terça-feira, 6 de dezembro de 2011

PLUTARCO E AS OVELHAS

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“O pensamento parece uma coisa a toa,

Mas como é que ele voa,

Quando começa a pensar”

Nesta caminhada pelo Caminho de Santiago conheci pelo menos dois velhos que, quando na ativa, tiveram como profissão ser pastor de ovelhas.

De um, o Sr. Pedro, hoje um velho gordo que produz lindos e poéticos cajados já falei. Teve um outro, agora “jubilado”, como gosta de dizer, mora atualmente em Madrid, mas pastoreou toda a sua vida na região de Catalunha.

No Caminho quando via ovelhas me lembrava destes dois pastores e como o “pensamento voa” vinha em meu pensamento uma história que tem pequenas ovelhas, meu irmão e um um primo distante em seu centro. Esta história ocorrreu quando eu era ainda menino, mas tem um outra história, com o mesmo tema, ou enredo, que li recentemente em algum livro.

Relembrar a história que se passou em minnha infância era fácil, bastava querer. Agora lembrar em qual livro eu havia lido uma história semelhante era mais dificil. Em qual livro? E eu passava, as vezes, manhãs, folheando em minha mente, livros e mais livros para descobrir em qual eu havia lido. Inventei uma brincadeira que era a de ir eliminando os livros que, com certeza, não foram neles que havia encontrado a história de pastores e ovelhas.

História de ovelhas e pastores?

“Será que foi em algum livro do Thomas Mann? Creio que não. Como a história que li ocorreu quando Roma era um império e dominava a Europa devo ter lido no Declíno e Queda do Império Romano de Edward Gibon. Será? Mas pode ser também que tenha lido no História da Vida Privada...sei lá”; o que sei é que passava partes da manhãs, ou das tardes, tentando, como um detetive, descobrir em que livro eu havia lido esta história.

Vou então aproveitar e contar a história que eu , de certa forma, presenciei.

Era uma tarde, quase noite quando chegou no sítio onde morávamos o Seu Chico Marangoni. Apeou de seu cavalo alazão, comprimentou o pai, a mãe, abençoou um meu irmão, seu afilhado, jantou conosco e logo depois, como era hora da Ave Maria, juntou-se a nós em volta do rádio de pilha e concentrado ouviu a Hora da Ave Maria na voz de Júlio Louzada, com direito, ao final, da Ave Maria de Gounod.

Logo depois da Ave Maria os mais velhos foram para a sala e os pequenos , com um simples olhar, mandados a dormir.

No ar, alguma novidade.

Não era tempo de visitas e o que viera fazer já ao fim do dia aqui em casa o Seu Chico e seu enorme bigode branco, que escondia, em parte, uma enorme verruga marrom escura na parte superior dos lábios e que o velho suavemente acariciava enquanto fumava seu cigarro de palha.

- “ E então compadre , que boas novas trouxe o senhor aqui em casa?”, pergunta o pai.

- “Assunto meio difícil de falar, compadre. Vamos esperar comadre ir para cama, melhor não ter mulher por perto.”, responde, com a voz grave de barítono, o visitante.

Minha cama, no quarto dos fundos, junto a meus irmãos foi oferecida ao visitante. Eu dormiria junto a meus pais no quarto ao lado da sala onde os dois conversavam.

Prometi a mim mesmo lutar contra o sono , não dormir e ouvir quieto, quieto, fingindo dormir, o assunto sério que nem mesmo minha mãe deveria ouvir para, glorioso, no dia seguinte acordar conhecedor da novidade contada em segredo a meu pai. E assim fiquei como uma estátua na cama, deitado no colchão de palha que denunciava qualquer movimento. Meu pai e Seu Chico assuntavam no prelúdio do principal falando de vacas, da colheita de café, da seca brava, do preço do arroz...

O sono forte cerrava, as vezes, meus olhos e eu acordava sobressaltado, medroso de ter perdido o assunto.

- “ Vamos ao assunto, compadre Chico. Podemos?”

- “Vamos sim. E o que ocorreu foi que Luizinho matou, juntamente com Roberto, um filhotinho de ovelha. E sabe porque, compadre? Imaginavam, os dois, que o filhote poderia ser filho de um deles ou dos dois: os mugidos do pequeno filhote, ao nascer, como depois me contou Roberto era por demais parecido com choro de nenê. “Chorava igual de criança humana, pai, e resolvemos que, por medo e vergonha do mal feito o melhor era mesmo matar o filhotinho. Madrugada, ainda escuro, carregamos o filhote até o córrrego e lá o matamos; depois de bem morto amarramos pedras em seu pescoço e jogamos no poço da curva da onça. Foi assim”, que me contou Roberto quando dei falta pelo filhote da ovelha no curral.”

- “Virge Maria. Bom mesmo que Dira não esteja a escutar. E sabe compadre que o Luizinho voltou para casa nas férias e não me disse nada.”

Explicando melhor: Luís, meu irmão, para poder estudar, morava , durante as aulas, na casa do Seu Chico, onde tinha, por perto, uma escola municipal. Tinha, à época, seus doze ou treze anos e alguns ralos fios de bigode e a voz misturando graves e agudos anunciavam mudanças no corpo e na mente.

Dormi.

Acordei me sentindo o rei do mundo. Sabia o que nem mesmo minha mãe sabia.

No curral pai, Luizinho e o retireiro Biba lidavam com as vacas e seus bezerros enchendo os tambores com seu leite quente e espumante.

- “Encha esta minha caneca de leite, Luizinho. E rápídinho porque tenho fome.”, fui dizendo, todo autoridade, a meu irmão.

- “Faça o favor do que?”, repondeu Luizinho.

- “Favor nada. Estou mandando: encha de leite, e com bastante espuma, esta caneca, senão eu conto para todo mundo que você matou um filhote de ovelha do Seu Chico.”, reagi trepado na táboa do curral apontando a caneca.

- “ Mariquinha enredeira de merda! Conte para quem você quiser sua mariquinha. Não vou tirar leite para você e pronto.”

Pai vem em meu socorro, enche minha caneca de leite e manda eu de volta para a cozinha. Enquanto a mãe limpava meu bigode de espuma de leite, choro e conto a ela o segredo que havia escutado, mas ela já sabia. “Luizinho já reparou o mal que fez: não se fala mais nisso”.

Passei a manhã ensimesmado: não conseguia estabelecerrr uma relação entre choro do bebê, o berro do filhote da ovelha e seu assassinato e menos ainda, como todos sabiam de um segredo que só eu e o pai deveríamos saber.

Esta foi a história.

Chegando do Caminho de Santiago fui à luta para descobrir em que livro eu havia lido uma oura história com enredo parecido. Manhãs foram dedicadas a tão nobre e importante missão: livros no colo, café quente na xícara.

Não, decididamente, não foi em Montanha Mágica.

Busquei e folheei o Declinio e Queda do Imério romando e nada: não foi o Gibbon que escreveu a história que tinha, como já disse, ovelha e pastor como personagem. Pesquisei, folheando, a História da Vida Privada – do Império Romando ao Ano Mil e também não foi lá que li.

Onde então?

Lembrei-me de um livro que li há tempos chamado Férias Pagãs. Foi neste livro que descobri que o “carinho” educativo de senhores por jovens não foi privilégio dos velhos gregos e, sim, uma prática comum entre os romanos. Só pode ter sido lá que li. E como fazia bastante tempo que eu havia lido o Férias Pagãs tive que quase que relê-lo totalmente para descobrir que seu autor, Tony Perrotttet, não foi o quem contou a história que eu teimava em descobrir.

O agradável em tão importante missão de descoberta foi a prazeirosa releitura de livros até esquecidos e empoeirados na estantante. Descobria neles novos emaranhados mas não a história. Estava a desisitir: “Ser detetive não é o meu forte. Já sabia que se eu fosse médico, arquiteto e manobrista de carro eu passaria fome. Aagora mais uma profissão que me deixaria a ver navios: detetive”, pensava.

E foi por puro acaso que nesta desordenada e desorganizada busca dei com um Borges à minha frente.

Café quente nos lábios e, no colo, O Livro dos Seres Imaginários, mais específicamente o conto O Centauro :

“Na Ceia dos Sete Sábios, Plutarco conta com humor que um dos pastores de Periandro, déspota de Corinto, levara para ele numa sacola de couro uma criatura recém-nascida que uma égua havia dado o a luz e cujo rosto, pescoço e braços eram humanos e o resto equino. Chorava como uma criança, e todos acharam que era um presságio terrível. O sábio Tales olhou para ele, riu-se e disse a Periandro que realmente não poderia aprovar a conduta de seus pastores.”

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

O PÉ DE LIMÃO GALEGO

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“limão galego,

relô tá pego!”

Em outras histórias já devo ter contado de minha amizade com Gilsom.

De qualquer forma vou relembrar: conheci Gilson, na década 60, quando ambos, trabalhávamos como professores primários na região do Vale do Ribeira, em São Paulo.

Àquela época, hoje não sei, havia uma enorme carência de professores primários na Região do Vale e muitos de nós, saíamos de nossas cidades, à busca de trabalho durante o ano todo naquela região. E foi assim, então, que Gilsom e eu nos conhecemos e nos tornamos amigos; éramos paulistas, porém de diferentes regiões: eu do norte do estado e ele da região de Campinas.

Embora fosse apenas um ou dois anos mais velho que eu, Gilsom era mais maduro tanto intelectual quanto emocionalmente; lidava, e me ajudou muito nisso, de maneira inteligente e menos emocional com os revezes políticos trazidos pela ditadura militar implantada no país e que muito nos atormentava: acreditava que o sonho não havia sido destruído e que a luta apenas se iniciava: “a derrota realmente aconteceu nesta batalha, mas a guerra está em seu início.”, dizia.

Seu pai era diretor de Grupo Escolar, nome que era dado às escolas públicas responsáveis pela educação das crianças do primeiro ao quarto ano, em sua cidade natal e nos municiava, mensalmente, com livros e mais livros retirados por ele na Biblioteca Municipal daquela cidade. Atendia a pedidos nossos e também nos mandava, por conta própria, livros que julgava importante. E assim, em uma escola rural, meio a bananais e à margem do Ribeira de Iguape, li e reli, por iniciativa própria o velho Machado, Jorge Amado, Veríssimo, Raul Pompéia e por sugestão do pai de Gilsom , a quem conheci apenas por cartas, conheci Shopenhauer e Dostoiévski.

Mas o que mais importa aqui, nesta história é que Gilsom se dizia um “comunista biológico”; sim, a expressão “comunista biológico” é velha e no caso do Gilsom, o que ele queria dizer era que havia nascido e queria ter uma vida “comunista”. Era, então, ateu ou “materialista” como gostava de dizer, enquanto eu ainda lutava entre a crença em Deus e as possibilidades de um mundo mais justo, sem Ele, ou apesar Dele, como ironizava Gilsom.

