sexta-feira, 11 de novembro de 2011

O PÉ DE LIMÃO GALEGO

2009guaraqueçaba 037

“limão galego,

relô tá pego!”

Em outras histórias já devo ter contado de minha amizade com Gilsom.

De qualquer forma vou relembrar: conheci Gilson, na década 60, quando ambos, trabalhávamos como professores primários na região do Vale do Ribeira, em São Paulo.

Àquela época, hoje não sei, havia uma enorme carência de professores primários na Região do Vale e muitos de nós, saíamos de nossas cidades, à busca de trabalho durante o ano todo naquela região. E foi assim, então, que Gilsom e eu nos conhecemos e nos tornamos amigos; éramos paulistas, porém de diferentes regiões: eu do norte do estado e ele da região de Campinas.

Embora fosse apenas um ou dois anos mais velho que eu, Gilsom era mais maduro tanto intelectual quanto emocionalmente; lidava, e me ajudou muito nisso, de maneira inteligente e menos emocional com os revezes políticos trazidos pela ditadura militar implantada no país e que muito nos atormentava: acreditava que o sonho não havia sido destruído e que a luta apenas se iniciava: “a derrota realmente aconteceu nesta batalha, mas a guerra está em seu início.”, dizia.

Seu pai era diretor de Grupo Escolar, nome que era dado às escolas públicas responsáveis pela educação das crianças do primeiro ao quarto ano, em sua cidade natal e nos municiava, mensalmente, com livros e mais livros retirados por ele na Biblioteca Municipal daquela cidade. Atendia a pedidos nossos e também nos mandava, por conta própria, livros que julgava importante. E assim, em uma escola rural, meio a bananais e à margem do Ribeira de Iguape, li e reli, por iniciativa própria o velho Machado, Jorge Amado, Veríssimo, Raul Pompéia e por sugestão do pai de Gilsom , a quem conheci apenas por cartas, conheci Shopenhauer e Dostoiévski.

Mas o que mais importa aqui, nesta história é que Gilsom se dizia um “comunista biológico”; sim, a expressão “comunista biológico” é velha e no caso do Gilsom, o que ele queria dizer era que havia nascido e queria ter uma vida “comunista”. Era, então, ateu ou “materialista” como gostava de dizer, enquanto eu ainda lutava entre a crença em Deus e as possibilidades de um mundo mais justo, sem Ele, ou apesar Dele, como ironizava Gilsom.

Nos dias de comemoração dos Finados, em Registro, os membros da colônia japonesa local realizavam uma cerimónia sensível, muito bonita e, até hoje, inesquecível. Construíam , em suas casas, centenas de pequenos barquinhos de papel com os quais homenageariam seus mortos. Na noite da véspera de Finados em cada barquinho era colocada e acesa uma vela e os mesmos eram delicadamente conduzidos até a margem do Ribeira para, depois, sob circunspectos cantos e orações, serem suave e cuidadosamente empurrados para a correnteza onde eram deixados para, a partir dali, fossem guiados e levados pelos espíritos dos mortos homenageados ao sabor da fraca correnteza do rio Ribeira de Iguape.

Eram por volta de oito horas da noite e estávamos, Gilsom e eu , no alto da ponte do rio Ribeira, vendo os pequenos barcos iluminados descerem vagarosamente o rio. Do alto da ponte os maiúsculos barquinhos de papel se assemelhavam a pequenas estrelas caídas no rio e que, docemente, se deixavam flutuar no caudaloso Ribeira de Iguape.

Atentos percebíamos um ou outro barquinho que ia à deriva apagando sua luzinha nas águas escuras e barrentas do rio.

A noite estava escura. Nuvens negras, prenunciando fortes chuvas, impediam a passagem do brilho das estrelas do céu: ficavam apenas, rio abaixo, as estrelinhas navegando com suas luzinhas frágeis, coloridas, trêmulas.

Gilsom me disse:

- “Sabe que em julho passado, nas férias, passei frente à casa vazia de Dona Maria, mãe de um grande amigo meu, que havia morrido pouco antes e, por eu estar aqui em Registro, não pude ir ao seu enterro. Passei uma ou duas vezes frente à casa, agora totalmente vazia, e pensei em prestar-lhe uma homenagem. E foi aí que, frente a casa vazia, me dei conta que meu materialismo, minha descrença em outras vidas, minha certeza no FIM que a morte decretava, me impedia de render a homenagem que tanto queria; confesso que a visão da casa vazia à minha frente e a secura de minha alma me deixou triste, desprovido de amor, como que se tivesse ficado oco por dentro. Você com sua crença, com certeza, em uma situação desta, se sentiria melhor: rezaria e pronto.”

