segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

São Paulo, 1968: primeiras impressões


Impossível não me lembrar da calma silenciosa do Rio Ribeira de Iguape ao transpor, pela ponte Euzébio Matoso, as poluídas e malcheirosas águas do Rio Pinheiros. Passava, diariamente, por ali, no ônibus Luz / Jardim Bonfiglioli, para freqüentar o curso de Especialização em Quinta e Sexta Séries, no Butantã.
Abrindo um parêntese: em 1968, eu já era professor efetivo, com o direito de freqüentar cursos de especialização oferecidos pelo antigo Serviço de Expansão Cultural da Secretaria da Educação na condição de comissionado, o que significava receber normalmente o salário de professor enquanto estudava. Fecha o parêntese.
O curso tinha duas turmas: uma de manhã e outra à tarde - na qual fui matriculado - e era freqüentado por professores primários das mais diferentes regiões do Estado: Valparaizo, Presidente Prudente, Santos, Taubaté, Osasco...A maioria dos participantes era do sexo feminino, claro; na turma da tarde, do sexo masculino, apenas eu e um professor de Osasco, o Sérgio.
Eu conhecia São Paulo apenas de passagem, em minhas idas e vindas de Ribeirão Preto para Registro, e a cidade me fascinava. Ribeirão Preto já havia me educado o suficiente para não mais ficar parado nas calçadas, olhando os “arranha-céus”, e eu já utilizava, sem medo e confortavelmente, elevadores, mesmo aqueles que não possuíam ascensoristas a pilotá-los. E como se isso não bastasse, na elegantíssima Biblioteca Cultural Altino Arantes, frente à Praça XV, a principal de Ribeirão Preto, quase ao lado do Cine Teatro Pedro II, a bibliotecária Adalgisa – inesquecível, tanto pela beleza como pelo rigor na cobrança de eventuais atrasos na entrega dos livros - havia me ensinado o suficiente para que eu pudesse me matricular na Mário de Andrade, que tinha sua seção de empréstimo de livros em uma pequena entrada pela Avenida São Luiz. Bastava, para obter a ficha de “sócio”, uma conta de luz, comprovando o endereço, e, a partir daí, o direito, como na Altino Arantes, a empréstimos, por uma semana, do livro escolhido. E as semelhanças se encerravam por aí: a bibliotecária não tinha a beleza da Adalgisa e foi, creio, responsável pelo estereótipo que, pejorativa e maldosamente, passei a ter das bibliotecárias: empertigadas e com os cabelos encharcados de laquê, para moldá-los ao famoso “o boi voou”...Uma pena, pois o acervo para empréstimos era ótimo, melhor, mesmo, que o da Altino Arantes.
Fui morar em Pinheiros, com um outro professor, de Presidente Prudente, o Gilberto, em um quarto de empregada, no número nove de uma simpática vila com vinte e duas casas.
Foi por ali que comecei a descobrir São Paulo. Impensável, até aquele momento, para mim, morar perto de gente famosa e, por isso, estranhava, assim como aguardava, ansioso, o momento de contar para meu irmão, estar a tão poucos metros do vizinho Nelson Gonçalves, a quem via sempre. E na mesma vila, em outro quarto de empregada, o da casa quinze ou dezesseis, não me lembro ao certo, vivia uma auxiliar de enfermagem do Hospital das Clínicas: era autora de um livro autobiográfico, que relatava, principalmente, seus tempos de prostituição e a luta para sair, ainda jovem e bela, daquela profissão. Li seu livro e nos tornamos amigos.
Assim, meus horizontes iam mudando: as planícies verdes, cobertas pelos bananais, até alcançar a serra, no morro de Votupoca, iam sendo substituídas por prédios e luzes, pela avenida São João, por cinemas e mais cinemas, viadutos, semáforos, pelo Pacaembu, pelo Copan, pela feira de arte na Praça da República... e por muito mais que tudo isso – o ainda desconhecido, à espera do prazer das descobertas que iam sendo feitas, aos poucos, mas diária e constantemente. Foi um repentino salto, do silêncio ao burburinho.
A amizade e o respeito pelo Sérgio, o professor de Osasco, teve início durante as aulas e seus intervalos; sentia que compartilhávamos valores e ideais, e nas discussões que surgiam durante as aulas, ficavam claras suas divergências do restante do grupo. Nessas discussões políticas, Sérgio era incisivo e emitia, sem medo e censura, suas opiniões, o que o colocava, frontal, embora cordialmente, em choque com a maioria do grupo. Procurei por ele no intervalo:
- “Admiro sua perseverança...em meus quatro anos de experiência como professor, admito meu desalento.”
- “Te entendo, e sei que não adianta; também não acredito em uma postura mais engajada dos professores mas ....”
- “Conte com meu apoio, Sérgio...”
- “Acredito mais em um movimento do qual participo em Osasco, com operários”, disse ele. “Lá a coisa tem mais a ver.”
- “Imagino...”
- “Teremos lá uma reunião neste domingo.Topa ir?”
- “Topo.”
