bar havia sido inaugurado na cidade: o Itamarati, homenagem ao dono, seu Itamar. Nada parecido com os bares sujos de lá: tinha as mesas cobertas com toalhas brancas, bancos com almofada e até painel luminoso que, à noite, era orgulhosamente aceso: um luxo só. Em suas limpas vitrines, entre quibes, rolinhos de salsicha e ovos cozidos, os enormes pastéis, nosso sonho de consumo, impedido de realização pelas fracas rendas familiares.
Como fazer?
Fazer assim: roubando garrafas e vendendo-as. E aí vem uma outra história....
Meu cunhado havia comprado o bar que pertencia ao meu pai e eu o ajudava em algumas tarefas. Uma delas era “empalhar” e ensacar as garrafas vazias. Explico: toda a cerveja, guaraná e soda, consumida nos bares de Pedregulho, vinham, por trem, de Ribeirão Preto. Imagine agora um cone, feito de palha de arroz, que “vestia” as garrafas, que assim eram ensacadas para serem colocadas no trem, com destino a Ribeirão Preto, em viagem pela lerda e barulhenta Maria Fumaça, da Mogiana; operação que antecedia às novas encomendas. Eu era responsável pelo empalhamento e por ensacar as garrafas, ganhando, com isso, alguns trocados; outros, vinham de meu trabalho como engraxate, mas estes eram comprometidos com a compra de cadernos ou outros materiais escolares e ajuda em casa.
Os pastéis tinham que vir das garrafas roubadas. Era assim: à noite, o Nho Chito e eu íamos até o quintal de uma família de japoneses, que tinha o bar mais movimentado da cidade, e roubávamos do seu Antônio duas ou três garrafas cada, que eram guardadas no porão do bar de meu cunhado, para serem, posteriormente, vendidas - assim que conseguíamos juntar meia ou uma dúzia - ao mesmo seu Antônio. O dinheiro era, em confiança total, guardado por mim, para a futura compra de guaraná e pastéis, no Itamarati, sempre aos domingos, após a missa das sete.
Uma tarde, estava lá com meu trabalho de “empalhar” garrafas, quando ouço a voz do seu Antônio, no bar. Conversava com meu cunhado, sob meus ouvidos atentos; resumindo, o esguio e magro japonês disse ao meu cunhado que desconfiava que nós estávamos roubando garrafas do bar para vender para ele. ...Havíamos sido descobertos.
Fez-se silêncio, a conversa havia terminado e, pouco depois, chega ao porão, onde eu empalhava e ensacava garrafas, meu cunhado, com sua voz de barítono, carinhoso e educado. Após um intróito qualquer, vai ao assunto:
- “Vocês têm vendido, mesmo, garrafas para o seu Antônio?”
- “Sim, padrim.”
- “E, quero saber, de onde vocês estão pegando as garrafas? Daqui de casa?”
- “Não, padrim.”
- “Onde vocês estão arrumando essas garrafas, então, você pode me dizer?”
- “Roubamos, de noite, lá do seu Antônio mesmo.”
- “....................................”

O bondoso cunhado e padrinho, homem por demais honesto, sério e cheio de princípios, foi pego de surpresa; abismado e incrédulo, escondeu, no fundo da alma, um sorriso para sério:
- “Não quero mais isso, você promete?”
- “Sim.”
Era uma sexta feira e, no domingo seguinte àquela conversa, aconteceu nosso último “brunch”, regado a pastel e guaraná, no Itamarati. E ... acabou a história!
Continuava meu namoro com Eliana e me sentia apaixonado por ela. Sentia, ao acaraiciar suas mãos sobre os ombros, que meu coração acelerava. Resolvi que queria sentar ao seu lado no cinema e não mais na fileira de trás. Queria abraçá-la, colocar, como os adultos, meus braços sobre seus ombros morenos e beijá-la. Por orientação de sua mãe ou por motivo que não me contava, ela não deixava, me deixando furioso, ameaçador...Mas ela, toda dona de mim, sabia que minhas ameaças não se cumpririam e sobrava eu ficar lá, torto para frente, segurando suas mãos e querendo muito mais. Não via o filme direito e também não a beijava como queria. Limites impostos por ela. “Um dia venço”, pensava.