Pingos grossos de chuva caiam pesados sobre nossa cabeça e, juntos com o vento forte, iam, a cada segundo, colocando os barquinhos iluminados à deriva, apagando-os.

E a escuridão se deu.

Um ou dois anos mais tarde nos separamos. Saímos, ambos, da região de Registro à busca de novas oportunidades como professores primários, que aquela época, era o que queríamos ser.

Um aperto de mão sincero, o acordo de longas cartas mensais, o meu compromisso em conhecer pessoalmente seu pai...Foi o nosso adeus.

Na secretária eletrônica um recado de Gilsom: seu filho havia conseguido o número de meu telefone nestes sites modernos e no recado gravado queria saber se eu era eu, ou seja, se era eu que havia trabalhado como professor em Registro e se era mesmo eu o professor que jogava bola, e bem, e nadava, muito mal, no Ribeira.

Telefonei para o número indicado e deixei recado: sim eu sou eu, não jogo mais bola e deixei a profissão de professor para trás.

Dia seguinte recebo um telefonema seu.

Morava no interior, havia casado, ficado viúvo, continuou sua carreira de professor primário e havia se aposentado como diretor. A mesma voz grave, as palavras cuidadosamente soletradas, todos os “esses” e os ”erres” bem colocados, o mesmo cuidado com a língua, acentuados pelo sotaque caipira do interior do Estado.

Semana seguinte, em uma terça-feira, logo de manha, cheguei em sua casa.

Não o esperava gordo e ele tinha até uma barriguinha; ele não me esperava careca e eu poucos cabelos tinha.

Meia hora depois nos sentíamos os mesmos amigos de sempre.

Gilsom continuava, segundo ele, um comunista biológico.

- “E você? Agora velho, não pode mais ser de Juventude Católica nenhuma, não?” , referindo ao fato de eu pertencer, àquela época, aos movimentos da Igreja voltados pra os jovens. Explicando aos mais novos: naqueles tempos, a Igreja visando alcançar os jovens, liderava um importante movimento de agregação e luta. E conforme a condição do jovem o mesmo era incitado a participar do movimento com seus pares: assim tinha a JAC -Juventude Agrária Católica, a JEC que era dos estudantes, a JIC dos jovens independentes, a JOC dos operários, movimento ao qual eu participava e a JUC dos estudantes universitários. E Gilsom, brincando: “a que G você pertence agora? À GAC – dos geriatras aposentados católicos?”

E nos pusemos a rir.

- “Pertenço, agora, à GA: Geriatria Ateia; me livrei da Igreja e de Deus.”

- “Devagar com o andor: melhor Geriatria Agnóstica...dá para mudar. Ateia é muito definitiva”, disse rindo.

Fomos até a Biblioteca Municipal, que agora tinha o nome de seu pai. Deu gosto de ver: frente a praça principal da cidade, em uma bela casa pintada de rosa, assoalho de madeira brilhando, estantes repletas de livros, uma bibliotecária bonita e prestativa. Emocionei-me! Fui até a estante de Literatura Brasileira e revi os livros do querido Machado, a obra completa de Jorge Amado e Érico Veríssimo e também escritores mais novos: Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira e mesmo os mais recentes: João Ubaldo, Milton Hatoum, Raduan Nassar. Tudo tão manuseado, tão limpo, tão sem cheiro de mofo, tão sem de traças.

Voltamos para sua casa e ele me contou:

- “Veja o que aconteceu comigo, um comunista biológico, materialista e tudo mais.

Morreu, há alguns anos, o meu sogro, com quem eu tinha grande amizade; ele deixou em seu minúsculo quintal uma verdadeira floresta de plantas. Era assim o velho: não resistia em ver uma muda, ou uma semente que ia plantando, e plantando e colocando em seu quintal que tudo cabia: cabia a jabuticabeira enorme, frutificando abundantemente todos os anos, cabia um imponente pé de coco da bahia, que, segundo meu sogro, por falta e de salinidade no ar, nunca produziu um único coco, tinha uma ameixeira, também infértil, dois pés de acerola, duas mudas adolescentes de jaca, um pé de amora e um primoroso pé de limão galego. Este sim, frutífero, perfumado em sua florada e em seu tempo de frutas. Produzia limões com bastante caldo, casca fina, cheirosos, fortes.

E foi então que resolvi homenagear meu sogro e trazer para meu quintal o seu pé de limão galego.