Fomos interrompidos por um bando de colegas. Era sexta-feira e vieram nos convidar para ir até o “cu do padre”, beber. Devo ter ficado corado ao ouvir “cu do padre” proferido, em alto e bom som, por uma mulher, porque Sérgio, percebendo, veio em meu socorro: “é um boteco nos” fundos “da Igreja de Pinheiros”, disse ele, sorrindo e carregando forte na pronúncia de “fundos”.
Terminadas as aulas, tomamos um ônibus e fomos para o tal do “cu do padre”. Era um boteco que, soube depois, fazia uma das melhores “batidas” de São Paulo. Dependurados em suas vigas, empoeiradíssimas, havia queijos, garrafas de pinga, salaminhos, garrafas empalhadas de vinho. A lenda era a de que o seu proprietário só eliminaria a poeira quando o Corinthians fosse campeão... “Vai demorar muito”, disse, sarcástico, Sérgio, palmeirense fanático.
No balcão, Arlete cochichou com o rapazinho que fazia as bebidas:
- “Na minha, de abacaxi, você não põe pinga, viu?”
- “A senhora quer com vodka?”
- “Não, menino...quero a minha sem pinga, sem nada, bem docinha.”
E me olhando de soslaio, marota:
- “Detesto ficar zonza.”
Segui sua receita, só que pedi a minha com morangos: mais sensual, pensei.
Arlete era uma linda mulher: alta - com um metro e oitenta, magra, rosto coberto de sardas marrons, cabelos negros, cacheados e fartos.
Sérgio pediu “antes uma purinha, para esquentar”, que foi tomada de um gole só, e me procurou para combinar a reunião de domingo, orientado-me em relação ao ônibus que deveria tomar, onde descer e onde o encontraria. Pediu outra “purinha”, para continuar esquentando, e só depois desta é que pediu batidas: “coisa de mulher, muito doce”, dizia, sempre sorrindo, mas, pelas repetições, gostava muito e não se embriagava fácil.
Arlete e eu ficamos conversando: era do interior e fazia o curso com o objetivo de conseguir vir para São Paulo, pois não suportava mais a vida em sua cidadezinha.
Na porta da pensão em que morava, devo ter exagerado nos carinhos:
- “Estamos em um local público” sussurrou ela.
- “E então...como faremos?”
- “Vamos subir, o pessoal do São Paulo não está aqui hoje.”
A pensão onde morava era próxima do “cu do padre”. Esta pensão, onde ela dividia um quarto com outra professora, prima do dono, tinha como principal cliente o São Paulo Futebol Clube, que alugava a maioria de seus quartos para jogadores que vinham do interior. Naquela sexta-feira, o clube havia viajado para jogar, deixando vazios grande parte dos quartos do andar de cima. Passei, depois daquela sexta-feira, a ver com outros olhos e interesses a coluna de esportes dos jornais.
Na manhã seguinte, acatando decisão da Arlete, tive que sair da pensão bem cedo, por volta das 6h da manhã... Subi, a pé, a Teodoro Sampaio, em direção ao meu quartinho. Diferentemente de outras situações semelhantes, naquela manhã, não senti a menor vontade de confissão do pecado cometido, prenúncio do processo de meu divórcio com a Igreja.
Havia muito sol naquela manhã e, na Teodoro Sampaio, movimento apenas nas padarias: tudo o mais fechado, pouca gente, um ônibus ou outro que subia em direção ao centro. E eu fui caminhando, com as mãos enfiadas nos bolsos das calças, feliz por demais...um sentimento de felicidade tal que me deixava confuso, a ponto de, em certos momentos, não acreditar em tantas e tão boas emoções e fazer um esforço grande para tudo registrar, para de nada esquecer...
Entrei em uma padaria, na esquina da Teodoro com a João Moura, e pedi um pingado e um pão com manteiga na chapa. Veio rápido o leite quente com café bem doce, o pão com a manteiga derramando na bandejinha de alumínio, e me pus a comer, enquanto continuava a viver minha felicidade.
- “Este ano promete”, pensei.

sábado, 17 de janeiro de 2009

FABIANO




O tremor e o arrepio que me passaram pelo corpo foram iguaizinhos aos que havia sentido quando, depois de dois dias de procura, havia encontrado o pai morto, estendido no meio do mato, na beira do córrego, mordido por cascavel. Senti, naquele momento, o mesmo tremor e arrepio ao ouvir, lá longe, os berros de Maria, a minha mulher, que subia desesperada o morro, pelo caminho do velho cafezal. Gritava feito louca.
Certeza de que era o meu filho. Era o terceiro, de sete anos, que tinha gemido de dor e febre durante todo o dia de ontem e não tinha dormido nada nesta noite para amanhecer o dia de hoje. Estava, já há uma semana, doentinho: não teve chá, nem mesmo remédios velhos de farmácia, que a gente tinha em casa, que conseguisse tirar a febre e o mal de que o pequeno Fabiano estava sofrendo.
Maria, esbaforida e cansada da correria de casa até a roça do cafezal:
- “Tem que ir à cidade, na farmácia, comprar remédio. Menino não tá bom não.”