Nos dias de comemoração dos Finados, em Registro, os membros da colônia japonesa local realizavam uma cerimónia sensível, muito bonita e, até hoje, inesquecível. Construíam , em suas casas, centenas de pequenos barquinhos de papel com os quais homenageariam seus mortos. Na noite da véspera de Finados em cada barquinho era colocada e acesa uma vela e os mesmos eram delicadamente conduzidos até a margem do Ribeira para, depois, sob circunspectos cantos e orações, serem suave e cuidadosamente empurrados para a correnteza onde eram deixados para, a partir dali, fossem guiados e levados pelos espíritos dos mortos homenageados ao sabor da fraca correnteza do rio Ribeira de Iguape.

Eram por volta de oito horas da noite e estávamos, Gilsom e eu , no alto da ponte do rio Ribeira, vendo os pequenos barcos iluminados descerem vagarosamente o rio. Do alto da ponte os maiúsculos barquinhos de papel se assemelhavam a pequenas estrelas caídas no rio e que, docemente, se deixavam flutuar no caudaloso Ribeira de Iguape.

Atentos percebíamos um ou outro barquinho que ia à deriva apagando sua luzinha nas águas escuras e barrentas do rio.

A noite estava escura. Nuvens negras, prenunciando fortes chuvas, impediam a passagem do brilho das estrelas do céu: ficavam apenas, rio abaixo, as estrelinhas navegando com suas luzinhas frágeis, coloridas, trêmulas.

Gilsom me disse:

- “Sabe que em julho passado, nas férias, passei frente à casa vazia de Dona Maria, mãe de um grande amigo meu, que havia morrido pouco antes e, por eu estar aqui em Registro, não pude ir ao seu enterro. Passei uma ou duas vezes frente à casa, agora totalmente vazia, e pensei em prestar-lhe uma homenagem. E foi aí que, frente a casa vazia, me dei conta que meu materialismo, minha descrença em outras vidas, minha certeza no FIM que a morte decretava, me impedia de render a homenagem que tanto queria; confesso que a visão da casa vazia à minha frente e a secura de minha alma me deixou triste, desprovido de amor, como que se tivesse ficado oco por dentro. Você com sua crença, com certeza, em uma situação desta, se sentiria melhor: rezaria e pronto.”

Pingos grossos de chuva caiam pesados sobre nossa cabeça e, juntos com o vento forte, iam, a cada segundo, colocando os barquinhos iluminados à deriva, apagando-os.

E a escuridão se deu.

Um ou dois anos mais tarde nos separamos. Saímos, ambos, da região de Registro à busca de novas oportunidades como professores primários, que aquela época, era o que queríamos ser.

Um aperto de mão sincero, o acordo de longas cartas mensais, o meu compromisso em conhecer pessoalmente seu pai...Foi o nosso adeus.

Na secretária eletrônica um recado de Gilsom: seu filho havia conseguido o número de meu telefone nestes sites modernos e no recado gravado queria saber se eu era eu, ou seja, se era eu que havia trabalhado como professor em Registro e se era mesmo eu o professor que jogava bola, e bem, e nadava, muito mal, no Ribeira.

Telefonei para o número indicado e deixei recado: sim eu sou eu, não jogo mais bola e deixei a profissão de professor para trás.

Dia seguinte recebo um telefonema seu.

Morava no interior, havia casado, ficado viúvo, continuou sua carreira de professor primário e havia se aposentado como diretor. A mesma voz grave, as palavras cuidadosamente soletradas, todos os “esses” e os ”erres” bem colocados, o mesmo cuidado com a língua, acentuados pelo sotaque caipira do interior do Estado.

Semana seguinte, em uma terça-feira, logo de manha, cheguei em sua casa.

Não o esperava gordo e ele tinha até uma barriguinha; ele não me esperava careca e eu poucos cabelos tinha.

Meia hora depois nos sentíamos os mesmos amigos de sempre.

Gilsom continuava, segundo ele, um comunista biológico.

- “E você? Agora velho, não pode mais ser de Juventude Católica nenhuma, não?” , referindo ao fato de eu pertencer, àquela época, aos movimentos da Igreja voltados pra os jovens. Explicando aos mais novos: naqueles tempos, a Igreja visando alcançar os jovens, liderava um importante movimento de agregação e luta. E conforme a condição do jovem o mesmo era incitado a participar do movimento com seus pares: assim tinha a JAC -Juventude Agrária Católica, a JEC que era dos estudantes, a JIC dos jovens independentes, a JOC dos operários, movimento ao qual eu participava e a JUC dos estudantes universitários. E Gilsom, brincando: “a que G você pertence agora? À GAC – dos geriatras aposentados católicos?”

E nos pusemos a rir.

- “Pertenço, agora, à GA: Geriatria Ateia; me livrei da Igreja e de Deus.”

- “Devagar com o andor: melhor Geriatria Agnóstica...dá para mudar. Ateia é muito definitiva”, disse rindo.

Fomos até a Biblioteca Municipal, que agora tinha o nome de seu pai. Deu gosto de ver: frente a praça principal da cidade, em uma bela casa pintada de rosa, assoalho de madeira brilhando, estantes repletas de livros, uma bibliotecária bonita e prestativa. Emocionei-me! Fui até a estante de Literatura Brasileira e revi os livros do querido Machado, a obra completa de Jorge Amado e Érico Veríssimo e também escritores mais novos: Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira e mesmo os mais recentes: João Ubaldo, Milton Hatoum, Raduan Nassar. Tudo tão manuseado, tão limpo, tão sem cheiro de mofo, tão sem de traças.

Voltamos para sua casa e ele me contou:

- “Veja o que aconteceu comigo, um comunista biológico, materialista e tudo mais.

Morreu, há alguns anos, o meu sogro, com quem eu tinha grande amizade; ele deixou em seu minúsculo quintal uma verdadeira floresta de plantas. Era assim o velho: não resistia em ver uma muda, ou uma semente que ia plantando, e plantando e colocando em seu quintal que tudo cabia: cabia a jabuticabeira enorme, frutificando abundantemente todos os anos, cabia um imponente pé de coco da bahia, que, segundo meu sogro, por falta e de salinidade no ar, nunca produziu um único coco, tinha uma ameixeira, também infértil, dois pés de acerola, duas mudas adolescentes de jaca, um pé de amora e um primoroso pé de limão galego. Este sim, frutífero, perfumado em sua florada e em seu tempo de frutas. Produzia limões com bastante caldo, casca fina, cheirosos, fortes.

E foi então que resolvi homenagear meu sogro e trazer para meu quintal o seu pé de limão galego.

Minha pouca experiência em jardinagem e o afeto que tinha pelo limoeiro fez com que eu tivesse alguns cuidados. Assim, pedi e tive o apoio e orientação de um amigo de meu filho, engenheiro agrônomo que se comprometeu a nos orientar em como arrancá-lo do quintal sem judiar, sem colocar em risco sua saúde, garantindo um transplante saudável, sem nenhum perigo. Indicou-me, para realizar a operação um jardineiro de confiança e, orientados pelo engenheiro, realizamos o processo de transplante. E, ouça o que quero te dizer: não é uma coisa simples, bruta, de chegar e furar um buraco e tirar a planta. Foi uma operação cuidadosa, repleta de cuidados, muito respeito e pequenos truques: fizemos, primeiramente, um buraco fundo em volta de todo o limoeiro e jogamos serragem até tampar o buraco feito, molhamos bem, umedecendo a serragem e somente passados dois dias desta operação, é que fomos, cheio de cuidados e de cordas, retirar a árvore de seu local de origem. E ela foi retirada por completo, com suas raízes protegidas pela serragem, embalada em sacos de aniagem para ser carregada, sem nenhum perigo, até o local onde foi plantada, que é logo ali embaixo no meu quintal.

E aqui também todo cuidado: um enorme buraco redondo, maior que uma cova havia sido previamente preparado para o pé de limão galego: e o fundo do buraco, sua nova casa, foi coberto com serragem, areia, húmus de minhoca, esterco de gado, terra fofa e argila expandida.

Um verdadeiro “ninho” esperava a muda.

E foi quando, o jardineiro eu estávamos a colocar a muda no seu novo lar que algo ocorreu e que é bem difícil contar direitinho. O que houve? Imagine só: foi ao mesmo tempo que , tanto o jardineiro quanto eu, fomos tomados por uma emoção muito forte, por uma sensação de infinita felicidade, e , inexplicavelmente, os dois - eu e o jardineiro - pensamos e expressamos a mesma coisa:

- “Como ele deve estar feliz lá no céu!” e lágrimas correram sobre nossas faces.

Era hora de voltar para casa e, ao despedir, lembrei-me de um versinho de Mário Quintana e o disse:

“Deus tirou o mundo do nada.

Não havia nada mesmo...

Nem Deus!”

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Joachim

 

DSC04271Era uma manhã de céu plenamente azul com o sol aquecendo as costas; olhei para o norte e avistei, bem lá longe, as montanhas cantábricas, descansando um pouco a mente de dias e dias - creio que foram uns cinco ou seis - caminhando pela “meseta”, onde predominou o retão. Na região da “meseta” só se enxergava a longa e infinita planície: para todo lado que você olhasse - seja para o norte, para o sul, para o leste ou para o oeste – o que se via era, até o horizonte a planície se encontrando com o céu: nenhuma montanha, nenhum morro, nem mesmo um pequeno bosque surgia à vista para oferecer um pouco mais de movimento á solidão dos páramos espanhóis.

E foi então naquela manhã que, ao enxergar, ao norte, as montanhas cantábricas e sentir o calor do sol às costas, o peso da mochila e a dor da bolha que havia se formado e que ardia no dedo minguinho do pé esquerdo deixaram de incomodar e me peguei, no Caminho de Santiago, cantando e cantando.

Assustei-me quando ouvi:

- “Que língua é esta em que está a cantar? Pergunto e já respondo um pouco: sei que é uma língua latina, mas não é espanhol e também não é português. Mas, antes, um bom dia e um bom caminho.”

- “Bom dia. Estou cantando em português...”, não terminei a frase e fui interrompido.

- “Português? Mas não o de Portugal, não é mesmo?”

E caminhei toda aquela manhã com o Joachim, da cidade de Hamburgo, sessenta e oito anos, alto como os alemães costumam ser, farta cabelereira branca sob o boné de abas largas e um enorme bigode, todo branco, retorcido em suas extremidades cobrindo os lábios superiores; me ative com atenção ao bonito rosto e percebi a pele alva, sem as manchas típicas de nossa idade, barbeada com esmero. Apenas as rugas denunciavam a idade em um rosto que revelava o dono: bem humorado, inteligente e um pouco desconfiado ou descrente dos mundos, dos homens, sei lá!

E ocorreu comigo uma situação estranha, irreal: enquanto parlamentava, olhava o rosto, as mãos e ouvia a voz metálica de Joachim senti, ou melhor, tive a certeza de que já o havia encontrado outras vezes, mas, onde?; já havia falado com ele e, mais que isso, uma sólida e forte amizade já havia ocorrido entre nós.

E, por conhecê-lo, adivinhava as respostas que daria às minhas perguntas, previa suas esquivas a outras perguntas; conhecia, de há muito tempo, aquela voz. Mas, de onde?

Aquela situação me fez lembrar um amigo que disse-me, certa vez, em uma mesa de bar – temos que relevar o fato de já havíamos bebido bastante - que em uma sua primeira e única viagem à Índia reconheceu lugares, sentiu cheiros, como se já tivesse por lá, antes, passado. E passou?