Minha pouca experiência em jardinagem e o afeto que tinha pelo limoeiro fez com que eu tivesse alguns cuidados. Assim, pedi e tive o apoio e orientação de um amigo de meu filho, engenheiro agrônomo que se comprometeu a nos orientar em como arrancá-lo do quintal sem judiar, sem colocar em risco sua saúde, garantindo um transplante saudável, sem nenhum perigo. Indicou-me, para realizar a operação um jardineiro de confiança e, orientados pelo engenheiro, realizamos o processo de transplante. E, ouça o que quero te dizer: não é uma coisa simples, bruta, de chegar e furar um buraco e tirar a planta. Foi uma operação cuidadosa, repleta de cuidados, muito respeito e pequenos truques: fizemos, primeiramente, um buraco fundo em volta de todo o limoeiro e jogamos serragem até tampar o buraco feito, molhamos bem, umedecendo a serragem e somente passados dois dias desta operação, é que fomos, cheio de cuidados e de cordas, retirar a árvore de seu local de origem. E ela foi retirada por completo, com suas raízes protegidas pela serragem, embalada em sacos de aniagem para ser carregada, sem nenhum perigo, até o local onde foi plantada, que é logo ali embaixo no meu quintal.

E aqui também todo cuidado: um enorme buraco redondo, maior que uma cova havia sido previamente preparado para o pé de limão galego: e o fundo do buraco, sua nova casa, foi coberto com serragem, areia, húmus de minhoca, esterco de gado, terra fofa e argila expandida.

Um verdadeiro “ninho” esperava a muda.

E foi quando, o jardineiro eu estávamos a colocar a muda no seu novo lar que algo ocorreu e que é bem difícil contar direitinho. O que houve? Imagine só: foi ao mesmo tempo que , tanto o jardineiro quanto eu, fomos tomados por uma emoção muito forte, por uma sensação de infinita felicidade, e , inexplicavelmente, os dois - eu e o jardineiro - pensamos e expressamos a mesma coisa:

- “Como ele deve estar feliz lá no céu!” e lágrimas correram sobre nossas faces.

Era hora de voltar para casa e, ao despedir, lembrei-me de um versinho de Mário Quintana e o disse:

“Deus tirou o mundo do nada.

Não havia nada mesmo...

Nem Deus!”

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Joachim

 

DSC04271Era uma manhã de céu plenamente azul com o sol aquecendo as costas; olhei para o norte e avistei, bem lá longe, as montanhas cantábricas, descansando um pouco a mente de dias e dias - creio que foram uns cinco ou seis - caminhando pela “meseta”, onde predominou o retão. Na região da “meseta” só se enxergava a longa e infinita planície: para todo lado que você olhasse - seja para o norte, para o sul, para o leste ou para o oeste – o que se via era, até o horizonte a planície se encontrando com o céu: nenhuma montanha, nenhum morro, nem mesmo um pequeno bosque surgia à vista para oferecer um pouco mais de movimento á solidão dos páramos espanhóis.

E foi então naquela manhã que, ao enxergar, ao norte, as montanhas cantábricas e sentir o calor do sol às costas, o peso da mochila e a dor da bolha que havia se formado e que ardia no dedo minguinho do pé esquerdo deixaram de incomodar e me peguei, no Caminho de Santiago, cantando e cantando.

Assustei-me quando ouvi:

- “Que língua é esta em que está a cantar? Pergunto e já respondo um pouco: sei que é uma língua latina, mas não é espanhol e também não é português. Mas, antes, um bom dia e um bom caminho.”

- “Bom dia. Estou cantando em português...”, não terminei a frase e fui interrompido.

- “Português? Mas não o de Portugal, não é mesmo?”

E caminhei toda aquela manhã com o Joachim, da cidade de Hamburgo, sessenta e oito anos, alto como os alemães costumam ser, farta cabelereira branca sob o boné de abas largas e um enorme bigode, todo branco, retorcido em suas extremidades cobrindo os lábios superiores; me ative com atenção ao bonito rosto e percebi a pele alva, sem as manchas típicas de nossa idade, barbeada com esmero. Apenas as rugas denunciavam a idade em um rosto que revelava o dono: bem humorado, inteligente e um pouco desconfiado ou descrente dos mundos, dos homens, sei lá!

E ocorreu comigo uma situação estranha, irreal: enquanto parlamentava, olhava o rosto, as mãos e ouvia a voz metálica de Joachim senti, ou melhor, tive a certeza de que já o havia encontrado outras vezes, mas, onde?; já havia falado com ele e, mais que isso, uma sólida e forte amizade já havia ocorrido entre nós.