O frio percorreu mais uma vez o meu corpo e a descida, serra abaixo, para chegar em casa, foi rápida e desesperada. Deixei Maria para trás; a intenção era pegar logo o cavalo no pasto e levar o pequeno ao doutor: “melhor que comprar, por conta, remédios na farmácia do Seu Nelson.”
O bendito cavalo, sempre tão obediente, naquele dia não atendia aos assobios de chamada. “Que será que houve?” Tinha, com certeza, pulado a cerca e ido longe, para o pasto do serrado, à procura de comida mais farta. O jeito era ir buscá-lo no serrado e levar o cabresto, voltar montado em pêlo para chegar mais rápido para casa; depois, era lavar o rosto, trocar de roupa e enfrentar umas três horas de estrada até o doutor, na cidade, porque com o menino, assim, ruinzinho, não ia dar para trotar forte.
Cavalo arriado, eu e o menino trocados de roupa, montei e Maria me passou o Fabiano. Ajeitei o filho na frente do arreio e seu corpo, frágil e magro, ajustado ao meu, de tão quente de febre, queimava a minha barriga e me envolvia em uma tristeza sem fim, junto com um carinho doce e forte.
“Por que sofrer uma criança assim, que, de mal, mesmo, só vez ou outra, mata um ou ouro passarinho e que até já gosta de me ajudar nas plantações da roça?”, pensava.
Quando curvei o corpo para abrir a primeira porteira, aproveitei para ver o rosto do pequeno: os olhinhos fechados, a cabecinha tombada em cima do peito e a pele queimada de tanta quentura de febre. Uma dor imensa inundou todo o meu corpo. Então rezei e fiz uma promessa: “Se Fabiano sarar e ficar bom, juro, por Deus do céu, não mato mais caça, que também é filha de Deus”.
Uma barra escura no céu, acima da serra, anunciava as pesadas chuvas de dezembro. Tinha sido um ano de seca brava. Colheita de arroz ruim e o café não floriu. Mas, “tudo isso agüento se o menino sarar logo”.
Fiz um pacto com Deus: combinamos que o menino só morreria depois de crescido e de ter me dado netos para eu brincar na velhice; ganharia tempo, assim, para amá-lo. O trato me reconfortou, cheguei a sorrir e, também, reconheci que não tinha forças, naquele momento, para enfrentar a sua morte.
Metade do caminho já havia sido percorrido: o Taquari e a Fazendinha tinham ficado prá trás e, do alto da serra, já dava para ver o Rio Grande lá embaixo, margeado pela pequena vereda.
O corpo do menino continuava se apoiando totalmente na minha barriga. Queria fumar um cigarro, mas não dava: uma mão ocupada em segurar as rédeas do cavalo e o outro braço cruzado no corpo do menino, segurando-o firme. Sua cabecinha, tombada, apoiada em meu braço.
Agora, sentia que a febre já passara. Minha barriga já não mais fervia de quente com o calor do Fabiano. O braço forte, de tanto capinar café e roçar pastos, apertava o corpinho magro, atendendo a um apelo que não sabia de onde vinha: queria sentir seu coraçãozinho bater e seu peito inchar e desinchar com a respiração.
Nada!
Meu corpo se enrijeceu e, de novo, o tremor tomou conta de mim.
O cavalo, Brotinho, trotava obediente, em uma marcha leve, parece que querendo fazer a viagem melhor para o menino: nada de seus costumeiros refugos. Queria, mas não tinha coragem, parar o animal, descer e olhar direito para o Fabiano e me garantir que estava tudo bem, que ele tinha sarado, que a febre já tinha ido: Deus havia prometido - e ia cumprir - que ele ainda me daria netos. Era a esperança!
Apertei forte o peito do filho e senti os ossos de suas costelas debaixo das poucas carnes. As mãozinhas pequenas, com as unhas grandes e sujas -“de luto”-, pousadas e quietas em minha perna: imóveis e amarelas.
Um frio monstruoso apoderou-se dos dois corpos. Apertei e apertei o peito do menino querido. Nada de sentir. Achei consolo pensando que talvez estivesse respirando fraco e que seu coraçãozinho nunca bateria tão forte, que desse para eu sentir o seu “toc” “toc” no meu braço que cruzava e segurava o seu peito.
“Não, morto não está. Não gemeu e antes de morrer se geme, sempre. E também tem o trato com Deus. E, desta vez, Ele sabe que vou mesmo cumprir.” Fabiano devia era estar dormindo, cansadinho; a febre tinha passado; tudo como combinado e acertado com Deus.
Ele é pai e entende minha dor, pensava. Logo, logo chegaria à cidade, o doutor dava consulta no menino, eu comprava os remédios na farmácia; tudo ia se resolver: Fabiano ia voltar a correr pelos pastos atrás do Brotinho, ir para a escola para aprender a ler e eu, juro por Deus, não mais caçaria, não brigaria mais com a mulher, só beberia uma cachacinha ou outra nos domingos ou em dias de festas e não bateria mais nas criações; me tornaria um homem bom e puro; desta vez, cumpriria, Senhor, podia confiar, não seria como das outras vezes.