E agora, já velho, vivido, confesso que me sentia incomodado com a situação em que me encontrava e desconfortável em obter, sem que Joachim desconfiasse, informações para confirmar nossos encontros anteriores; sentia-me como um padre fazendo perguntas capciosas na busca de pecados escondidos. Desconfortável, admito, mas incontrolável a necessidade de reconhecer, de saber com quem eu falava.

E Joachim, tagarela, outra característica que confirmava minhas suspeitas, atende a minha pergunta:

- “Onde aprendi espanhol? Lendo, manuseando dicionários e ouvindo zarzuelas. Conhece zarzuela? Não? Oras, zarzuela é um gênero musical operístico espanhol, que infelizmente foi abafado pelo sucesso da ópera italiana ou francesa. Gosto muito. Já ouviu alguma? E não estranha, você, um alemão com o nome de Joachim?”

Entendi sua resposta como uma pista para eu entender o que estava a ocorrer e fui firme:

- “Bem, posso dizer que já conheci outro alemão chamado Joachim, o primo de Hans Castorp; o soldado Joachim a quem Hans foi visitar em Davos, onde o mesmo se tratava de uma doença pulmonar...”

Fui interrompido com uma gargalhada:

- “Sei, sei...Está é querendo me contar que leu a “Montanha Mágica, não? Um belo livro; também gostei muito. E já que você conhece o Joachim e o Hans Castorp eu te pergunto: conhece também o Adrian Leverkhün, do belíssimo Doutor Fausto, um outro filho da infinita família de Thomas Mann?”

Percebi claramente, àquela hora, que Joachim sabia de minhas intenções e que minha busca a tão irreal encontro não o incomodava; talvez estivesse, pensei, tão curioso quanto eu em confirmar que eu era eu.

E claro que sua pergunta, investigando meu conhecimento sobre Adrian Leverkhün, foi intencional, forçando-nos a falar de música e, com isso, fazer com que nossas preferências musicais viessem à tona. E seu entusiasmo por Schöemberg o denunciou. Tive, a partir dali, a confirmação das certezas anteriores; agora a certeza era absoluta: conhecia, e muito, Joachim.

Sempre fui, e principalmente na mocidade, fascinado pelos contos e filmes que narravam as visões que as pessoas tinham nos desertos áridos e sem vida: nos infinitos areais ensolarados, com insuportável calor e sede profunda surgiam as visões de lagos, de águas claras, de odaliscas dançando com o umbigo à vista, o véu cobrindo o rosto e deixando desnudas as lindas e morenas pernas torneadas sob coqueiros verdes e suas sombras. Oásis na secura da vida. Mas, e agora, Deus do céu, aqui, em pleno páramo espanhol, o que está ocorrendo? Será que aos sessenta e sete anos, vou ter minha crença na descrença em outras vidas, em outras almas, colocada a prova? Será que, como um antigo cristão, um Paulo ou um Agostinho, terei, agora, a fé em minha vida ateia e materialista colocada em dúvida?

Impossível.

Meu amigo Dirsom faleceu já há quatro anos, no Brasil, em São Paulo; certeza absoluta: fui ao velório e ao seu enterro no Cemitério dos Ingleses, em Pinheiros. Revi amigos comuns em sua missa de Sétimo Dia, celebrada por um pastor anglicano, seu amigo.

Como posso, então, reencontrá-lo aqui neste caminho de Santiago?

Joachim é Dirsom?

O mesmo bigode retorcido, a pele clara com pequeníssimas veias azuis desenhando figuras abstratas em seu rosto, o infinito entusiasmo por música, pelo estudo de línguas, sua eterna busca do belo?

Mas explicando melhor para não confundir aos que escutam esta história: conheci e me tornei amigo do Dirsom, há muito tempo atrás, ainda no início de minha vida profissional, coisa de mais de quarenta anos. À época, trabalhava em uma empresa estatal, e foi meu superior hierárquico quem falou-me do Dirsom, que conhecia e do qual tinha excelentes informações e lembranças e do interesse do mesmo em compor nossa equipe. Estava, Dirsom, voltando dos Estados Unidos, para onde tinha ido com a família, em exílio forçado pela ditadura militar que comandava o Brasil.

Entrevistei-o, falei dos projetos que alimentavam nosso trabalho e senti seu entusiasmo. Rimos muito, mais tarde, é claro, após a amizade tão construída, de sua necessidade de aproximar o papel aos olhos para ler, de sua miopia profunda e de sua quase cegueira que o impedia, como eu, de se deliciar dirigindo motocicletas por estradas e ruas.

E também, além de míope, era daltônico e vou contar um episódio que ocorreu em seu processo seletivo. Tínhamos na empresa, um psicólogo baixinho, moreno, seríssimo e profundo crente nos testes que aplicava aos candidatos a emprego. Mandou me chamar à sua sala onde estava com Dirsom e todo compenetrado:

- “Olha este rapaz, o Dirsom, é daltônico, veja”, falava ao mesmo tempo em que pedia a Dirsom que, com o dedo indicador, seguisse os números que havia em uma colorida prancheta de papelão. E, Dirsom, obediente á ordem do psicólogo e às cores da prancheta “desenhou” o número dois; e “somente” ele via naquele emaranhado de bolinhas coloridas da prancheta o número dois que ele fazia com o dedo indicador. Enfim, “o candidato é daltônico, o que é um complicador do ponto de vista...”

Interrompi o psicólogo:

- “Ótimo: ainda bem que ele não é candidato a condutor de trens e, mesmo que o fosse, não há semáforos na linha. Há outro ponto que julga importante para eu levar em consideração?”

Décadas depois deste episódio, do qual eu havia esquecido totalmente, o amigo o relembrou ao contá-lo ao maestro da orquestra que, por iniciativa de Dirsom, havia nos aproximado novamente para, juntos, desenvolver um trabalho que unia paixão pela música, uma certa experiência administrativa, fruto dos cabelos brancos do Dirsom e pela minha calvície, alguns poucos conhecimentos técnicos e uma alta dose de voluntarismo. Mas, o que importa, nesta história, foi o nosso reencontro neste trabalho; depois de mais de trinta anos a orquestra nos reaproximou fisicamente, reafirmou nossa antiga e sempre presente amizade em um prazeroso trabalho.

E mais surpresas ocorriam. Sabia de sua paixão pela música, mas não sabia que era um excelente pianista. E, soube dessa sua qualidade, não por ele, mas sim pelo “spalla” da orquestra: “Dirsom não se tornou músico profissional por absoluta falta de interesse”; e o inquieto amigo Dirsom, no momento, andava entusiasmadíssimo com o curso de violoncelo que andava a fazer.

Mas, mais surpresas! Em uma manhã, tomando café na sala da orquestra, sabendo do meu entusiasmo por Guimaraes Rosa perguntou-me a respeito do belíssimo e de certa forma inacabado conto “Meu tio o Iauaretê”. Estranhei a pergunta –Dirsom não se interessava por literatura brasileira - e obtive a resposta: teria que fazer a tradução do conto para o alemão. Estava terminando o curso de alemão no Instituto Goethe.

Prometi ajuda. Chego em casa e releio o conto.

Deus do céu, missão impossível: no conto são tantos os “n’t”, tantos os “pimenta, hã...Nhem? À-hã, é, tá escuro”, como traduzir isso para o alemão?, pensava. E, enquanto lia, mais duvidava: será que dá para traduzir “Tá bom, dei’stá. Pesei que mecê queria ser meu amigo...Hum. Hum-hum. É. Hum. Iá axi. Quero canivete não”, ou ainda “Muita pimenta, hã...Nhém? À-hã, é, tá escuro”, ou mesmo, mais simples, deve ser traduzir “cê pode ficá aqui”. E, claro, nos divertimos muito com o índio Iauaretê rosnando, bravo, em alemão. Além do alemão, que, com esta tradução eu tinha certeza Dirsom dominava como poucos, tinha o inglês, o latim e fiquei pasmo quando, no caderno mensal da programação da orquestra, vi seu nome assinando a tradução do francês de trechos de uma ópera que seria apresentada pela orquestra e uma belíssima soprano eslava.

E agora vem o Joachim me dizer que aprendeu espanhol ouvindo zarzuelas e manuseando dicionários? E o timbre de voz: igual.

Acordei!

Já fazia mais de dois meses que havia chegado em casa, depois de ter percorrido o Caninho de Santiago, e foi a primeira vez que sonhei com o Caminho depois de tê-lo realizado.

Foi um bom sonho!