E, por conhecê-lo, adivinhava as respostas que daria às minhas perguntas, previa suas esquivas a outras perguntas; conhecia, de há muito tempo, aquela voz. Mas, de onde?

Aquela situação me fez lembrar um amigo que disse-me, certa vez, em uma mesa de bar – temos que relevar o fato de já havíamos bebido bastante - que em uma sua primeira e única viagem à Índia reconheceu lugares, sentiu cheiros, como se já tivesse por lá, antes, passado. E passou?

E agora, já velho, vivido, confesso que me sentia incomodado com a situação em que me encontrava e desconfortável em obter, sem que Joachim desconfiasse, informações para confirmar nossos encontros anteriores; sentia-me como um padre fazendo perguntas capciosas na busca de pecados escondidos. Desconfortável, admito, mas incontrolável a necessidade de reconhecer, de saber com quem eu falava.

E Joachim, tagarela, outra característica que confirmava minhas suspeitas, atende a minha pergunta:

- “Onde aprendi espanhol? Lendo, manuseando dicionários e ouvindo zarzuelas. Conhece zarzuela? Não? Oras, zarzuela é um gênero musical operístico espanhol, que infelizmente foi abafado pelo sucesso da ópera italiana ou francesa. Gosto muito. Já ouviu alguma? E não estranha, você, um alemão com o nome de Joachim?”

Entendi sua resposta como uma pista para eu entender o que estava a ocorrer e fui firme:

- “Bem, posso dizer que já conheci outro alemão chamado Joachim, o primo de Hans Castorp; o soldado Joachim a quem Hans foi visitar em Davos, onde o mesmo se tratava de uma doença pulmonar...”

Fui interrompido com uma gargalhada:

- “Sei, sei...Está é querendo me contar que leu a “Montanha Mágica, não? Um belo livro; também gostei muito. E já que você conhece o Joachim e o Hans Castorp eu te pergunto: conhece também o Adrian Leverkhün, do belíssimo Doutor Fausto, um outro filho da infinita família de Thomas Mann?”

Percebi claramente, àquela hora, que Joachim sabia de minhas intenções e que minha busca a tão irreal encontro não o incomodava; talvez estivesse, pensei, tão curioso quanto eu em confirmar que eu era eu.

E claro que sua pergunta, investigando meu conhecimento sobre Adrian Leverkhün, foi intencional, forçando-nos a falar de música e, com isso, fazer com que nossas preferências musicais viessem à tona. E seu entusiasmo por Schöemberg o denunciou. Tive, a partir dali, a confirmação das certezas anteriores; agora a certeza era absoluta: conhecia, e muito, Joachim.

Sempre fui, e principalmente na mocidade, fascinado pelos contos e filmes que narravam as visões que as pessoas tinham nos desertos áridos e sem vida: nos infinitos areais ensolarados, com insuportável calor e sede profunda surgiam as visões de lagos, de águas claras, de odaliscas dançando com o umbigo à vista, o véu cobrindo o rosto e deixando desnudas as lindas e morenas pernas torneadas sob coqueiros verdes e suas sombras. Oásis na secura da vida. Mas, e agora, Deus do céu, aqui, em pleno páramo espanhol, o que está ocorrendo? Será que aos sessenta e sete anos, vou ter minha crença na descrença em outras vidas, em outras almas, colocada a prova? Será que, como um antigo cristão, um Paulo ou um Agostinho, terei, agora, a fé em minha vida ateia e materialista colocada em dúvida?

Impossível.

Meu amigo Dirsom faleceu já há quatro anos, no Brasil, em São Paulo; certeza absoluta: fui ao velório e ao seu enterro no Cemitério dos Ingleses, em Pinheiros. Revi amigos comuns em sua missa de Sétimo Dia, celebrada por um pastor anglicano, seu amigo.

Como posso, então, reencontrá-lo aqui neste caminho de Santiago?

Joachim é Dirsom?

O mesmo bigode retorcido, a pele clara com pequeníssimas veias azuis desenhando figuras abstratas em seu rosto, o infinito entusiasmo por música, pelo estudo de línguas, sua eterna busca do belo?

Mas explicando melhor para não confundir aos que escutam esta história: conheci e me tornei amigo do Dirsom, há muito tempo atrás, ainda no início de minha vida profissional, coisa de mais de quarenta anos. À época, trabalhava em uma empresa estatal, e foi meu superior hierárquico quem falou-me do Dirsom, que conhecia e do qual tinha excelentes informações e lembranças e do interesse do mesmo em compor nossa equipe. Estava, Dirsom, voltando dos Estados Unidos, para onde tinha ido com a família, em exílio forçado pela ditadura militar que comandava o Brasil.