Aí me deu uma vontade louca de ver o rosto do menino, mas a coragem era pouca. Os dois corpos colados, frios, obedeciam ao ritmo da marcha do cavalo. Lágrimas desciam pelo meu rosto. O cavalo, conhecedor dos caminhos, seguia por sua conta e risco; eu já não tinha mais atenção para guiá-lo. Para distrair, olhava as árvores à beira da estrada e, ao longe, elas desenhavam, em suas copas negras, monstros horrorosos, de pôr medo em qualquer cristão temente a Deus.
Então, num ato máximo de coragem e para provar para mim e para o mundo que Fabiano vivia e respirava - que a febre é que tinha passado em seu corpinho agora frio - segurei firme as rédeas, assobiei o costumeiro “psiu” e Brotinho, obediente, parou.
Com cuidado, apeei do cavalo e o corpo da criança me acompanhou, pequeno, duro, inerte.
Morto!
Desesperado, sentei no barranco da estrada com o filho no colo e chorei.
Como, na hora, não sabia direito como chorar, uivava forte e meu peito sacudia em soluços incontroláveis, doloridos e sem ritmo.
Tudo tão fatal, tão irrecuperável, tão sem volta.
Não queria mais saber se seria bom ou ruim, se matava ou não matava mais caças, se beberia ou não beberia: Deus não havia cumprido o combinado.
Olhava Fabiano e sabia-o morto.
Foi daí que me culpei, culpei a mulher, culpei os outros filhos, os tios, a professora de Fabiano, a vida, enfim, tudo; tinha que achar quem era o culpado por uma morte tão imerecida.
“Agora, com Fabiano assim defuntinho, vão se arrepender das maldades que fizeram com ele; vão sofrer de remorsos.” E chorei ainda mais pela surra que dei no menino no dia em que ele comeu toda a mistura que Maria tinha colocado na marmita. Sabia que, a partir dali, com tanta desgraça, não teria, nem mesmo, mais fome.
Abracei o corpo frio e montei de novo no cavalo, agarrando o pequenino filho defunto. Trotei rumo à cidade, para mostrar, e para que todos vissem, o filho morto e a minha dor.
“Não”, pensei, “vou voltar para casa e tomar as providências para o velório: quero lhe dar um caixãozinho branco”.
“Não, vou antes até a cidade?”
Resolvi e fui: assim, até voltar para casa, alongava mais a distância e o tempo de ficar sozinho, abraçado com aquele meu corpinho morto.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

1964.... A LANCHA SETE!



Toda e qualquer semelhança deste relato com ESTÓRIAS DO RIBEIRA 1, postado aqui em 31/12/08 , não é mera coincidência. O ESTÓRIAS é a mãe deste, reescrito ano passado para o ARQUIVO 68.

Por volta das 8h da manhã, no porto de Registro, ouve-se o apito longo e rouco da Lancha Sete, anunciando sua saída para Iguape. Mineiro, eu já estava a postos há mais de meia hora, ansioso pela partida com destino à Escola de Emergência do Bairro da Lagoa Nova, distante por volta de 25 km de Registro, quase na divisa deste município com o de Iguape: eu, minha mala de couro e um guarda-chuva automático que teimava em abrir sempre que lhe dava na telha.
Até a Escola, eram por volta de três horas de viagem, pelas águas calmas e cor de garapa do Rio Ribeira de Iguape. As aulas do antigo curso primário iniciavam no dia 15 de fevereiro....assim, o mais provável é que o dia daquela viagem foi 13 ou 14 de fevereiro de 1964.
Havia concluído o Curso de Formação de Professores Primários pelo prestigiado Instituto de Educação Otoniel Mota, em Ribeirão Preto, e o que sabia era que queria, e muito, ser professor primário. Sim, professor primário, disso não tinha dúvidas. E não foi difícil esta opção frente a um emprego nas Casas Pernambucanas, oferecido pelo Cônego Arnaldo, e à chance de iniciar a promissora - na opinião do Sr. Sílvio, gerente da Agência do Banco Mercantil, em Ribeirão Preto - carreira de bancário, ou, mesmo, à oportunidade de ganhar, na época, um bom salário, tornando-me escriturário no antigo e, para mim, tão charmoso Umuarama Hotel, na rua São Sebastião, pertinho do Cine São Paulo, ou, ainda, de me profissionalizar, como jogador de futebol, no Comercial. Na verdade, a única dúvida que me assaltou, à época, foi entre me tornar professor primário ou continuar a carreira religiosa de monge beneditino olivetano...
Nós - meus pais, uma irmã e um irmão – havíamos mudado de Pedregulho há alguns anos, à busca de trabalho em Ribeirão Preto, onde vi meus horizontes se abrirem. Não me cansava de, fascinado, admirar – e ser repreendido pelo meu irmão: “não olhe desse jeito, vão achar que você é caipira e que nunca viu prédio” – os edifícios da Rua São Sebastião. Inesquecível a primeira vez em que, a trabalho, tive que ir até o oitavo andar de um prédio e, por medo e incompetência de lidar com o elevador, fazê-lo, tanto na subida como na descida, por suas escuras escadas.