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O SOLDADO JUGURTA

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“ A verdade histórica, para ele, não é o que aconteceu; é o que julgamos que aconteceu”; “in” Jorge Luis Borges, Pierre menard, autor do Quixote, Ficções, pag. 43.
“Até que enfim chegou um ouvido e uma mente para escutar o que eu quero contar”, alegra o velho contador de histórias com a chegada do amigo.
- “Conta.”, disse o amigo.
- “Vou contar a história de Jugurta, o soldado que queria ser rei.
E o velho começou a contar:
Jugurta, um celta, era um homem forte, alto, loiro, olhos infinitamente azuis e possuidor de uma coragem ímpar e um de inconfessável amor à guerra, à luta. Já tinha, aos dezesseis anos de idade, mais de um metro e noventa de altura, os peitos largos, os braços fortes e o corpo imberbe: pequenas penugens fantasiavam o futuro bigode e mesmo a na região pubiana os pentelhos teimavam em não nascer deixando mais visível e desprotegido o sexo. E foi graças a esta sua situação, digamos biológica, que sua fama começou a se estender por toda a região dos dácios.
Quando, ainda adolescente, Jugurta, obedecendo a tradição de sua tribo, saiu de sua aldeia para matar um não celta e trazer sua cabeça para apresentá-la aos anciões e guerreiros da sua tribo e com isso receber a tatuagem de guerreiro, Jugurta ficou sete dias e sete noites fora, apresentou-se apenas no oitavo dia ao entardecer, com sete cabeças cortadas, presas entre si pelos cabelos. Apresentou-as aos anciões e guerreiros de sua tribo, orou, massacrou-as para liberar suas almas e as levou para a floresta, oferecendo-as a Aracha, que sob a forma de gralhas, se alimentam da cabeça dos guerreiros mortos. Tatuado como guerreiro, ainda adolescente Jugurta, também pelo seu tamanho, força, coragem e amor à guerra foi recrutado para formar, junto aos homens de sua tribo, um destacamento guerreiro que planejava realizar incursões e saques ao acampamento dos invasores romanos.
E as repetidas e inusitadas vitórias nessas incursões, encheram os bárbaros celtas de orgulho, e fez com que, animadíssimos, estas incursões se tornassem cada vez mais frequentes e ao destacamento da tribo de Jugurta, liderados por Decébalo, juntaram-se desertores e assaltantes que a cada vitória e saque, se fortalecia frente a fragilidade encontrada nos acampamentos inimigos.
E Decébalo e seu exército guerreavam, saqueavam, faziam reféns, extorquiam.
Uma noite, após fácil vitória e total destruição de uma pequena cidade cercada por um alto muro de pedra, na região da Gália, Decébalo reuniu seus homens fortes para falar do futuro. Todos oraram a Badba, deusa da guerra em forma de corvo, para que continuasse a protegê-los e, agradecidos, ofereceram vinte e sete cabeças inimigas. E depois da cerimônia falou aos seus homens: o que pensava, e queria, disse era “reunir todas as tribos das montanhas, superar suas rusgas e, unidas, fortalecerem-se para uma luta permanente completa expulsão dos invasores.” E Decébalo, com a autoridade de guerreiro vencedor, continuou:“ vamos agora, dar uma trégua aos inimigos, e buscar os chefes de todas as nossas tribos e reuni-los para com a união buscar a vitória definitiva até que os altiplanos sejam acrescentados às montanhas tornando-se tudo, altiplano e montanhas, um novo reino, o reino dos celtas”.
Jugurta foi escalado para encontrar os chefes das tribos das montanhas, perto do mar e trazê-los para a grande reunião, que aconteceria no próximo solstício de inverno. E Jugurta montado em seu cavalo e tendo Sencha como companheiro, cavalgou durante mais de três meses pelas montanhas e pelas praias na busca de tribos celtas. E a todas que encontrou procurou o chefe , os anciões, orou e com Sencha, iniciou a composição de uma nova história do povo celta.
E o solstício de inverno chegou, com a noite mais longa do ano, o céu estrelado e a neve cobrindo as montanhas e as árvores. E naquela noite mais longa do ano, trinta e três chefes de trinta e três tribos celtas da Gália, pedindo a proteção de Badba, oraram, cada tribo oferecendo a trinta e três cabeças trazidas de inimigos de sua região. E aqueles chefes guerreiros palestraram, oraram e unidos por Badba, a deusa da guerra, se uniram.
Todos concordaram em que Decébalo se tornaria o rei do novo reino. E Decébalo, falando como rei, chamou Jugurta para o seu lado direito e disse:
- “Quando, vencedores formos, quando um só reino celta nascer, este ao meu lado, Jugurta , que a todos mostra sua beleza e coragem, será meu fiel praepositus.”
Um silêncio sepulcral seguiu-se à fala de Decébalo. Todos os chefes olhavam ao corpo imberbe de Jugurta. A lua, no céu claro, sem nuvens, iluminavam o corpo forte e Jugurta se assemelhava a Oenghus, deus da juventude.
E Decébalo, olhando lascivamente para Jugurta, exigiu sua aproximação e tocou-o nas nádegas.
Com um único golpe de sua espada Jugurta decepou o pescoço de Decébalo, tomou-a pelos cabelos e, ainda jorrando sangue, ofereceu-a a Aracha. Depois, massacrou-a para liberar a alma, e disse:
- “O rei serei eu. Cuidado, eu aviso: Aracha, a gralha que se alimenta da cabeça dos guerreiros está faminta, melhor alimentá-la com cabeças de inimigos. À luta.”
E chefiados por Jugurta, que, encantado com a possibilidade de uma guerra permanente, os celtas iniciaram, depois de sete dias de preces, orações e sacrifícios, ataques e incursões aos mais fortes acampamentos inimigos. E a todos venciam. E pilhavam, e decepavam cabeças, e cobravam pertences, ouros e alimentos pela liberdade e fuga dos inimigos. Dois outros solstícios de inverno foram comemorados.
E as incursões iniciadas nas montanhas cantábricas e altiplanos gálicos chegaram aos Alpes. Jugurta, ainda jovem, era querido e procurava ser justo. Dividia os saques entre as tribos, negociava com os comandantes inimigos e sonhava chegar ao reino dos romanos. Já nos Alpes, cercaram e saquearam um fortificado acampamento e cidade inimiga, Jugurta se deu conta que estava cercado de inimigos.
Reuniu seus chefes guerreiros e ordenou:
- “Vamos fugir todos. Vamos, antes, cortar nossos longos cabelos, pintar nossos corpos com tinta escura, até parecermos com os inimigos e vamos, cada um por si, acompanhados por Bardo e sua música, caminhar até a cidade onde mora o rei dos reis dos inimigos. Lá nos encontraremos para a grande batalha.
E todos fugiram. Bardo os acompanhava e com sua música enaltecia os feitos e a bravura dos celtas. E os bravos guerreiros se encontraram em Roma em um solstício de verão.
O sol ardia durante todo o longo dia! A noite demorava chegar. Quando chegou, protegidos pelos escombros de muralhas os guerreiros se reuniram. Jugurta falou:
- “Chegamos, finalmente, à casa do inimigo maior. Amanhã, ao longo de tão grande dia, assaltaremos o palácio e serei eu, Jugurta, tão belo como Oenghus, o rei de todos: dos amigos e dos inimigos. De Roma à Gália, dos Alpes ao mar Cantábrico: um único rei. À luta.”
A amanhecer o dia Jugurta e os seus bravos guerreiros estavam cercados. Centenas, milhares de soldados romanos, alguns a cavalo, outros a pé, acompanhados por enormes e negros cães Mastim, cercavam a muralha e os escombros onde os celtas se escondiam. Um emissário exigiu a presença de Jugurta ao Palácio, onde o soberano romano o aguardava. Os bravos guerreiros celtas queriam a luta; crentes que suas almas integrariam outros corpos, assim que liberadas do corpo, não temiam a morte. Jugurta, no entanto, preferiu ir ter com o soberano.
E no suntuoso palácio, frente ao trono, recebeu a ordem:
- “Ajoelha!”
E Jugurta ajoelhou-se.
E o soberano:
-“Agora, dispa-se!”
E Jugurta despiu-se.
-“Mata!”, ordenou o rei.
E o corpo nu de Jugurta, transportado por dois nobres, foi solenemente devolvido aos guerreiros celtas que o levou até o alto de uma montanha, onde teve sua cabeça cortada e esmigalhada para liberar sua alma e a ofereceram a Badba.
Duas gralhas surgiram na árvore alta e observaram a cabeça esmigalhada.
Os guerreiros voltaram para as suas montanhas.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA - 8–PAINEL DE MEMÓRIAS–2

 

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CAMINHANDO COM CHUVA!

Detesto caminhar com chuva; gosto, mesmo, é do sol ardendo, da sombra das árvores, dos banhos nas cachoeiras, nos rios ou nos córregos!

E já que todas as minhas peregrinações, aqui no Brasil, foram realizadas sob o signo do sol ardendo, com direito a banhos em cachoeiras, que resolvi, nesta caminhada pelo norte da Espanha, usar o mesmo estratagema e com tal segurança confiança que nem mesmo capa de chuva eu levei.

Vou contar.

Nas caminhadas realizadas pelo Caminho da Fé - que em seu trecho Águas da Prata – Campos de Jordão, fiz mais de uma vez – tenho sempre feito um acordo, ou um “trato” com o Padre Donizete para não chover. O trajeto original do Caminho da Fé - o nosso Caminho de Santiago tupiniquim - tem o início de seu percurso em Tambaú indo até Aparecida do Norte. Tambaú é uma pequena cidade situada ao norte do Estado de São Paulo e foi o palco na década 50 do século passado, de intensos e frequentes milagres do Padre Donizete. Dessa forma podemos dizer que o Padre Donizete e nossa Senhora da Aparecida são os “padroeiros” do belíssimo Caminho da Fé. Então é a ele - padre Donizete – a quem apelo e com quem faço um acordo: se ele ajudar e não chover durante a caminhada eu prometo uma coisa ou outra.

E esclareço que tenho cumprido a minha parte e o Padre Donizete a dele; em todas as caminhadas realizadas por aqui somente uma única vez choveu, e mesmo assim, muito muito pouco; e creio, mesmo, que o pobre coitado do Padre Donizete, ao atender o meu pedido de não chuva e os milhares e mais necessários pedidos de chuva, feito pelos lavradores da região, tem atendido aos dois: faz chover à noite. E nada melhor que caminhar sob o sol e saber que a terra está molhada, úmida, dando de beber as plantas, os rios, os córregos e as cachoeiras cheios, transbordando de tanta água.

Mas o Padre Donizete tem sido sempre muito exigente para definir o acordo. Explico: quando me proponho, por exemplo, rezar, toda noite, três ave-marias o padre não aceita e sempre exige mais: quer que eu reze um terço completo, ou que em um domingo eu vá à missa e confesse e comungue. Tem-se então um respeitoso processo de mercadejar entre o padre e este peregrino: explico ao padre que tenho que sair cedo o que me impede de ir à missa, que estou velho para caminhar com o sol muito ao alto e chegamos a um acordo: não vou à missa, mas rezo uns pares a mais de ave-marias, umas salve-rainhas e me comprometo a não ter maus pensamentos à noite. E não tem chovido durante minhas caminhadas: o bondoso e santo padre tem cumprido sua parte e, até mesmo, entendido pequenos deslizes e escorregões que, quase sempre, cometo às minhas promessas.

Por isso estranhei quando Santiago de Compostela aceitou, sem barganhar, minha primeira oferta que foi a de não ter maus pensamentos à noite em troca de não chover no Caminho. Santiago deve ser muito ocupado, pensei à época, face ao número de peregrinos no Caminho de Santiago ser infinitamente maior que o de peregrinos que caminham pelo Caminho da Fé, e a necessidade de atender a tantos peregrinos, falando diferentes idiomas, com pedidos os mais inusitados talvez faça com que a Santiago de Compostela não tenha muito tempo de mercadejar, aceitando logo a primeira oferta. Deve ser coisa, pensei, como a que ocorre em consultas com um medico particular e suas longas consultas, conversas, toques, estoque de perguntas, leitura dos exames, pesa e a tudo examina, do olho ao dedão do pé e a consulta em médicos de convênio: rápidas, pede-se logo um monte de exames e marca-se o retorno, para assim que os exames estiverem prontos, mas que está tudo bem, a saúde está boa, e até logo.

Mas o que importa aqui é que realmente estranhei quando Santiago aceitou, de imediato, meu compromisso de não ter maus pensamentos à noite em troca de caminhar sem chuvas.

Senti, mesmo, certo complexo de culpa pela facilidade que teria em cumprir minha parte no acordo, tendo em vista a minha idade, que, mesmo sem o peso de quilômetros e quilômetros de caminhada, tende a privilegiar o sono em relação aos maus pensamentos noturnos; e assim fui cumprindo, fielmente, minha parte no acordo.

Quanto a Santiago, diferente do Padre Donizete, o mesmo parecia não ocorrer. Já em Pamplona, no quarto dia de caminhada, a notícia corria solta entre os peregrinos: previsão de chuva e mais chuva nos dias seguintes.

E eu não tinha capa de chuva. Compro uma ou confio no trato feito com Santiago?

E caminhar com chuva no Caminho de Santiago, com a temperatura a três ou quatro graus, com longos trechos sem nenhuma possibilidade de proteção sob uma árvore ou uma casa, enchia meu coração de medo.

Mesmo assim resolvo: não compro uma capa, pois se o tão tupiniquim padre Donizete sempre cumpriu o acordo o mesmo, com certeza, ocorreria como o europeu Santiago. De minha parte, nenhum deslize no prometido!

