segunda-feira, 25 de agosto de 2014

CAMINHAR E ESCREVER–HISTÓRIAS - UM -

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E já que você gosta de escrever porque não aproveita essa sua peregrinação e rabisca o seu dia a dia para o jornal? acho que com isso dá até para ganhar trocados o suficiente para pagar os albergues, eu bem sei que não precisa, mas dinheiro a mais, mal não faz, é o que penso.
Conheci – e, com o tempo, tornei-me amigo de Seu Patrício – em uma das caminhadas que fiz, talvez no Caminho da Fé , ou o da Luz, ele andando sempre depressa e eu devagar: um velho espanhol, homem alto de pernas longas, bravo, estourado, um infarto – quando realizava o Caminho da Fé - duas pontes de safena, marca-passos e a proibição, para ele grave e triste, de realizar longas caminhadas, proibição, aliás, solenemente reafirmadas aos finais de semana junto ao irmão padre, que obriga o Seu Patrício, mãos sobre a Bíblia Sagrada, jurar a não mais se aventurar por longas andanças em solitários caminhos e menos ainda a visitar uma determinada e obscura casa de oferta de masculinos prazeres, e esta parte do juramento é sempre realizada em código – o irmão recita e ele repetia a promessa em latim – tornando inacessível ao leigo ouvido de Dona Cecília, mulher de Seu Patrício, que – véu negro cobrindo os cabelos brancos, rosário às mãos, contrita - participa da cerimônia semanal de promessas e juramentos do marido ao irmão padre; este – Dom Marcos - uns dois anos mais velho que o irmão, que agora conta com seus setenta e mais de dois anos , e aos domingos, após celebrar a missa das nove, sempre recheadas de solenes prédicas - seu preferido e usual tema atual, do alto do púlpito rococó – é defenestrar o espiritismo kardecista que em sua imaginação impregna com mais perigo as ovelhas de sua paróquia do que as novas igrejas de crentes, mas – aí ele só pensa, baixo, ninguém ouve - tudo farinha do mesmo saco, todos uns legítimos filhos da puta; continuando: tão logo dá por encerrada suas obrigações litúrgicas dominicais, pega sua lambreta vermelha e se prepara para passar o resto do santo dia de domingo com o irmão e a cunhada, onde busca esquecer um pouco sua vida de sacerdote - tão logo encerra a liturgia das promessas e rezas com o irmão e a cunhada. Quanto às promessas – solenemente realizadas na sala, frente a imagem de São Tiago, todo iluminado por acesas velinhas coloridas e enfeitado com perfumadas flores colhidas no quintal por dona Cecília – é bom que se diga que muitas vezes não são cumpridas, mais no que se refere à promessa de visitas à obscuras casas de prazer – alegres encontros para usufruir as cortesias de dona Mercedes com seus rosados seios fartos – que, talvez por ser de curta duração – coisa de hora, hora e pouco, afinal os setenta anos pesam - e são facilitados – a tentação, segundo o irmão padre - pela proximidade da casa de dona Mercedes com a Caixa Econômica, onde seu Patrício é cliente e rotineiramente aparece a cada início de mês: passa pela porta rotatória de vidro que nunca apita apesar do marca passos, a do aeroporto vez ou outra apita, as mãos cheias de boletos de contas a pagar com o salário de aposentado, não usa os serviços da internet para transações bancárias de medo de “raquers” e também porque a obrigação de ir à Caixa é desculpa para sua saída mensal sem maiores explicações a Cecília, sua mulher por mais de quarenta anos: vou ao banco pagar as contas, logo de tarde eu volto; e a obrigação de pagar as contas é - nem sempre, mas quase sempre - emendada com os suaves e doces encontros com a puta Mercedes, sempre à tarde, na casa dela, as outras meninas dormindo descansando do trabalho noturno; enfim, as duras e pesadas contas e prestações a serem pagas são a tentação – o capeta - para descumprir a promessa feita aos domingos – o solene irmão padre, as mãos sobre a bíblia, os olhos fechados e naquela hora o sentimento verdadeiro de cumprir -; mas, Deus do céu, o seu Patrício tem que ir à Caixa pagar as contas, a casa de Mercedes tão encostada na Caixa, dois quarteirões, a carne é fraca, pensa sempre enquanto toca a campainha da casa branca de janelas azuis e antecipa em sua mente o rosado rosto de Mercedes, seus cabelos longos, ela sempre abre primeiro uma janela da veneziana, o vê e sorridente: entre benzinho, estava mesmo te esperando, ando já de saudades do meu bem. E se sua rotineira obrigação de ir ao banco pagar as prestações e contas compromete a promessa jurada o mesmo não ocorre com a outra promessa - a de não mais realizar suas inocentes caminhadas que costumavam durar semanas, dias, meses - : seu Patrício não mais realiza grandes caminhadas, ou peregrinações que é como ele gosta de dizer.
Olhe seu Patrício, eu gosto de escrever, mas sem compromisso; nunca tive coragem - ou competência - para mandar meus rabiscos para jornais, escrever, para mim, é coisa mais de gastar o tempo que me resta nessa vidona que deus me deu (e que ele nunca saiba que escrevi deus com o d minúsculo, católico fervoroso, frequentador da missa dominical regadas de fervorosas orações, confissão e hóstia santa); pois saiba que já conversei com um jornalista, amigo de meu irmão, aquele que é padre, e ele quer seus relatos, que ele chama de crônicas, acho uma bobagem estas classificações: crônicas, novelas, romances, no fundo, bem no fundo, tudo não passa de histórias, de prosas você não acha?; sim, acho que sim, que é tudo a mesma coisa, mas seu Patrício preciso pensar melhor...; ele, o jornalista, disse que tem que ser histórias curtas, que o povo não tem mais paciência de ler coisas compridas e eu mesmo, posso dizer que nunca consegui atravessar um livro inteiro, me cansa.
O jovem jornalista, Anselmo, é um rapaz simpático e bonito, moreno, sorridente, tem a segurança dos jovens, sem as dúvidas e as complicações que o tempo vai metendo na cabeça da gente: procure ser o mais objetivo possível, use uma linguagem clara, poucos adjetivos – por favor, nada de montanhas azuis, isso não existe, as montanhas são negras -; tá bom, Anselmo, tentarei ser objetivo, embora reconheça que sou dado a voos de longas divagações.
1 - Caminhos e andanças!