No Otoniel Mota, havia um professor, o Dr. Divo Marino, ligadíssimo em política, que era proprietário de um jornal, o “A PALAVRA”, no qual trabalhei por mais de um ano. E se em Pedregulho tínhamos medo de falar ou ouvir as palavras comunista e maconha, no A PALAVRA ficava face a face com o Luciano Lepera, deputado comunista que não comia criancinhas e, ao contrário, tinha por elas e pelos menos favorecidos uma grande paixão... e com o Márcio, linotipista do jornal, que teimava em me iniciar em tragadas que não as do Continental.
Ribeirão Preto era, à sua moda, hoje tenho isso claro, conectada com o que acontecia no país: se em Pedregulho o cinema do Salim se restringia às sessões de quarta, sábado e à matinê de domingo, em Ribeirão eram, só no centro, quatro bons e elegantes cinemas, com sessões noturnas diárias. Havia importantes indústrias sediadas na cidade – o que favorecia um movimento operário forte e atuante - e as Faculdades de Medicina, Farmácia e Odontologia davam à cidade ares menos provincianos... Enfim, pelo menos para mim, a cidade borbulhava de oportunidades.
O movimento estudantil, muito ligado à Igreja, era forte. Havia grupos de teatro, grupos de estudo do método Paulo Freire, recitávamos, em coral, o “UM DIA NA VIDA DE BRASILINO” e, no auditório da PRA-7, ouvimos Vinicius de Moraes declamar – ao lado de uma garrafa de whisky – o seu belíssimo Operário em Construção.
Fui para Registro atuar como professor primário, com a perspectiva de que à escola cabia preparar as crianças para se beneficiarem de uma sociedade mais justa e digna, que, com certeza, estávamos construindo. Era o sonho!
Lá pelas onze horas, sob um sol forte e calor imenso, o contra-mestre da Lancha Sete me avisa que o próximo porto era o da Escola da Lagoa Nova, onde eu deveria descer. Parte a lancha e eu permaneço parado, com a mala no chão, indeciso entre vislumbrar sua partida ou me aproximar da escolinha, a vinte metros do rio...Ainda parado, mala e guarda-chuva no chão, quando, do nada, surge um japonesinho:
- “É o professor?”
- “Sim.”
- “A chave da escola.”
Como do nada havia surgido, da mesma forma, o menino se evaporou no meio do bananal.
Entrei na escola, que seria também a minha casa: sala, cozinha com fogão de lenha, um quartinho minúsculo e, claro, a sala de aula propriamente dita. À frente da escola, o Rio Ribeira, aos fundos e à direita, um bananal e, à sua esquerda, um brejo enorme, chamado pelos locais de pantano – paroxítona - e não pântano - proparoxítona -, como eu queria.
Meia hora depois, surge, outra vez, o japonesinho:
- “Pai mandou chamar para almoçar.”
Fomos. Andamos por um "carreirão" do bananal por uns quinze minutos e chegamos à casa do senhor Seishum, onde almoço e acerto que seria lá que passaria a ter minhas refeições. Educado, o meu hospedeiro me disse que, naquela semana inicial, pediria à mulher que fizesse o jantar mais cedo, para que eu não tivesse que voltar no escuro: “até se acostumar...depois acostuma.”
Mário, o japonesinho, veio me chamar para o jantar. Voltei com dia ainda claro e com um litro de querosene para acender a lamparina.
Será que vou ter medo de dormir aqui, tão só?
Dia seguinte, logo de manhã, avisadas não se sabe por quem, surgem as crianças pela estradinha que cortava o bananal: vinham descalças, desconfiadas, com suas sandálias havaianas entre os dedos das mãos - chegando no “porto” frente à escola, lavavam seus pés e se calçavam; pelo rio, de canoa, remando vagarosamente, vinham outras crianças, lá dos lados da Guaviruva.
Iniciei minha vida de professor primário naquela manhã.
Meu radinho de pilha sintonizava, mal e porcamente, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Na noite de primeiro de abril, entre chiados, roncos e misturas de estações, tomo conhecimento da Revolução.
Rádios da “legalidade” se uniam, confusamente, naqueles ermos do Vale do Ribeira, com as ondas das partidárias da revolução, aumentando a confusão: o que, realmente, estava acontecendo?
Providencio pilhas novas com um dos filhos do Senhor Seishum, mas o problema era o impotente radinho e não as pilhas, descubro.
No dia 15 de abril, aconteceria a reunião mensal dos professores. Numa sexta-feira, a Lancha Sete me leva a Registro, para a reunião, que ocorreria no sábado. Chego no fim do dia em Registro e vou, desconfiado, à caça de notícias. O fato de ser completamente desconhecido na cidade, em um momento em que prevalecia um clima de desconfiança e “cagüetagem”, dificultou esta minha tarefa.
À noite, na pensão, um enorme rádio de pilha - potente e perfeitamente sintonizado com rádios de São Paulo - confirmou: todas as esperanças dos últimos anos haviam se acabado, todos os movimentos e grupos com os quais comungava, partilhava idéias, sonhos e princípios haviam sido derrotados...