E foi então, em uma manhã, creio que saindo de Puenta La Reina em direção a Estella que o céu cobriu-se de nuvens negras, ameaçadoras.

Certeza de chuva.

Em uma “tenda” procuro, com um atendente prestativo, informações de onde eu poderia comprar uma capa de chuva, e o atencioso e prestativo rapaz desembestou a falar:

- “ ?ddflakddf olkjfcefr? jejjj , dljdfd , industrial. Um momento!”

Explicando: o que está entendível na frase foi o que consegui compreender da apressada fala do atendente.

Que fazer? Pedi outro café duplo com leite e aguardar.

Pouco depois o rapaz aparece com um saco preto de plástico, destes de colocar lixo “industrial” – e ai entendi o sentido do industrial de sua fala – e gentilmente, com uma tesoura afiada faz um furo no fundo do saco onde colocaria minha cabeça, dois nas laterais, por onde passariam meus braços e assim, vestido de espantalho, caminhei sob fortes chuvas de Puenta de La Reina a Estella e de Estella a Los Arcos. E aquela capa de chuva improvisada me serviu por mais um ou dois dias de chuva forte. O percurso entre Los Arcos e Logroño foi realizado, felizmente, sob um céu azul e o sol brilhando no alto, aquecendo as costas durante toda a manhã. E, sob o sol, caminhei assobiando, cantando, feliz, esquecendo a falta de compromisso de Santiago para com o acordo feito.

Em Logroño, desconfiado, comprei, em uma loja do Serviço Municipal de Apoio ao Peregrino, uma capa de chuva verde com um enorme desenho da concha de vieira, símbolo do caminho, às costas.

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ESCARGOT E IÇÁS

A trilha, molhada pelas chuvas recorrentes, brilhavam, agora ao sol. E pequenos caramujos, sozinhos ou em pequenos bandos caminhavam devagar atravessado a trilha, deixando seu rastro luminoso feito de uma baba transparente. Bonitos e tinha que, muitas vezes, caminhar olhando para o chão para não pisotear os bichinhos com a bota barrenta e pesada.

- “Isso é escargot?”, perguntei ao Pablo, amigo e companheiro no caminho.

- “Sim, são escargots. Depois das chuvas saem e costumávamos caçá-los, prendê-los em uma gaiola vazada por uma semana, sem comida, para que ficassem totalmente limpos: depois era cozê-los e, claro, comê-los. Muito bom.”.

Nunca comi um escargot e não tenho vontade. Me causa certo mal estar pensar em comer a lesminha, parecendo um torresmo cozido, derretendo na boca.

- “Nojo?”

- “Sim, um pouco de nojo, devo confessar, coisa de falta de costume, pois já comi içá.”.

Era assim: também depois das chuvas, que ocorriam em outubro e novembro, se vigiava o céu para descobrir verdadeiras nuvens de içás e ira à caça.

Uma festa. Pai mandava e nós, ainda meninos, alegremente obedecíamos; nos juntávamos aos vizinhos, aos primos e, caçarola debaixo do braço, catávamos, sempre disputando quem enchia mais a caçarola de saúvas e sem dó, nem piedade, arrancávamos suas asas e depositávamos na caçarola. E elas caiam na caçarola feito uma bolinha de gude, ou uma jabuticaba marrom, só que com perninhas aflitas que não paravam de mexer, buscando a infrutífera fuga.

- “E vocês comiam?”.

Depois, em casa, tira-se as perninhas e lava. Em uma frigideira, coloca-se bastante gordura de porco, aquece, joga sal nas bolinhas e frita. Uns gostam de comer com farinha de mandioca, meu pai gostava de jogar pimenta malagueta em cima da fritada e comia enquanto bebia goles e goles de pinga. As mulheres, sem o costume de beber pinga, comiam com arroz.

Sabe que até o Drummond, sim o Carlos Drummond de Andrade, comeu? E escreveu uma inesquecível crónica falando das tanajuras. Em sua história Drummond conta de um amigo, menino como ele, que à noite, após alegre caçada e haver saboreado uma boa quantidade de içás sonhou que estava a escolher uma enorme içá para arrancar suas asinhas quando a mesma foi se avolumando, avolumando, tornando-se cada vez maior e ameaçava - não me lembro de mais se conseguiu ou não arrancar seus braços para jogá-lo em uma frigideira cheia de banha de porco fervendo, fritá-lo e fazer uma paçoca. Cruz credo!

E lembrei-me, naquele dia, vendo os escargots, dos popozinhos das tanajuras fritos na frigideira, estourando na boca sob a pressão dos dentes e da língua, soltando e esparramando na boca seus ovinhos, dos quais não me lembro de mais o sabor. Não sei se hoje, teria coragem de comer içás fritas, e muito menos de arrancar suas asinhas, e só para depois sonhar como o amigo do Drummond.

Melhor pão espanhol e queijo de cabra!

terça-feira, 23 de agosto de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA - 8–PAINEL DE MEMÓRIAS -1 -


O que vou contar é como se fosse um painel - não sei vai ficar bonito ou feio, embora gostasse de tê-lo alegre e vivo – de mosaicos coloridos, desiguais em suas formas, sem disciplina e método em sua seleção, agrupados displicentemente, um depois do outro, misturando cores, datas, pessoas, locais e sentimentos; o único elo que os une é serem, todos, frutos da memória da caminhada pelos nortes da Espanha.

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O SOL ÀS COSTAS:

Deram sábios os peregrinos que, há séculos, sem o guia “El Camino de Santiago em Tu Mochila”, muito menos sem GPS, provavelmente sem mesmo uma mochila às costas, mas seguramente com um pesado cajado às mãos, que os protegia dos animais e os ajudava a vencer as fortes subidas ou longas e pedregosas descidas. Durante o dia era o sol que os guiava; à noite, provavelmente eram a lua e as estrelas, estrelas agrupadas e formando, aqui no norte da Espanha, acima da linha do Equador, desenhos diferentes dos que costumo contemplar em minhas caminhadas pelo Caminho da Fé ou da Luz.

Peregrinar pelo Caminho de Santiago, partindo de St-Jean-Pied-de-Port em direção a Santiago de Compostela é uma viagem, em uma linha reta imaginária, de Leste parra Oeste. E foi assim, observando o sol, que os remotos e fervorosos peregrinos, sem mapas e guias desenharam, fundamentados na lei da Economia das Probabilidades, o Caminho de Santiago de Compostela; a fé a movê-los em suas aventuras e o Sol e suas sombras como guias orientadores.

Ao caminhar do Leste para o Oeste, de manhã você tem o Sol às suas costas e sua longa sombra projetada para o Leste; e se você caminha buscando a direção de sua cabeça, o valor e a importância das setas amarelas, que apontam aos peregrinos a direção a seguir rumo a Santiago, desenhadas em árvores, pedras e muros, perdem em parte sua função orientativa.

É o sol e a sua sombra que te guia e isso, no meu caso, ficava comprovado, quando às vezes, cansado, via uma seta amarela em uma árvore ou em uma pedra apontando para uma direção diferente daquela que o Sol me orientava: era então que, nervoso, tinha certeza que, ou havia algum obstáculo intransponível à frente - um rio, por exemplo -, ou estaria a dar uma volta desnecessária; e, quando se está cansado, creio já ter dito isso, qualquer quilômetro a mais faz diferença.

Mas, afirmo e retifico: ter o Sol aquecendo suas costas e sua sombra projetando a direção a seguir é reconfortante e nos leva a passeios e devaneios internos indescritivelmente prazerosos em sua primitividade.

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EM NOME DO PAI...

Você já mudou de casa?

Se sim, sabe das dificuldades de adaptação nos primeiros dias que seguem à mudança. Onde está a pasta de dente? E a luz do quarto, acende onde?

Agora imagine o que ocorre quando, a partir de certo momento, todas – eu digo todas – as suas coisas e pertences estão contidos em uma mochila. A escova de dente? Na mochila. Remédios de uso contínuo? Na mochila. Saco de dormir? Na mochila. E a cueca? Na mochila, oras, onde mais se poderia estar.

A mochila é a sua casa às costas.

Assim, principalmente nas primeiras manhãs, início da caminhada, com o organismo e o espírito ainda em processo de adaptação, a arrumação da mochila se torna um verdadeiro Deus nos acuda. Se arruma, se ajeita, e, ao final se vê que a fralda, usada como toalha, estava esquecida acima do beliche, e então, a mochila já fechada tinha que ser novamente aberta e, a qualquer custo, sem ordem nem cuidado se enfiava a fralda meio úmida sobre a camisa seca que seria a “muda” para a troca do dia.

E, quase sempre, com a mochila novamente fechada vinha a dúvida: “será que não esqueci alguma coisa?” Uma operação “kafkaniana” era iniciada: verificar, reverificar e conferir os bolsos; com a mochila já às costas virar o corpo e olhar para o beliche desfeito para ver se não havia esquecido alguma coisa, voltar ao banheiro onde havia escovado os dentes, voltar ao beliche para remover o travesseiro do lugar e checar, novamente, se não havia esquecido alguma coisa debaixo...

E era então um tempo que era gasto, muito ou pouco, não importa, e que passavam comigo dando volta e rodeando o beliche e a mochila, olhando estupidamente para os lados, para o alto e para baixo, se sentindo como um peru dando voltas em torno dele mesmo, abobalhado.

E o pior: muitas vezes, após ter andado um quilômetro ou dois era assombrado pela dúvida: será que peguei, mesmo, no banheiro e coloquei na mochila a “nécessaire” com a escova de dente, pasta e aparelho de barbear? Para eliminar a dúvida - torcendo para que não tivesse que voltar ao albergue a procura da nécessaire – e continuar a caminhada com o espírito em paz era parar, abrir a mochila e, aliviado, ver que a nécessaire com a escova e pasta de dente estava espremida abaixo do saco de dormir; espremida, mas estava lá, e é o que importa. Fechava-se a mochila, aproveitava e bebia um pouco d água, colocava novamente a mochila as costas e seguia o caminho.

Outra cuidado e preocupação eram com a, ou com o pochete – não sei se é masculino ou feminino esta palavra e prometo logo consultar o Houaiss e acertar a frase, isto se o corretor ortográfico, com ou sem minha permissão, não o fizer por mim - . Voltando ao assunto: era nesta pequena bolsa – seguramente pequena bolsa é feminino – que o passaporte, o "travelcheque", o cartão de crédito, a passagem de volta e uns trocados ficavam guardados; então, apesar da relativa segurança do caminho, diziam alguns peregrinos de que todo cuidado era pouco e por segurança, deveríamos ter a ou o pochete sempre presa ou preso à nossa barriga, mesmo a noite para dormir, o que não deixava de ser incômodo. Aprendi, na segunda ou terceira noite de caminhada, em Pamplona, com uma simpática italiana que o melhor para se guardar a pochete - enquanto não criar coragem de ir ao Houaiss ou o corretor automático de texto não de o ar da graça, vamos resolver , por nossa conta e risco que pochete é feminino, e fica assim: a pochete - à noite, na hora de dormir, era não deixá-la presa à cintura, como eu fazia, mas sim solta no fundo do saco de dormir. A pochete ficava aos seus pés, presa no saco com os eficientes zíperes que nos envelopavam dentro do saco, como uma múmia egípcia. E, verifiquei que era mesmo melhor: seguro e não incomodava o corpo durante o sono.

