quinta-feira, 6 de setembro de 2012

O VISITANTE–V–OS FINAIS: A BARRIGUDA!

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“BARRIGUDA: ...design comum a algumas árvores da família das bombacáceas, de tronco grosso e ventrudo.” Houaiss, Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa.

Bem antes, muito antes de clarear o dia, ainda com as estrelas piscando no céu negro e a com a lua gorda e amarela no alto, José Antônio se pôs de pé. Abriu os olhos e levantou da cama quieto, evitando barulhos que despertasse Nair; não queria que ela acordasse, pois então, logo de manhã, seria obrigado a falar, responder perguntas: “porque tão cedo? Alguma coisa? Você está bom?”, e o que mais José Antônio queria eram silêncios: nada queria ouvir, nada queria contar, nada de explicações que, naquela decidida madrugada, não ousaria explicitar. Acordou com esperançosas alegrias. Quieto, como um gato, catou a camisa pendurada na cadeira, vestiu e saiu do quarto enfiando - desequilibrado, tropeçando - a calça por cima da cueca: o meio das pernas atiçado, volumoso apontando direção em frente: “depois que mijar volta para o lugar, endireita”, pensou. Saiu para o terreiro e caminhou na direção da moita de bananeiras onde desabotoou as braguilhas e, ainda com o pinto volumoso, quente, febril, se pôs a urinar e a pensar. Será que encontraria solução para resolver satisfatoriamente sua vontade pessoal sem ferir e desgostar a quem estimava? De imediato não via solução. Decidido: os estimados serão feridos: com certeza sua mulher Nair e o compadre Chico de Barros, seus filhos, talvez menos. Imaginou ali, no escuro do seu quintal, que mesmo seu anjo da guarda logo, logo estaria a chorar pelo pecado que, com certeza, ainda hoje iria cometer. Pensou mais: as paixões desequilibram nossos interiores, rompem as harmonias preservadas por toda a vida, demolindo a cerca que a protegiam tal como uma cerca de arame farpado existe para cercar e proteger as vacas e os cavalos dos perigos, dos desequilíbrios! Mas José Antônio sentia, como nunca havia sentido, o fluxo da vida, e encorajou-se pelo gosto em voar acima da cerca que o mantinha inerte e calmamente equilibrado, cheio de conformações. Urgia cachoeiras de ruidosas e desconhecidas emoções!

Vida!

E continuou ensimesmando: a escuridão da madrugada não facilitava a clareza dos miolos. Pensamentos embaralhados na cabeça! Uma cachoeira de sins e de nãos, de vontades, de deliciosos e oníricos pecados, de sonhos com o corpo antecipando as vontades do pensamento, buscando realizações! “Acho que não adivinho meu destino pela fraqueza de não saber pensar as profundezas do meu viver, do meu existir e de só ser capaz de pensar nos simples e superficiais cotidianos e, por isso, não alcançar meus instintos primordiais?” A calça elevada pelo volume do pinto anunciava uma nova vida? “Quem manda e comanda o homem? A alma? Ou o pinto, ou de antes, o meio das pernas de uma mulher e seus peitos bicudos, suas pernas longas, suas opulentas nádegas? As asas dos anjos ou a catinga de enxofre do capeta?”.

José Antônio decidiu-se mais e mais.

Berrou o nome das vacas na ainda escuridão da noite - o pasto escuro - e pastoreou-as até o curral para tirar seu leite. Bulir e forçar as mãos para deixar os miolos em paz, sem pensamentos de dúvidas. Queria, a cada momento mais, Sebastiana.

O dia clareava devagar! No leste, de onde vinha o vento que soprava, a bola do sol vingava acima da serra do Baguaçu. Vermelha! Fogosa: um vulcão a encher de calor a madrugada fria: esperanças! Melhor: certeza e não mais esperanças.

Tirou o leite de todas as vacas: pegou um canecão de dois litros e separou o que era para ferver e encher o bucho dos meninos; ao restante, acresceu dois litros de água da cisterna e fechou os galões: “deve dar uns vinte litros”, pensou enquanto colocava os galões na charrete. Logo levaria até o ponto das três cruzinhas, na estradinha de chão: lá o Jaime leiteiro iria cheirar e conferir para ver se não tinha água, mediria e jogaria, mal ajeitados, na carroceria do caminhão e seriam levados para a cidade: leites transformado em queijos, manteigas, leites desnatados, requeijões.

José Antônio assistiu, meio escondido atrás de um pé de araticum, a chegada do caminhão GM do Jaime leiteiro: desceu do caminhão, fumando cigarro de papel, e carregou os galões. Tudo rápido, mas sem pressa: na carroceria os latões e na boleia, de garupa, viu a nuca de Chico de Barros. Se foi deixando todo o dia para ele, José Antônio, e Sebastiana.

A sombra da paineira os esperava. Era essa sua certeza!