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Ganga e Ritinha



Dr. Paulinho era o novo delegado de Sete Barras. Recém-formado, prestara concurso para delegado e fora muito bem classificado. Somente o desejo de retornar à sua região fez com que escolhesse as delegacias de Sete Barras e Eldorado para iniciar sua carreira. Alternadamente, dava plantões de dois e três dias por semana em cada uma daquelas pequenas e pacatas cidades.
Chegou à delegacia, abriu sua sala e percorreu com os olhos os papéis colocados sobre a mesa: uma queixa de roubo de galinha, outra de excessos de bebida e barulho, no baile do sábado, e uma, esta sim, grave: tentativa de enforcamento. Leu a queixa com atenção e, face ao dia tranqüilo que pensava ter, lamentou ter que tomar providências.
Chamou Molina, soldado que prestava serviço na cidade já há uns dois anos. Procurou ser o mais formal possível:
- “Soldado Molina, busque preso, no Bairro de Votupoca, o Ganga.”
- “Sim, senhor delegado. O senhor me permite saber o porque da ordem de prisão?”
- “Vá com a Rural da delegacia e volte antes do meio dia; tenho compromissos à tarde e vou precisar da perua.”
- “Sim senhor, seu Delegado.”
Molina era um jovem soldado, com seus trinta anos de idade. Solteiro, muito alto, pele clara e cabelos loiros, era um sucesso com as mulheres da cidade e fazia bom uso de seu charme. Pegou a chave e os documentos da velha Rural e partiu para cumprir as ordens do Delegado. Da cidade ao Bairro de Votupoca eram mais ou menos 14 quilômetros, por uma estradinha de terra que ladeava, no sentido de Eldorado, a margem esquerda do rio Ribeira de Iguape.
Molina sabia que Ganga não morava no Bairro de Votupoca. Na verdade, pensava, conclusivamente, “Ganga não mora em lugar nenhum: é um dia aqui, dois ali, uma semana do lado de cá do Ribeira e duas do lado de lá; parece cigano”.
A única certeza era a de que estava sempre acompanhado de Ritinha, sua mulher.
Ganga era um homem feio. Baixo, troncudo, braços excessivamente grossos e curtos, a pele escura marcada por sinais de catapora, os cabelos pixains, sempre sujos; os lábios grossos formavam uma boca com poucos dentes e os olhos, remelentos, debaixo de ralas sobrancelhas, eram pequenos, perto do enorme e gordo nariz. Andava com passos curtos, pernas meio abertas de tão grossas, braços balançando: parecia estar sempre imitando um macaco enorme. A fama era de que possuía uma força descomunal; chegavam a dizer que, certa vez, atravessara o Ribeira a nado, carregando nos dentes uma canoa. Os que diziam que era verdade e que haviam visto ação de tanta força eram contestados por outros que diziam que Ganga nem nadar sabia. Perguntar a ele pouco adiantava: quase não falava. Gostava mais era de dizer sim ou não.
Ritinha, sua mulher, carregava sempre a trouxa com a panela, uns garfos, faca e um velho e encardido cobertor. Acompanhava Ganga e trabalhava com ele nas lidas da roça, usando sempre o mesmo surrado vestido de chita e um pano sujo que lhe cobria os cabelos. Era mais clara que Ganga e, também, quase não possuía dentes na boca. Ambos estavam sempre descalços e tinham grossos calos nos calcanhares rachados.
Percorridos uns seis quilômetros, Molina pára na primeira chiboca à beira da estrada e pergunta aos caiçaras que lá estavam se haviam visto Ganga.
- “Não senhor. Deve estar prá frente, talvez no sítio do Nerso”.
Molina pôs a perua a andar e lá ficaram os caiçaras, curiosos. O que Ganga havia aprontado? E cada um tinha lá sua resposta: para um velho negro, Ganga tinha, com certeza, roubado alguém; o que coloca outro, logo, em defesa de Ganga, que ele conhecia muito bem: que nunca havia roubado e que nunca roubaria nada de ninguém, que Ganga tinha brios e que só não gostava, mesmo, era de, como nós, ter patrão fixo. A conversa prosseguia, mais uma rodada de pinga animava a roda de amigos e o assunto logo mudou.
Logo depois da terceira curva da estrada, depois da chiboca, Molina pára a perua para perguntar do Ganga a um grupo de crianças que, uniformizadas e com seus embornais cheios de livros e cadernos, iam para a escola. Molina pára a perua e pergunta:
- “Escuta, vocês viram o ...”
Foi só. Como um bando de preás perseguidos por cachorro bravo, a ,turminha, como um raio, se enfiou pelo meio do bananal e sumiu; logo, logo, não se ouvia um pio.
- “Cagões, medrosos, filhos da...”, reagiu Molina, e tocou em frente a perua, que, na estrada de terra e com tempo seco, deixava atrás de si uma nuvem vermelha de poeira.