Em um sábado, no cinema - não havia sessão todos os dias - estava programado um filme de guerra e por lá apareceu toda a colônia japonesa de Pedregulho: umas cinco ou seis famílias e, entre estas, o seu Takamura, sua mulher, dona Maria, e meu amigo Nho Chito. Infelizmente, para mim, veio a mãe da Eliana. Deixei meu lugar de namoro e fui me sentar ao lado do amigo. Conversamos, contamos histórias, falamos e falamos até que o filme começou. Escuro e silêncio: sem as mãos da Eliana para segurar e tentar - sempre e persistentemente - sentar ao seu lado e beijá-la, fiquei atento ao filme. Não me lembro do enredo! Lembro-me de que era de guerra; parece-me que com os bravos soldados americanos matando corajosamente os covardes japoneses...Sei lá. O que sei é que, em hora a mais imprópria, com o soldado americano beijando a mocinha, ouvimos alto: “Bibo!!!...Bibo!!!”
Era o seu Takamura, que, tendo lá seus motivos, mesmo fora de hora, resolveu comemorar: sim, cada “Bibo!” era um “Viva!”.
Vaias, sapatos batendo no chão e berros pedindo silêncio:
- “Quieto, Japonês.”
Outro mais agressivo:
- “Quieto, japonês de merda..verdureiro filho da...”
Nho Chito saiu sorrateiramente do cinema, aproveitando a escuridão da sala. Entre ficar e assistir ao filme, longe da Eliana, e acompanhar o amigo, resolvi acompanhá-lo: que não quis conversa, nem companhia.
- “Não é o meu pai.”
Eu estava na segunda série de ginásio quando a Eliana mandou um recado: nosso namoro estava terminado. Fiquei inconsolado. Motivo? Não disse à Marina, sua porta voz.
E eu que não havia aceito pedido de namoro da maravilhosa Marlene, que deixava beijar e sentar ao lado no cinema, levo, agora, um fora deste... Não me conformava. Uma tristeza grande se apoderou de mim. Eu estava realmente apaixonado por ela. Tentei na semana seguinte, mandei recados, fui à sua casa com seu irmão ....mas nada: minha doce e linda moreninha havia, realmente, decidido me deixar.
No ginásio, minha amizade com o Nho Chito tinha altos e baixos: momentos – meses, mesmo - de muita proximidade, brincadeiras, farras, e momentos de um certo, porém amistoso, afastamento.
Continuávamos amigos.
Pedregulho era, e continua sendo, uma cidade muito pequena. À busca de trabalho, nos mudamos para Ribeirão Preto: meus pais, minha irmã e um irmão.
Continuei lá o Curso de Formação de Professores, que havia sido iniciado em Pedregulho. Alugamos uma casa de três cômodos, em um bairro distante, e fomos à luta. Como eu estudava de manhã, procurei e consegui empregos, os mais diversos, à tarde. Certa tarde estava, a trabalho, na zona de meretrício, realizando cobranças para uma loja de eletrodomésticos de um italiano, quando encontro ninguém menos que o amigo Nho Chito. Nos abraçamos, matamos saudades e...lá foi ele morar em casa, até conseguir emprego e poder pagar pensão. Assim, dormíamos na sala ele, eu e meu irmão, e, no quarto único da casa, meus pais e minha irmã.
Conseguiu seu primeiro emprego, como garçom, em um restaurante, isso após ter tentado – e, no teste, queimado um terno de linho - trabalho em uma tinturaria, na Avenida da Saudade. Morou conosco por uns três meses...Conseguiu trabalho na Hidroelétrica de Furnas, em fase de construção.
Muitos anos se passaram.
Em São Paulo, já casado, pai de duas filhas, atendo ao telefone:
- “Orlando?”
- “Sim!”
- “É o Yosito, tudo bem?”
Pois é, o nome do amigo era Yosito: Nho Chito era apelido.
- “Puxa vida, tudo bem. E você, Yosito, como está? Que saudades, rapaz! Vamos nos encontrar.”