Mochila às costas e todo o dia pela frente: montanhas, morros, rios, cachoeiras, pastos, pontes, pinguelas, riachos, córregos, o céu de um impensável azul ...e depois daquele morro o que é que vem? vem outro morro ou talvez um campo, ao fundo um riozinho de águas claras, piscoso, uma paineira que convida ao repouso sob sua sombra, lanchar, beber água, tirar as botas e por as pernas para cima, descansar olhando por baixo dos galhos a nuvem que passa, ver – quieto para não espantar - o canarinho da terra carregando um gravetinho no bico para construir seu ninho. Besteira? deve de ser, mas gosto destas besteiras, acho!
O desejo de caminhar dias e dias é velho em mim. Quando jovem acompanhei, invejoso, pela revista O Cruzeiro, os soldados do exército que caminharam de São Paulo a Brasília, quando de sua inauguração: os pés em frangalhos, machucados, os coturnos - duras e pesadas botas - com os saltos em pedaços, o couro rasgado, desgastado, as fotos com os pés feridos que - há época – me causaram profundo desânimo: caminhar por longas distâncias é puro sacrifício, sofrimento; desisti da ideia, que voltou a brotar em mim já velho, aposentado, com tempo de sobra e, nada de coturnos, mas com calçados macios, fiz, com um amigo, parte do Caminho da Fé: andamos pela Mantiqueira a dentro por uns quatro ou cinco dias, os dois orgulhosos por terem percorrido mais de cem quilômetros a pé; caminhamos de Águas da Prata até Borda da Mata de onde voltamos para casa. Mais que entusiasmados, mês e meio depois, voltamos ao caminho, agora para percorrer de Borda até Campos de Jordão e foram mais cinco dias de caminhada e eu já equipado com bota própria para caminhada, roupa leve, de fácil secura, e uma boa mochila.
Viciei!