Outra coisa: e onde deixar os óculos quando se dorme no alto do beliche? Foi um holandês, com uma miopia de dar inveja ao Sartre, o autor da solução: guardava os óculos, junto com os chinelos, sob a cama debaixo: não havia perigo de ser pisoteado.

Na quarta ou quinta manhã, com o organismo e a alma já melhor adaptados, após a arrumação da mochila, buscava racionalmente imaginar que havia três coisas realmente importantes e com as quais eu deveria ter o máximo cuidado para não esquecer: meus óculos, a máquina fotográfica que levava a tiracolo e a pochete com os documentos e os dinheiros. E então, ao invés de ficar como um peru, dando voltas em torno de mim mesmo a procura de possíveis esquecimentos, colocava primeiramente a mochila às costas e checava com o apoio sensorial das mãos se os óculos estavam na testa, logo mais abaixo se a máquina estava pendurada no pescoço e mais abaixo ainda, acima do ventre, se a pochete estava presa na barriga.

E foi então que descobri que esta minha nova rotina de checagem havia sido confundida por peregrino japonês como uma persignação de minha parte: o pequeno e magro peregrino japonês imediatamente cerrou os olhos e, piedosamente, persignou-se.

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OS CORVOS

Neste Caminho de Santiago de Compostela ouve-se menos cantar de pássaros quando comparado com as caminhadas que realizei aqui no Brasil: tanto no Caminho da Fé, como no da Luz.

No entanto, me encantou no Caminho de Santiago ouvir, pela primeira vez em minha vida, o Cuco. Havia dias em que caminhava horas e horas com um Cuco, me acompanhando ao longe, emitindo seu cantarzinho de tantas memórias. Mas como memórias se foi a primeira vez que ouviu o Cuco? Verdade: mas tinha na casa de um tio meu, um relógio de parede com uma longa corrente de dar corda dependurado, e o mais importante: de uma janelinha, nas horas cheias, saia o passarinho, gracioso, cantando Cuco! Cuco! As duas horas saia e cantava por duas vezes e assim sucessivamente; o melhor eram as doze horas: o Cuquinho saia mostrando a carinha, olhinhos negros e cantava por doze vezes o melódico Cuco! Cuco! Cuco!

Quando ia a casa deste tio de tudo eu fazia – tratava dos porcos, debulhava milho, buscava água na mina – para, em troca, ter o privilégio e autorização de ser eu o que daria corda no pequeno e delicado relógio. Para tal tinha que subir em uma cadeira, alcançar à argolinha da corrente e puxá-la até o seu final. Cumprida a deliciosa obrigação ficava à espreita aguardando a saída do cuco para anunciar a hora.

Mudando de passarinho.

No Caminho de Santiago tem e vi muitos corvos e seu cantar agudo, misto de um oboé um pouco mais grave que o sonoro instrumento e uma flauta de taquara rachada.

Villadangos Del Páramo é uma pequena vila, com aproximadamente seiscentos habitantes, próxima a León. Foi lá em Villadangos que vi e ouvi um bando de “cuervos”, provavelmente, em processo de acasalamento; voavam curto, rasante em volta de enormes eucaliptos cantando ao todos ao mesmo tempo em uma sinfonia que me parecia deliciosamente sensual.

Me livrei da mochila, achei uma pedra para sentar e ao som da sinfonia dos corvos e fiquei a lanchar: tinha reservado para o lanche pão rústico e queijo de cabra. Enquanto comia me lembrei, pela segunda vez no Caminho, do Carlos Saura. Aos mais novos uma informação: Saura, um sensível, belo e premiado cineasta espanhol dos anos 80. Em outro momento do Caminho, havia rememorado um de seus filmes ao avistar, em meio a um local totalmente isolado, uma belíssima e simples embora suntuosa residência. Veio à memória um de seus filmes, com a sempre presente Geraldine Chaplin no papel principal e a vida transcorrendo em uma mansão isolada do mundo; em uma das cenas mais fortes o “dono” da casa acaricia de um lado da vidraça os seios da empregada que, do lado de fora limpava as vidraças. Penso que este filme foi o Ana e os Lobos; mas o pão rústico, o queijo de cabra e aquela sinfonia de corvos me lembrou de outro clássico de Saura: “Cria cuervos”, belíssimo.

A primeira vez que ouvi o cantar estridente de um corvo, foi também no cinema: um filme japonês, dos anos sessenta: “O corvo amarelo”, muito triste.

E mais uma recordação de Villadangos Del Páramo. Pedro Páramo é o título de um belíssimo conto romance do mexicano Juan Rulfo que li várias vezes e só agora, aos sessenta e tantos anos, quase setenta, aqui na Espanha é que vim saber que “páramo” é um planalto deserto; aliás, para os espanhóis, em sua maioria, é a região dos “tristes paramos”, embora para mim, em minhas lembranças estão mais para “solitários” páramos do que para “tristes”. Vejam que caminhar também é cultura e é o que sempre digo para justificar os gastos e os dias com minhas andanças!

Aliás, continuando, ma s sem nada a ver com Santiago de Compostela. Na década setenta eu havia resolvido reler Sagarana, Grandes Sertões, Primeiras Histórias entre outros livros do Guimarães Rosa. Na livraria da antiga rodoviária, indo para Ribeirão Preto, comprei o Tutaméia do mesmo autor, com o propósito de ler para amenizar as cinco ou seis horas de viagem. Foi o que aconteceu: a viagem passou rápida. Na hora do almoço, á em casa, papo vem, papo vai minha mãe diz: “e foi então que seu pai, o Juca, vendeu o sítio que foi de meu pai, seu avô, por uma tutaméia”. Àquela hora, há mais de quarenta anos, me surpreendeu a precisão do sinônimo para tutaméia; agora confirma minha tese: viajar e caminhar é cultura: foi melhor que buscar no Houaiss, com o qual ando em débito e é na verdade, uma desculpa para inventar novos caminhos!

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS - 7 - A FANTÁSTICA HISTÓRIA DE BOADICÉIA E CARÁTACO–III–FINAL: O SONHO

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Cebreiro, uma pequena e por demais de linda aldeia medieval, com seus vinte e nove habitantes - “o Orlando está mesmo velho, agora deu de esquecer-se de escrever os mil na frente dos números”, dirão os mais apressados e eu respondo “não, não me esqueci, não: são realmente vinte e nove habitantes e não vinte e nove mil” - fica em um dos pontos mais alto do Caminho: quase mil e trezentos metros. E esta pequena aldeia possui uma muitíssima bem conservada igreja construída no século nove: toda de pedra, o que lhe dá um aspecto de solidez, parecendo querer confirmar sua perenidade, elegante com suas portas em arco, sua torre majestosamente simples, seus sinos de bronze badalando a cada hora do dia. Aliás, outra memória inapagável do Caminho são os sinos das igrejas teimando em nos contar, com suas badaladas, as horas do dia ou da noite; e assim, como nos tempos em que ouvia as badaladas do sino da igreja matriz da pequena cidade onde nasci ou mesmo, ouvindo pelo rádio o "dém", "dém", "dém" dos sinos do Mosteiro de São Bento anunciando à hora certa, me peguei, várias vezes, neste Caminho de Santiago, contando com a ajuda dos dedos das mãos as badaladas dos sinos e conferindo, mentalmente, qual era a hora do dia ou da noite em que eu estava a viver.


Do Albergue Municipal de Cebreiro construído em estilo montanhês, um pouco fora da vila, grande e confortável com mais de cem camas, a vista é belíssima; se vê, abaixo, um “mar” de montanhas: sinuosas, verdes, negras, recortadas por estradas, aqui e ali pingam brancas construções isoladas apontando que há vida naquela imensidão de mundo. Toda esta bela visão, me disse um velho peregrino japonês, que fazia o caminho pela segunda vez, é, normalmente, coberta, por uma grossa, branca e densa neblina, o que não ocorria naquele dia, àquela hora, em que tudo se enxergava, se via longe, quase o infinito.


Cheguei a Cebreiro após haver caminhado por volta de trinta quilômetros, distância entre esta vila medieval e Villafranca De Bierzo onde havia pernoitado; o cansaço, ao chegar a Cebreiro, se explica tanto pelos trinta quilômetros caminhados, como pela diferença de altitude entre estes dois pontos percorridos: mais de oitocentos metros.


Resumindo para não cansar e encompridar desnecessariamente a história: cheguei cansado a Cebreiro.



No Albergue Público, um banho restaura, em parte, as forças e o “menu do peregrino”, a nove euros, na Mesón de Anton, completa a restauração e me enche de ânimo para passear pela vila, conhecer a igreja e uma casa, do século IX, meticulosamente restaurada e que funciona como um “museu” antropológico, forçando nossa imaginação até a vida que levavam há séculos e séculos atrás os seus habitantes; e devia ser uma vida de permanente luta: de um povo em busca contínua por alimentos, na labuta para manter crepitando a lenha no fogão para cozinhar seus caldos e se esquentar durante os longos invernos gelados, cheios de neve.



Depois do passeio pela vila, voltei ao albergue disposto a cumprir a obrigação de lavar minhas roupas, mas, e mais uma vez tem o “mas” nestas minhas andanças, a preguiça, talvez fruto do cansaço, me levou para a cama: dormi e sonhei.



Vou contar o sonho, que foi assim:



Encontrávamos, em meu sonho, Boadicéia, Carátaco, Kretzschamar com seu cachorro “Joselito” e eu sentados no chão, descansando sob a sombra de uma enorme uma enorme árvore; próximo a nós corria um caudaloso rio e ouvíamos deliciosamente concentrados, a Dança Ritual do Fogo, trecho primitivo e bárbaro do El Amor Brujo, de Manuel de Falla.



Percebi que mesmo durante tão concentrada audição, Joselito, por ser cachorro e por isso, talvez, não gostar de música, mostrava-se inquieto, e que em dados momentos não se continha em sua ansiedade e uivava, apontando com o focinho negro para as altas montanhas vermelhas, esburacadas em seus picos por cavernas imensas. E foi então que, inesperadamente, todos nós, ao mesmo tempo, pensamos a mesma coisa e fomos decididamente conduzidos até as cavernas pelo gordo Carátaco, com o cão Joselito à frente de todos.



Em meu sonho Boadicéia carregava seu enorme cajado, enfeitado com flores de todas as cores e tamanhos; Carátaco vestia suas roupas apertadas, a barriga querendo sair para fora, calçava sandálias de couro que deixavam à mostra seus dedos gordos e suas unhas compridas; o jovem suíço vestia-se como um típico peregrino: calças e jaqueta cinza da Solo, botas Salomon, e carregava, às costas, sua enorme mochila Deuter. Não lembro como eu me vestia, mas devia ser com uma das minhas duas “mudas” de roupa que usei para percorrer o Caminho.