- “Peguei seu telefone na lista...” Continuava com sua mania de detetive, o amigo japonês. Estava, naquela época, morando em um apartamento alugado, muito perto do trabalho, e o telefone estava em nome do proprietário. Mas...o amigo Yosito me contou histórias de todos os antigos colegas de Pedregulho, sabia o telefone de todos, havia visitado alguns...estava casado, tinha três filhos, e havia conseguido, por concurso, um bom emprego público em São Paulo. Nada mais de ser escriturário em hidroelétricas: agora, um glorioso tesoureiro, em importante repartição.
Mudei daquele para outro apartamento e lá uma tarde recebo o amigo e os três filhos.
Os anos continuam passando.
Mudo de novo, agora para um apartamento maior, que havia comprado, e...surpresa, me vejo vizinho do velho amigo. Nossas famílias se conhecem, nossas mulheres trocam receitas: amplia-se a amizade.
Sua filha do meio, uma bela menina-moça mestiça, vai completar 14 anos e nos queriam na festa.
Banho tomado, presente caprichosamente embrulhado, vamos à festa. Minhas filhas se enturmam com as garotas, minha mulher se enfia na cozinha para ajudar Marilene, esposa do Yosito...que me vê e, sorrindo, vem em minha direção, acompanhado de um japonês muito parecido com ele. Aproxima-se, me abraça sorridente, não cabendo em si de felicidade, e me apresenta o japonês que o acompanhava:
- “Orlando, este é o Shiguenari, meu irmão.”
Surpreso, pensava: irmão? Mas nunca teve irmão este japonês louco: será mais um de seus delírios de detetive?
Seguem os protocolares muito prazer, o prazer é todo meu....
Marilene o chama na cozinha e fico só com seu “irmão”.
E vem a história, contada, agora, pelo irmão Shiguenari:
O seu Takamura era, na verdade, avô do Yosito e seu. Moravam todos juntos na Mina, quando seus pais resolveram mudar à busca de trabalho. Caminhão à porta, quando o Yosito resolve embirrar de não ir, xinga o pai e, teimoso, corre para o colo da avó, Dona Maria. Sua mãe, ao tentar apanhá-lo do colo da avó, para colocá-lo na boleia do caminhão, leva um tapa no rosto. Confusão formada e seu pai, irritado, resolve largá-lo lá, com os avós.
- “Minha mãe sofreu muito, queria porque queria buscá-lo, mas o velho não deixava”, disse Shiguenari, que completou:
- “Como deve ter sofrido, meu irmãozinho, coitado!”
Lágrimas nos olhos do irmão e nos meus!
Aparece o Yuri, filho mais velho do Yosito, com uma bandeja com pastéis e copos de cerveja gelada.
Comemos pastéis, bebemos cerveja e conversamos: “o que você faz?”, “o que eu faço?”, “quantos filhos você tem?”, “eu tenho duas.”, “moramos em São José.”, “meu pai morreu no ano passado,”, “o meu morreu em Ribeirão, mas faz tempo...”
Acabou-se a festa.
Mesmo vizinhos de prédio, pouco nos víamos. Era um dia, casualmente, no metrô, outro dia na pracinha do prédio, com as promessas de sempre: vamos almoçar juntos, vamos nos visitar, vamos sair para jantar... as crianças estão crescendo, precisamos nos ver. Lembra do Sinal Fechado, do Paulinho da Viola, belíssima música!? Igual.
Mudei daquele apartamento para me refugiar, no meio do mato, na serra da Cantareira.
Reunião do Condomínio, posse da nova diretoria. Veja só: o Yosito, não só mudou para a Serra, como é diretor financeiro do Condomínio. Novas promessas de encontros, jantares...que a qualquer hora acontece. Até lá, como no Sinal Fechado, continuamos a, casualmente, nos encontrar e prometer - com a maior sinceridade - que “temos e vamos logo nos ver”.
Será?