Pouco depois, viu na curva da estradinha que um cavaleiro se aproximava. Molina torcia para que este não saísse correndo como aquele bando de meninos filhos da puta e lhe desse alguma informação de Ganga, a quem já estava começando a odiar: estava dando muito trabalho. O cavaleiro era Miguel, que, garboso, puxa as rédeas, parando Trovão, seu belo e arisco cavalo.
- “Bom dia, Sr. Molina. Em que posso servir?”
Miguel era um grande e temido valentão, com fama que ia de Eldorado até Juquiá. Conhecia Molina, já tinha sido preso outras vezes e havia estado, durante certo tempo, por mais de um ano, preso, por assassinato.
- “Viu Ganga por aí?”
- “Vi não e graças a Deus, porque se eu pego aquele nego, não sei o que faço dele. Mas, se conheço aquele filho da puta, deve estar na chiboca do Félix, bebendo pinga, fiado, porque dinheiro para pagar não tem, não.”
A chiboca do Félix era logo depois da escola de Votupoca. Molina toca a perua e Miguel segue estrada, comendo o pó deixado pela Rural. “Que será que aprontou aquele macaco prá polícia tá atrás dele? Tomara que prendam o desgraçado. Prá mim, melhor não existe que sumam com ele”. Seu último encontro com Ganga tinha sido em um domingo, no campo de futebol de Votupoca. Tinha lá um torneio, entre times de Juquiá, Eldorado e Sete Barras. Todo o povo da região presente para ver a tarde de jogos. Miguel havia bebido um pouco mais que o necessário e, do alto de seu cavalo Trovão, provocou Ganga, ameaçando lhe dar com o chicote que empunhava. Ganga quieto. Miguel, valente e orgulhoso de sua valentia, continuou a troçar de Ganga. Armou o chicote e ameaçou. Ganga segurou e, com força, puxou o chicote que estava preso no punho de Miguel; e, junto com ele, cavalo abaixo, veio Miguel. Ganga, como um tatu, emborcou-se sobre Miguel, que sentiu sua força descomunal quase lhe tirando a força de respirar. Foram precisos uns dez homens para tirar Ganga, em seu abraço de tamanduá, de cima de Miguel: a turma do “deixa disso” e mais um polícial que viera acabar com o tumulto. Miguel continua a esbravejar que vai matar, que vai dar uma surra, na próxima vez em que encontrar Ganga, mas, esperto, deixa que o carreguem para longe. Ganga, no mesmo instante, torna a sentar no chão e, como se nada tivesse acontecido, se põe, admirado, a ver o jogo, que havia parado e que recomeçara.
A perua com Molina alcança a fazenda Boa Esperança, do Minoru.
Minoru, japonês de Juquiá, tinha várias fazendas de banana, mas Boa Esperança era uma das maiores. Moderna, produzia banana tipo exportação e possuía até administrador, que era o Ezupério.
Ezupério, o administrador da Boa Esperança, era um galego alto, com quase dois metros e pouca prosa. O que se falava em toda a região era que, louco por um rabo de saia, dormia com todas as mulheres dos homens que trabalhavam na Boa Esperança. Assim ficava falado quem, casado, trabalhava na Boa Esperança.
Na sede da Boa Esperança, havia a chiboca do Ezupério. Sua mulher tomava conta, vendendo, para os agregados da fazenda e para outros, além de boa pinga, outras necessidades: banha de porco, arroz, farinha e querosene. Molina pára a perua, desce para tomar água e aproveita para saber do Ganga. Do paradeiro do Ganga não ficou sabendo, mas descobriu que a queixa de tentativa de enforcamento partiu de Ezupério.
Havia, na Boa Esperança, a uns cinco quilômetros da sede, um lugar que os caiçaras chamavam de “pantano”. Talvez uma antiga mudança de percurso do Ribeira, o “pantano” era uma região movediça e a sua travessia se dava sobre paus de eucaliptos, que, com em uma pinguela, eram colocados, verticalmente, sobre uma base de outros eucaliptos colocados transversalmente. À beira do “pantano”, havia uma cabana e uns pés de laranja e mexerica do rio. Lugar ermo e, segundo os mais medrosos, assombrado: “lá mora o saci”, dizem uns, enquanto que, para outros, no pé de guatambu, em frente à cabana, “já ficou amarrada a mula sem cabeça”.
Tomada a água e sem saber de Ganga, Molina segue em frente. Sai da Boa Esperança e chega ao sítio do Seu Benedito, velho e respeitado morador da região. O sítio do Sr. Benedito era vizinho da escola de Votupoca. Em frente à escola, lá, parado, fumando, estava o Sr. Benedito. Respeitoso, Molina cumprimenta e procura saber do Ganga.
- “Trabalhou pra mim, na semana que passou. Alguma coisa com ele?”
- “Uma queixa do Ezupério, se não me engano. Tentativa de enforcamento. Coisa séria.”
- “Sei dele não. Talvez na chiboca do Félix, logo na frente.”
Sob a fina poeira deixada pela perua, o Sr. Benedito fica ensimesmado, pensando. Ganga havia, do nada, aparecido na região, já há uns cinco anos, e até então tinha se comportado bem. Trabalhava hora para um, hora para outro; com o que recebia, comprava lá seus mantimentos, sua pinga e não bulia com ninguém, sempre respeitoso e quieto consigo mesmo.