E assim que chegamos às cavernas, parecidas com enormes bocas abertas no pico de uma enorme e gorda montanha vermelha, o dia se transformou em noite. E escureceu. Para nos aliviar da escuridão que parecia um breu, Boadicéia tirou de uma sacolinha de veludo, presa a sua cintura, toda bordada com lantejoulas, seis vaga-lumes, e ofereceu dois para cada um de nós. Tirou, depois, do fundo da mesma sacolinha de veludo bordada com lantejoulas, uma boa quantidade de lacraias e, com elas, fez um colar para o Joselito.



Para melhor entendimento do sonho que estou a contar vou precisar abrir parênteses e falar da diferença entre o que chamo de “lacraia” e o vaga-lume. Erradamente, agora eu sei, em minha infância chamávamos de “lacraia”, um besouro que é, na verdade, apenas outra espécie de vaga-lume. Explicando: caçávamos e brincávamos com dois tipos de vaga-lumes: um, o maiorzinho, que lembra mais um besouro compridinho e dispõe de dois “faróis” que permanecem sempre acesos à noite e outro, que chamávamos “lacraia”, mas vim, a saber, quando estudava no ginásio, que era também um vaga-lume; esta espécie, a “lacraia”, tem no abdome órgãos luminescentes que ficam a piscar. Tanto o vaga-lume com os dois faroizinhos na cabeça quanto o que ficava piscando na escuridão da noite, nós caçávamos balançando tições acesos e cantando: "vaga-lume tém tém seu pai t’áqui sua mãe também"; e assim enchíamos vidros com os vaga-lumes que tinham os faroizinhos na cabeça. Já “lacraia”, menor, que ficava piscando no escuro, e lembrava um marimbondo, pegávamos e esfregávamos com força o seu abdome em nossas camisas ou no peito e assim, escrevíamos nomes ou desenhávamos figuras que brilhavam à noite.



Os vaga-lumes maiores ficavam presos nos vidros por uns dias até que nossas mães, penalizadas com a sorte dos bichinhos, nos obrigavam a soltá-los no brejo, perto do cemitério; tinham, portanto, melhor sorte que as lacraias que eram espremidas e mortas para enfeitarmos nossos peitos ou nossas camisas com rabiscos que logo se apagavam a sua fosforescência. Fecham-se os parênteses.



E então, com a claridade dos vaga-lumes em nossas mãos e do pisca-pisca do colar de lacraias no pescoço de Joselito, fomos entrando na primeira caverna, guiados por Carátaco. Em fila indiana fomos nos enfiando caverna adentro e encontramos um enorme salão, com pé direito altíssimo, e que tinha em suas beiradas, junto às paredes da caverna, bancos de barro cobertos com almofadas de seda, convidando ao descanso. Joselito, agora, calmo, passeava pelo salão da caverna, tudo farejando, com seu colar de lacrais piscando, parecendo uma moderna árvore de natal. Kretzschamar sentou-se em uma beirada da sala e iniciou, ritualmente, a preparação um de seus cigarros que passou a fumar impregnando a sala com o cheiro amargo da fumaça de maconha, inebriando a todos.



A sala da caverna cheia de fumaça e com o pisca-pisca dos vaga-lumes no pescoço do Joselito me fazia lembrar os antigos inferninhos da Rua Aurora.



Kretzschamar passou seu cigarro para Boadicéia, tirou de dentro de sua mochila uma flauta doce e começou a tocar.



E ao som da melodia simples, primitiva, Boadicèia se pôs a fumar, a dançar e a cantar: - - “Meus avoengos se aventuraram do Reno até os sopés dos Pirineus; nem as tão altas e espinhosas montanhas os detiveram, e a Hispânia não resistiu à força e a coragem de nossos ancestrais germanos.” Dançava sensualmente, passos lentos, pronunciando cada palavra com os lábios abertos, dentes brancos à mostra, seios arfando no peito, obedecendo ao ritmo da melodia, pescoço erguido, olhar desafiador, convidando-nos à dança, à orgia.



Foi quando a melodia tão simples e primitiva da flauta do jovem suíço foi repentinamente substituída por outra melodia: esta pírrica, que com seu ritmo forte, inundou a caverna com sons de tambores e de tubas; Carátaco, contagiado pela música, levantou-se do banco e demonstrando uma agilidade incrível para corpo tão pesado e gordo iniciou uma dança estranha, bela, e cantou desafiando Boadicêia:



- “Vocês germânicos e mouros tomaram e devastaram nossa terras, nossas casas, nossas mulheres, nossas vidas; nem a oferenda de todo nosso ouro e de nosso sangue foram suficientes para a sua retirada; e nos escravizaram, a nós e aos nossos filhos e aos nossos reis; mas Deus, fez surgir Roldan e El Cid, que conduzidos por um exército de anjos, nos libertou”



E no meio do salão da caverna Carátaco e Boadicéia se uniam na estranha e sensual dança e foram, aos poucos e delicadamente, despindo de suas roupas, mostrando corpos tão diferentes em sua beleza: a esbelteza rígida do corpo de Boadicéia se misturando às gorduras das banhas do enorme corpo de Carátaco.



Boadicéia disse: “Carátaco: segundo um escritor português, quando a península se deslocou do continente e se transformou em uma enorme jangada de pedra, um grupo peregrinou por aqui, por perto dos Pirineus. E naquela longa viagem que empreenderam na jangada foi gerado uma criança, fruto do amor de um velho com uma jovem. E é o que quero, agora: um filho seu! E saiba que este seu filho não ficará os longos nove meses em meu ventre, mas sim e apenas os nove dias que faltam para eu caminhar até Santiago, onde a criança nascerá.”



E abraçou fortemente a Carátaco que correspondeu ao seu abraço. Respeitosamente todos os vaga-lumes fecharam os olhos de seus faróis e a sala ficou iluminada apenas pelos piscares das lacraias envoltas no pescoço de Joselito.



O som de amor emitido pelos amantes misturou-se à fumaça e ao silêncio da flauta doce, agora muda no colo do peregrino alemão.



E um silêncio sepulcral tomou conta da sala: tão silêncio que era possível ouvir as batidas de nossos corações e os seus pulsares misturados às nossas respirações ofegantes. Descansados ficamos a ouvir o silêncio e a enxergar o breu da escuridão até o momento em que os vaga-lumes foram abrindo novamente seus faróis e a luz, no início fraca, inundou toda a sala e me vi a cantar:



“Ai clariô ai ai clariô


Ai clariô ai ai clariô



Ai clariô ai ai clariô



Purriba do lajedo o luá chegô”.



E enquanto eu cantava e assobiava e dançava a canção do Elomar, a luz da lua invadia a caverna forçando a todos a cerrar os olhos, tamanha a imensidão de claridade; e os vaga-lumes e as lacraias, que gostam da escuridão, voaram para fora da caverna e voltaram a acender seus faróis e seus pisca-piscas lá fora, indicando o caminho que deveríamos percorrer depois, na volta para a cidade.



E então foi que acordei com a intensa luz do sol das sete horas da noite invadindo as janelas do albergue e incendiando os meus olhos com sua claridade e calor.



Acordei, esfreguei os olhos, espreguice-me e assim acabou-se a história e morreu a vitória.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS -7- A FANTÁSTICA HISTÓRIA DE BOADICÉIA E CARÁTACO -II- APRESENTAÇÃO DOS PERSONAGENS: CARÁTACO.

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Caminhamos juntos, Boadicéia e eu, por quase toda aquela manhã de catorze de maio.

Pouco falamos. Na maior parte da caminhada que fizemos juntos, o preenchimento do vazio do tempo foi concretizado com cada qual em seu mundo, observando flores, matinhos, riachos, ouvindo o canto agudo dos corvos, inventando, dentro de si, histórias fantásticas descomprometidas com a História e as verdades do mundo.

E foi ela que me contou de seu nome:

- “Boadicéia foi o nome de uma rainha britânica dos ícenos, região de Norfolk, que chefiou a revolta de seu povo contra os invasores romanos e suicidou ao saber-se derrotada. Desde os tempos imemoriais dos avôs de nossos tataravôs, ou mesmo antes deles, nossa família cultiva a tradição de dar este nome à primeira filha do casal; assim tenho primas e tias com este nome, que foi também o nome de minha avó paterna. Acredita-se, em nossa família, que ao homenagear a antiga rainha, dando seu nome á primeira filha, mantém-se a tradição guerreira de nosso povo, derrotado, mas heróico e renitente, desde muito antes, já em suas antigas batalhas contra os invasores romanos. Boadicéia, a rainha, que todos sabemos ter sido bela e justa, e de lá dos tempos de Antes de Cristo.”

E a partir daquele momento, quando tomei conhecimento de sua origem, o seu som - Boadicéia - passou a ter outra melodia, em perfeita sintonia com a graça dos movimentos daquele corpo que o carregava.

Também, em uma de minhas outras manias, associei o som de Boadicéia ao canto dos corvos que, naquela manhã, excitados pelo processo de acasalamento, enchiam o vazio do silêncio naquelas terras espanholas do Caminho.

E foi a luta de seus ascendentes, que passou a representar, para mim, a luta dos nativos e “bárbaros” contra os invasores que foi preenchendo o meu tempo e minha mente; e assim, vislumbrei lutas heróicas, surgiram lindas rainhas amazônicas em seus cavalos brancos ou pampas, suas lanças afiadas em defesa de seu povo. Foi toda uma manhã povoada de lutas e guerras heróicas ao lado de Boadicéia.

E aproveitei, em um momento de descanso das batalhas e lutas daquela manhã, para saber se ela conhecia a história de outro herói, o bravo Carátaco, um chefe guerreiro dos bretões, que por volta de 30 DC, conduziu seu povo na luta contra os romanos, e também, como Boadicéia, foi vencido, feito prisioneiro e levado para Roma onde, reconhecendo sua bravura, o imperador Cláudio poupou-lhe a vida.

- “Como não haveria de conhecer a história de Carátaco, que como a rainha Boadicéia, enfrentou os romanos que chamavam de “bárbaros” aos povos que dominavam e colonizavam.”

- “Pois Boadicéia saiba que conheci em Los Arcos, o senhor Pedro Carátaco, hoje um tranqüilo aposentado que aproveita seu tempo para fazer lindos cajados, mas que foi pastor de ovelhas em sua vida profissional e tem o nome Carátaco a designar o ramo de sua família.”

E Boadicéia pediu que eu contasse mais do Sr. Pedro e de seus belíssimos cajados.

E, enquanto caminhávamos, eu fui contando a ela.

De verdade, o que vou contar é uma mistura do que narrei a ela e do que, em voz alta ou baixa, não me lembro mais, contei a mim mesmo, ao perceber que, muitas vezes, enquanto eu contava o pensamento de Boadicéia não estava ali naquela história, mas em outros indecifráveis lugares. Contar coisas tem isso: é preciso perceber o que passa na mente de quem ouve a história e contar para você mesmo quando, no mundo de quem ouve, outras histórias estão a acontecer.

Mas foi mais ou menos isso que falei para ela e para mim, naquela manhã de catorze de maio:

Saí de Estella, ou Lizarra, em basco, e após ter caminhado por volta de vinte e dois quilômetros cheguei a Los Arcos, um povoado com pouco mais de mil habitantes.