terça-feira, 14 de abril de 2009

TERCEIRO TEMPO NO LÍRICO

Já há uns dois ou três anos, corto os poucos cabelos que me restam no Salão Lírico. O Lírico é um dos poucos antigos salões de barbeiro do centro de São Paulo que ainda não foi parar na lista do Sebrae, aquela dos pequenos negócios que fecharam suas portas. Estou falando do Centro de São Paulo, aquele onde as coisas realmente aconteciam: tinha o Mappin, o Leão do Lido, o Teatro Municipal, o Cine Paissandu... Enfim, do centro onde borbulhava vida, pessoas, homens, mulheres, famílias em busca de prosa, de encontros, de um chá na charmosa e aconchegante Confeitaria Viena, de um concerto, uma matinê ou de uma ópera no Municipal.
Pois veja: desde então, o Salão Lírico já existia.
E existe até hoje como um salão de barbeiros, nada de cabeleireiros: “somos barbeiros”, dizem os “donos” das oito cadeiras cromadas e forradas com confortáveis almofadas de couro preto. E tem mais: nada de unissex, no Lírico: “só cortamos cabelos de homem, as mulheres que procurem salão de beleza para mulher”, diz Seu Mancini, este sim, o dono do salão. Barbeiros, no Lírico, além dele, tem o Wagner, o Tatuí, o Bruno, o Atílio, o Santini, o Paulo e o Sergipe; todos cinquentões, com mais de vinte anos “de casa” e trinta na profissão, dizem, orgulhosos.
Além dos oito barbeiros, claro, não se pode esquecer da Eunice, a manicura.
Eunice é uma bela pequena mulher, também passada dos cinqüenta, que, além de cuidar das unhas dos senhores frequentadores, varre o salão em seus momentos de folga e está sempre a esparramar pelo ar altas doses de feronômio... Sua presença no salão, além de rejuvenescer os clientes sessentões, impõe respeito e limites nas conversas: nada de palavrão, piadas sujas, grosserias, criando, no salão, um clima cordial, respeitoso, típico, talvez, dos anos 60.
Vale a pena falar mais da Eunice. Pequena, corpo ainda jovem para seus cinquenta e tantos anos, seios na medida exata, cordialmente exibidos com suas blusas decotadas, abaixo de colo exuberante, decorado com uma delicada correntinha de ouro e a imagem da Aparecida. Possui quadris redondos, fartos e sensuais, sustentados por esbeltas e bem torneadas pernas.
Já disse da beleza da Eunice e da sensualidade que desperta, mas o que mais impressiona em sua presença pequena e nobre, no salão, é a “classe elegante” com que lida com os galanteios, com gracejos e, até mesmo, com pedidos de casamento.
Em seu trabalho de manicura, permite, sempre, pequenos e iniciais afagos em suas pequenas e macias mãos; e ela os permite de maneira consciente e até maliciosamente, penso eu.
Penso, não, na verdade, tenho certeza, na medida em que Eunice só permite os afagos iniciais, apesar de parecerem deliciosamente duradouros para quem os pratica, vejam bem, pois a partir de um tempo, que só ela sabe e determina, delicadamente, segura a mão que a afaga e inicia na mesma o seu trabalho de manicura, interrompendo, brandamente, a seção de carícias e dando tempo até que a outra mão, agora livre, se anime de coragem o suficiente para uma nova seção de afagos.
Novamente, após um tempo que só ela sabe e determina, a mão será outra vez trocada, definindo um ritual em seus serviços: vai mudando de mãos, exalando feronômio, rejuvenescendo e fazendo sonhar velhos sessentões. Mas o importante, embora para seus clientes não seja o essencial, é que, não se sabe como , sempre ao final do corte do cabelo, os clientes do Lírico que usufruem de seus serviços, têm suas mãos limpas, unhas cortadas e lixadas e, em alguns casos, quando solicitado, pintadas com discreto esmalte incolor e sem brilho, pois, segundo ela, “mãos de homens não pedem lustre em suas unhas, brilho não é coisa de homem.”
A maioria dos clientes gostaria que o corte de cabelo, quando acompanhado dos serviços da Eunice, demorassem mais , muito mais, mas, para isso, teriam que ser menos calvos ou possuir mais dedos na mãos.