Oscar deve saber. Chama o filho Oscar, que vivia mais a fim de pescar e caçar curiós e bicudos do que de trabalhar. Por suas andanças à toa, de tudo sabia.
- “Polícia passou procurando pelo Ganga, queixa do Ezupério. Sabe de alguma coisa?”
- “Sei, sim pai. Fui eu que desamarrei o homem do pé de guatambu, lá no “pântano”. O Ganga pegou serviço com ele, ele buliu com a Ritinha e se danou. O Ganga amarrou ele, com o cabresto do cavalo, lá no pé de guatambu, isso no dia de ontem.”
Foi assim que aconteceu. Ganga viu quando Ezupério apeou de seu cavalo branco e amarrou o animal no guatambu, frente à cabana onde estava Ritinha, fazendo a comida do almoço. Ezupério, primeiramente, foi até uma moitinha de banana, frente à casa, e se pôs a mijar, descaradamente, virado para a porta da cabana. Ritinha, de dentro da velha cabana, via e não estava, em sua singeleza, entendendo nada. Confiante, Ezupério arria as calças até o chão, com o enorme sexo teso seguro em uma das mãos e, sorridente, se aproxima da cabana. Com a outra mão, segurava as calças arriadas, quase no chão, com as enormes pernas brancas à mostra.
Entra na cabana e, do alto de seus quase dois metros, procura abraçar a pequena Ritinha, com seus metro e meio, que, ainda sem nada entender, coloca as mãos no rosto, procurando se proteger. Ezupério solta as calças no chão e, com as duas mãos livres, procura Ritinha. Respiração ofegante, olhos cerrados, a tara sem limites impediu de ver que, por trás, se aproximava Ganga, que, como um tamanduá, agarrou-o e o tirou da cabana para fora. Ezupério esperneava, as longas pernas brancas balançavam no ar, tentando, com toda força, desvencilhar-se daquele abraço forçado. Suas costelas pareciam quebrar sob a força de Ganga. Com o cabresto do cavalo de Ezupério, que Ganga havia soltado, o galego é amarrado no pé de guatambu.
Ganga entra na cabana e comem lá o que havia sido preparado para o almoço. Não olha para Ezupério quando, de barriga cheia, parte, junto com Ritinha e sua trouxa, à procura de outro lugar. Se tivesse olhado, teria visto o enorme galego amarrado no pé de guatambu, agora com o sexo mole e encolhido no meio das pernas longas e brancas. Mas, não olhou e se foi. Aproveitou e passou na chiboca do Ezupério, pegou um litro de pinga, um de querosene e um pacote de macarrão.
Oscar andava à procura de curiós e bicudos lá pelas bandas do pântano e viu o cavalo de Ezupério, sem cabresto, pastando, selado, por perto. Sua curiosidade o levou até a cabana, onde encontrou Ezupério furioso, gemendo e dizendo intempéries, amarrado, com as calças arriadas. Desamarrado, Ezupério ergue as calças, chama o cavalo e volta para casa. Havia ficado ali desde a manhã e o sol já se estava indo embora . Escurecia.
As feridas feitas pelo cabresto deram origem à estória do enforcamento. O louco do Ganga, que não trabalhava direito, quase o enforcou, dizia. Sua mulher pegou o jipe e foi à cidade buscar mertiolato para passar nas feridas. Aproveitou e deu queixa na delegacia.
Ganga estava na chiboca do Félix. Molina deu ordem de prisão e ele quieto, como sempre, chamou Ritinha para entrar na perua. Molina recusou.
- “Preso é você e não sua mulher. Ela não vai.”
Em uma de suas mais longas frases já pronunciadas, Ganga diz, sério: “Antão tamém nun vô.”
Impasse criado. Félix aconselha Molina a levar também Ritinha.
E, pela primeira vez na vida, os dois andam em coisa que não fosse a pé, cavalo e carroça. Pelas janelas da perua, os dois se encantavam com a velocidade das bananeiras que passavam.
A perua retorna com os três para Sete Barras.
Era uma época de luta armada e os guerrilheiros, liderados pelo Lamarca, estavam na região. O Exército iniciava uma longa operação, visando liquidar com os guerrilheiros. Naquela tarde, Sete Barras, que nunca tinha visto tenente ou capitão, tinha, nada nada, dois coronéis do exército brasileiro, uma frota de mais de trinta jipes, alimentos e cobertores que seriam distribuídos para a população. O delegado Paulinho, lá, com tantos coronéis e capitães, esperava a perua para dar início à mega operação.
Ganga chega à delegacia e a queixa foi desconsiderada, por “absoluta falta de provas”.
À tardezinha, Ganga e Ritinha, de volta, passam frente à chiboca de Ezupério. Chegam até o sítio do Sr. Benedito e o encontram frente à escola.
- “Tem serviço prá mim?”
- “Sim, Ganga. Pode carpir o bananal lá dos fundos”.
Sabia que, por dois ou três dias, lá ficariam Ganga e Ritinha, carpindo seu bananal. Depois...