Entrevistei-o, falei dos projetos que alimentavam nosso trabalho e senti seu entusiasmo. Rimos muito, mais tarde, é claro, após a amizade tão construída, de sua necessidade de aproximar o papel aos olhos para ler, de sua miopia profunda e de sua quase cegueira que o impedia, como eu, de se deliciar dirigindo motocicletas por estradas e ruas.

E também, além de míope, era daltônico e vou contar um episódio que ocorreu em seu processo seletivo. Tínhamos na empresa, um psicólogo baixinho, moreno, seríssimo e profundo crente nos testes que aplicava aos candidatos a emprego. Mandou me chamar à sua sala onde estava com Dirsom e todo compenetrado:

- “Olha este rapaz, o Dirsom, é daltônico, veja”, falava ao mesmo tempo em que pedia a Dirsom que, com o dedo indicador, seguisse os números que havia em uma colorida prancheta de papelão. E, Dirsom, obediente á ordem do psicólogo e às cores da prancheta “desenhou” o número dois; e “somente” ele via naquele emaranhado de bolinhas coloridas da prancheta o número dois que ele fazia com o dedo indicador. Enfim, “o candidato é daltônico, o que é um complicador do ponto de vista...”

Interrompi o psicólogo:

- “Ótimo: ainda bem que ele não é candidato a condutor de trens e, mesmo que o fosse, não há semáforos na linha. Há outro ponto que julga importante para eu levar em consideração?”

Décadas depois deste episódio, do qual eu havia esquecido totalmente, o amigo o relembrou ao contá-lo ao maestro da orquestra que, por iniciativa de Dirsom, havia nos aproximado novamente para, juntos, desenvolver um trabalho que unia paixão pela música, uma certa experiência administrativa, fruto dos cabelos brancos do Dirsom e pela minha calvície, alguns poucos conhecimentos técnicos e uma alta dose de voluntarismo. Mas, o que importa, nesta história, foi o nosso reencontro neste trabalho; depois de mais de trinta anos a orquestra nos reaproximou fisicamente, reafirmou nossa antiga e sempre presente amizade em um prazeroso trabalho.

E mais surpresas ocorriam. Sabia de sua paixão pela música, mas não sabia que era um excelente pianista. E, soube dessa sua qualidade, não por ele, mas sim pelo “spalla” da orquestra: “Dirsom não se tornou músico profissional por absoluta falta de interesse”; e o inquieto amigo Dirsom, no momento, andava entusiasmadíssimo com o curso de violoncelo que andava a fazer.

Mas, mais surpresas! Em uma manhã, tomando café na sala da orquestra, sabendo do meu entusiasmo por Guimaraes Rosa perguntou-me a respeito do belíssimo e de certa forma inacabado conto “Meu tio o Iauaretê”. Estranhei a pergunta –Dirsom não se interessava por literatura brasileira - e obtive a resposta: teria que fazer a tradução do conto para o alemão. Estava terminando o curso de alemão no Instituto Goethe.

Prometi ajuda. Chego em casa e releio o conto.

Deus do céu, missão impossível: no conto são tantos os “n’t”, tantos os “pimenta, hã...Nhem? À-hã, é, tá escuro”, como traduzir isso para o alemão?, pensava. E, enquanto lia, mais duvidava: será que dá para traduzir “Tá bom, dei’stá. Pesei que mecê queria ser meu amigo...Hum. Hum-hum. É. Hum. Iá axi. Quero canivete não”, ou ainda “Muita pimenta, hã...Nhém? À-hã, é, tá escuro”, ou mesmo, mais simples, deve ser traduzir “cê pode ficá aqui”. E, claro, nos divertimos muito com o índio Iauaretê rosnando, bravo, em alemão. Além do alemão, que, com esta tradução eu tinha certeza Dirsom dominava como poucos, tinha o inglês, o latim e fiquei pasmo quando, no caderno mensal da programação da orquestra, vi seu nome assinando a tradução do francês de trechos de uma ópera que seria apresentada pela orquestra e uma belíssima soprano eslava.

E agora vem o Joachim me dizer que aprendeu espanhol ouvindo zarzuelas e manuseando dicionários? E o timbre de voz: igual.

Acordei!

Já fazia mais de dois meses que havia chegado em casa, depois de ter percorrido o Caninho de Santiago, e foi a primeira vez que sonhei com o Caminho depois de tê-lo realizado.

Foi um bom sonho!