Voltando ao salão: os clientes do Lírico, como disse antes, são sessentões, em sua maioria calvos e com os poucos cabelos que restam brancos, brancos. Não usam barba e, às vezes, as fazem também no Lírico, serviço precedido de toalhas quentes e úmidas no rosto e executado, delicadamente, à navalha. Depois de feita a barba, o rosto é banhado e massageado com generosas e perfumadas porções de Água Velva. Recomendo.
Por uma pequena casualidade, costumo cortar lá os cabelos que me restam. Estava em um dos meus passeios pelo centro de São Paulo, quando encontrei com um conhecido, frequentador dos concertos da OSESP. Conversa vai, conversa vem e, logo depois de um expresso no Café Jardim, fomos juntos para o Lírico, onde fui apresentado ao Sr. Ítalo e aos seus barbeiros... Descobri, naquele dia, a origem do nome do salão: Seu Ítalo é o que se pode dizer um fanático por óperas e o seu salão é um ponto de encontro dos aficionados pelo bel canto.
Tem um programa de TV, sobre futebol, chamado Terceiro Tempo. Ainda não vi esse programa, mas imagino que, depois do segundo tempo da partida vista na telinha, o pessoal continue por lá, no Terceiro Tempo, revendo lances, discutindo, comemorando...
Pois bem, ir ao Lírico é o que se pode chamar do “Terceiro Tempo” da ópera: a maioria o frequenta não só para por em ordem as suas cabeças calvas e brilhantes, ter suas mãos e memórias revigoradas pela Eunice, mas, também, e talvez até mais, para reviver espetáculos de ópera, comentar o último CD da Cecília Bártoli, recomendar o DVD Rigoletto “com interpretação fantástica das árias de coloratura de Gilda”, que acabou de chegar na Loja da Galeria....
O Lírico, então, com o amontoado de cabeças brancas e calvas, com o perfume de Água Velva e o feronômio da Eunice no ar se transforma, perdendo o jeitão de salão de barbeiro e “travestindo-se”, configura-se em um delicioso um “foyer”.
Assim, o corte dos cabelos, da barba e das unhas, no Lírico, que, aliás, se esmera nestes serviços, é mero pretexto para o “Terceiro Tempo”. A “rodinha” vai aumentando quando um cliente tem seus cabelos aparados e, de “olhos e ouvidos” no bate-papo, paga logo pelos serviços e, ansioso, corre para integrar e fortalecer o time dos “veristas”, sempre embirrados e às turras com três ou quatro “wagnerianos”, estes quase sempre em menor número, no Lírico, não se sabe bem porque. As discussões são recheadas, ou melhor, ilustradas com argumentos sonoros, cantados pianíssimamente, no salão, e ouvidos, com atenção, pelos adversários e pelos torcedores de um ou de outro “time". Apenas um velho senhor alemão, o sr. Otto, baixo-barítono, com algumas apresentações no Cultura Artística em seu currículo, rende-se ao seu entusiasmo e deixa de lado o pianíssimo fazendo vibrar os espelhos do Lírico com sua voz grave. A única com coragem de adverti-lo, delicadamente, é a bela Eunice:
- “Sr. Otto, cuidado com a garganta...um pouquinho mais baixo.”
- “Claro, Dona Eunice. Perdão”, e abaixando algumas oitavas, continua a cantarolar uma ária, sob o ouvido atento de todos.
Brigas, mesmo, poucas. O fanatismo verista ou wagneriano não chega à exuberância dos corintianos e palmeirenses... E, no fim, como quase tudo neste país, as querelas terminam, não em pizza, mas em coxinhas de frango, no bar da esquina, regadas por uma cervejinha, para quem pode, ou por um guaraná Diet, para os diabéticos, grande maioria entre os frequentadores do Lírico.
Mas, no “Terceiro Tempo” lá do Lírico, não se ouve falar da diabetes, do plano de saúde, do preço do Viagra... De triste, apenas a notícia da morte de um amigo comum. No mais, é Verdi x Wagner o tempo todo.
Imperdível, o terceiro tempo, no Lírico!