Sob a copa da paineira, protegida do sol, estava Sebastiana. Trabalhava na colocação dos forros e pelegos a fazer uma cama macia meio as moitas de vassoura. Ao redor dos forros e dos pelegos – um confortável colchão - protegidos do sol, Sebastiana colocava flores da paineira, como a cercar e a delimitar o espaço do amor.

Quando o viu, simplesmente, sorriu. Encorajado pelo sorriso José Antônio ousou-se por demais e se aproximou: carinhosamente tocou seu rosto, limpou uma lágrima que escorria rosto abaixo, e esculturou, com as mãos, seu corpo, demorando um pouco mais na enculturação dos peitos empinados. Nus, sob a copa da paineira, se dedicaram aos amores: fortes e delicados, gemidos e doces - até aquele momento impronunciáveis - palavras, sussurros! Se amaram e após os auges amorosos se deixaram prostrar abraçados sobre os pelegos dedicando-se ao silêncio. O sol se fez forte, atravessou a copa da paineira: Sebastiana levantou-se semelhante a uma deusa dos livros, se vestiu e partiu. Caminhou, tão segura do filho que tinha, apoiando o ventre com ambas as mãos e fazendo os passos com as pernas meio abertas: era o peso do filho que acabara de fazer. Já o amava infinitamente!

José Antônio vestiu-se quieto. A calça agora não mais esticada com o volume do pinto, agora murcho, enfiado meio das pernas, calado, feliz!

Os dias seguintes assim se foram: todas as manhãs, na mesma hora dos acontecidos, José Antônio ficava sob a sombra da paineira esperando Sebastiana. Arrodeava em volta do que foi o leito do amor semelhante aos animais bravios presos em uma jaula: estupidamente marchando de lá para cá a procura de uma impossível fuga que as grades da jaula impedem, José Antônio caminhava em círculos volta do leito, marcado com as flores da paineira, a murchar. Sebastiana sentia-se completa: não era mais um corpo de mulher oco de filho e ele, José Antônio, com a alma vazia: sabia agora o que era o amor. Queria mais e mais!

As flores da paineira que cercava o leito do amor secaram: à sua volta o trilho feito com os passos de José Antônio. Tristezas infinitas desenhadas ao lado das flores secas.

Chico de Barros sabia, desde sua volta da cidade onde fora comprar óleo, sal, farinha de milho e chitas para o vestido de Sebastiana, que tudo mudara. Esperou as luas do sangramento para perguntar o que tinha certeza. “Dá assim para notar?” “Notei ainda quando estava na vila, onde fui comprar as necessidades!”. “E então, Chico?” “Não sou o pai: sei de minha incompetência para esta tarefa: defeito no corpo em gerar filhos. Só vontades!” “Carecia de encher meu corpo e minha alma com um filho: tão importante quanto viver!” “E agora?” “Vou criar meu filho, disso eu sei. Eu já amo este meu filho mais que tudo na vida!”. “Não sou o pai.” “Seja, é só querer! Te gosto demais, Chico! Mas carecia demais dessa necessidade.” “Não!”

Chico de Barros levou Sebastiana até embaixo da paineira. Chorou ao ver o círculo de flores murchas da paineira e o trilho feito pelos passos de José Antônio. Sacou o punhal: “mato os dois: mãe e filho!” Forte, como um tamanduá, abraçou a esposa e procurou o meio das pernas: enfiou o punhal, fazendo sangrar, imaginando, tirar primeiro a vida do filho que não era seu. Imediatamente depois cravou o punhal meio aos peitos de Sebastiana, agora maiores. Sebastiana sucumbiu ao primeiro sangramento meio das pernas. Perdera o filho: nada mais importava.

Chico de Barros, depois das mortes, lidou em preparar a cova; o corpo de Sebastiana, esticado debaixo da paineira, quase grudado nas duas poças de sangue: negras, que se secavam ao sol que teimava em atravessar a copa da paineira - casa do amor. Chorava!

José Antônio se aproximou e viu:

“Te mato desgraçado. Assassino, bandido do caralho! Desgraçado, desgraçado e desgraçado!”

Jogou-se em cima de Chico de Barros e os dois homens lutaram sabendo que só a morte de um aliviaria a vida do outro. Rolaram enfiados em abraços mortais, fortes, quebradiços de ódio: no meio dos corpos dos homens enlouquecidos por amor e ódio se misturava galhos de capim arrancados do chão, flores caídas da paineira e sangue que iniciava a derramar. Matos, flores, terras e sangues: ódios mortais. José Antônio venceu e mais uma poça de sangue iniciou seu enegrecimento debaixo da paineira.

José Antônio preparou três covas: duas maiores e uma pequena. O que se diz é que a pequena cova – onde José Antônio colocou o sangue primeiro da Sebastiana, vingou e frutificou-se nas raízes e a paineira – barriguda - teve seu caule engordado, crescido, ou “ventrudo” como aparece escrito no dicionário.

Isso é verdade!