Quando mais me aproximava da cidadezinha mais me impressionavam as montanhas vermelhas que, parecendo um muro, a cercavam, protegendo-a.

Tendo que percorrer a cidade à busca do Albergue Municipal percebi que naquelas montanhas vermelhas havia cavernas que, mais tarde o Senhor Pedro contou-me, foram habitações e refúgios dos mouros, nos tempos em que estes haviam invadido a Espanha e, principalmente servido de refúgio quando da luta que tiveram para evitar sua expulsão.

E o Senhor Pedro, como era? Estava me esquecendo de contar: o Senhor Pedro é um homem alto, gordo em mais de seu um metro e oitenta, barriga brigando com os botões da camisa e da jaqueta, parece que querendo fugir corpo abaixo. Tinha, apesar de mais de setenta anos - “nasci no ano de trinta e cinco, primeiro filho de um casal de camponeses na região de Segóvia, longe daqui” - a cabeça coberta por fartos cabelos negros, olhos amendoados maliciosos e sensuais, barba feita, mãos enormes, pernas longas, gordas, o peito largo, viril. Poucas rugas escondiam, em seu rosto, a idade que disse ter. Quando se aposentou, mudou-se para Los Arcos e passou a produzir cajados, que vendia aos peregrinos, por um preço bem “acima do mercado” se se pode usar palavras tão administrativas aqui nestas histórias. Mas são belíssimos os seus cajados: retos, boa madeira, e, o mais importante, recheados com poemas, dizeres, nomes das cidades do Caminho.

- “E por onde você iniciou seu caminho?”, perguntou-me o Senhor Pedro.

- “Por St. Jean Pied de Port, há mais ou menos uma semana.”, respondi.

- “Ah, por Santiago Pied de Port, na França?”, perguntou-me enquanto olhava seriamente para um grupo de peregrinos, observando, como me disse depois, a qualidade e a beleza de seus cajados. “Vejo se já vêm com estes cajados comprados na cidade, feitos em fábricas alemãs; estes dificilmente gostam e compram os meus”. “Mas, o senhor disse Santiago Pied de Port?”. “É a mesma coisa: Santiago, St. Jean, São Jaques, São Diego, São Diogo: o que vale é que os ossos do Santo estão lá em Santiago, isso para quem, como eu, acredita, claro”. “Mas, Senhor Pedro, me fale um pouco das cavernas nestas montanhas vermelhas, que como o senhor disse, eram habitadas pelos mouros. É isso mesmo?”. E o senhor Pedro contou-me que havia imensos corredores ligando as diferentes cavernas, que os mouros conheciam bem suas tortuosas e escuras ligações e lá viviam e sentiam-se protegidos dos espanhóis que resolveram expulsá-los para longe: “que voltassem para suas terras, que lá é o seu lugar, e nos deixassem aqui em paz.”

E um de seus parentes daqueles tempos lutou contra os mouros, participando bravamente com os espanhóis em sua guerra pela reconquista de suas terras. Este seu ancestral era forte, grande e, “imagino mais magro que eu, senão não poderia lutar contra os mouros, andar a cavalo segurando sua lança, sob armadura de ferro: deve ter sido magro, mas com certeza, grande e com os peitos largos. Este meu parente lutou e lutou a luta dos espanhóis que vinham em seus cavalos e armaduras das montanhas lá do alto, dos lados do oceano Cantábrico, e foram os reais vencedores, expulsando os mouros de suas terras.” E, continuou o Senhor Pedro a me contar, que aquele seu ancestral, por ter sido considerado um herói pela sua bravura nas batalhas, teve direito, finda a guerra, a uma jovem moura, de lindos olhos negros e longos cabelos lisos que chegavam aos ombros cobrindo os seios formosos e fartos. E, como prêmio ao herói vencedor, foi-lhe dado o direito de usar a jovem moura, dormir com ela algumas noites e, passadas duas semanas, assim que apontasse no céu a lua minguante, levá-la ao sacrifício da morte. Mas este meu parente fugiu a cavalo com sua bela moura e para despistar os antigos companheiros da perseguição que sabia que aconteceria, ao invés de seguir em direção ao norte, para as montanhas, foi para o sul e chegou a Segóvia. E lá, naquelas desérticas terras, nasceram os Carátacos, que se especializaram na arte de pastorear.

- “E sabe o porquê destes meus peitos grandes, que até parecem peitos de mulher?”, perguntou-me o Senhor Pedro, que continuou:

- “Foi praga dos perseguidores que inconformados por não conseguir prender e matar meu mais velho ancestral resolveram dar-lhe outra forma de castigo. E assim, em uma noite de agosto, reuniram-se sob a orientação dos sábios druidas, e conseguiram de Cuchulain, filho do deus Lug, que derrotou e engravidou Aiffé, uma mortal amazona, a promessa de que todos os homens nascidos daquele foragido tivesse quando adultos, peitos enormes como os do mouro Ferragut, que pesava mais de uma tonelada e tentou sufocar com seus peitos o cavaleiro Roldan, mas não conseguiu, foi derrotado, vencido com seus peitos enormes, caídos sobre a barriga.

“E conseguiram: todos os homens Carátacos, mas principalmente os primogênitos, têm peitos enormes, semelhantes aos de nossas mulheres.”

sexta-feira, 22 de julho de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS -7- A FANTÁSTICA HISTÓRIA DE BOADICÉIA E CARÁTACO - I- APRESENTAÇÃO DOS PERSONAGENS: BOADICÉIA.

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Quero contar um pouco a fantástica história de Boadicéia.


Estou a falar de uma mulher de seus quarenta e poucos anos, alta e magra, mas não aquelas magras esqueléticas tipo modelo; Boadicéia é magra, mas recheada de curvas e saliências, que diminuem um pouco a dureza da face e do olhar negro, desconfiado, desafiador. Seus longos cabelos grisalhos, soltos, lisos, pendentes, cobrem o pescoço delgado e emoldura a face com a boca bem feita, maçãs do rosto proeminentes, grandes olhos negros, delicadas sobrancelhas grisalhas.


Uma linda mulher?


Sim e não.


Mas digo que é impossível não se sensibilizar com a beleza estranha de Boadicéia, com seu corpo escultural, seu andar com passos delicados, corpo sempre ereto e o balançar ritmado dos quadris largos, sustentado por longas e bem torneadas pernas. Há, no entando, em momentos indefinidos, que uma expressão dura e máscula, traveste toda a beleza do corpo e do rosto severo, embora, extremamente delicado quando olhado com atenção maior.


A primeira vez que a vi foi, salvo engano, em Hontanas.


Havia saído ainda madrugada, dia escuro, de Burgos, e andado por volta de trinta quilômetros até Hontanas, passando antes por Hornillos Del Camino. Cheguei a Hontanas por volta das duas horas da tarde: um pequeno povoado medieval, com menos de cem habitantes e que vive, do ponto de vista econômico, em função do Caminho de Santiago e seus peregrinos.


Aproveito para abrir um longo parêntese. Uma de minhas principais motivações em fazer o Caminho de Santiago era a de conhecer e pernoitar em povoados medievais. Me fascinava, enquanto planejava a viagem ao Caminho, ou mesmo, quando cansado de caminhar nas dunas para fortalecer os músculos das pernas, eu vislumbrava a possibilidade de conhecer, conversar com os moradores, fazer as refeições e dormir nos pequenos povoados medievais que, até então, só conhecia através do soberano guia “El Ca mino de Santiago em Tu Mochila”. Pois Hontanas, em seu silêncio, no escuro de suas casas feitas de pedras, em suas ruas tortuosamente planejadas e em sua pequena igreja foi a concretização de tão sonhado desejo. Me alojei no albergue Municipal me preparando para realizar mais uma de minhas manias: penso que só realmente conheço um lugar se nele pernoito: foi assim com as belíssimas Ouro Preto, Tiradentes e Diamantina. Acordar durante a noite e, na cama ou na rua, ouvir o silêncio, ver estrelas e a lua, ouvir pequenos estalos no telhado, ver ou ouvir os gatos miando a procura de amantes, os latidos dos cachorros defendendo suas propriedades, aquecem meu coração; enfim: acho que só conheço um lugar depois de nele dormir. E não é coisa de velho: sempre fui assim. Fecham-se os parentes.


E em Hontanas, ao sair do albergue a procura de um “menu Del peregrino”, vi chegar Boadicéia. Na maioria dos albergues do caminho há um local especial para guarda dos cajados e para o recolhimento das botas, neste caso para evitar o odor das mesmas nos aposentos. Boadicéia, primeiro tirou suas botas, guardou-as para só depois colocar seu cajado no local apropriado: juntou, então, aos tantos cajados que haviam sido depositados na caixa, um galho de árvore de mais de dois metros; seu cajado tinha uma forquilha na ponta, na qual uma flor amarela, que lembra um pouco nosso hibisco, havia sido amarrada. E então seu cajado, alto e comprido, com a flor na ponta da forquilha, despontava orgulhoso na companhia dos outros tão ordinários, simples e industriais cajados.


Feito isso entrou no albergue sem olhar para os lados; passou por mim, que ainda estava observando-a na porta, e não me viu, claro. Dirigiu-se ao “hospitaleiro”, apresentou sua credencial, que foi carimbada, pagou a taxa e subiu para o alojamento.


Esqueci um pouco a fome e a busca até um local com oferta do “menu Del peregrino”, e, curioso demais para minha idade, fui à mesa da recepção e, no livro de registro, descobri seu nome e sua nacionalidade. Sei que o que fiz é feio e pouco recomendável: o correto é matar a curiosidade perguntando à própria pessoa o seu nome, sua nacionalidade, travando amizade, falando de você, do país de onde veio, de onde partiu nesta caminhada; é assim que é mais educado, e é o que se espera de um peregrino, mas não foi o que fiz.


Ao fim do dia tornei a vê-la e vi Boadicéia transformada.


Vestia-se como uma “hippie” dos anos setenta: bata indígena, saia longa de seda, sandália de couro e uma tiara na cabeça, segurando o cabelo repartido ao meio; e ali, naquele fundão de mundo, em pleno Caminho de Santiago, aquela figura tão hippie fez bem a minha imaginação, que voou para os festivais de Woodstock, para Jimi Hendrix, Joan Baez, Ravi Shankar, Janes Joplin e, como não podia deixar e ser, revivi as manhãs de domingo na feira hippie em nossa Praça da República.


Acordei de madrugada, como sempre, e me preparei para seguir o Caminho.


Uma hora ou mais, depois de minha saída, de Hontanas rumo a Castrojeriz, uma agradável surpresa: alcancei Boadicéia que estava a colher flores na beirada do caminho para fazer, com elas, um desenho no centro da trilha.


Cumprimentei-a e fui cordialmente convidado a colher flores para ajudá-la a completar a construção de seu desenho.


Colhi papoulas e lhe ofereci.


Boadicéia, então, terminou seu desenho: 14:05


Olhou o desenho, aprovou-o com um gesto e um sorriso e, estava tudo pronto, disse-me ela, para a primeira foto do dia.


Retirou sua pequena e antiga câmera fotográfica do bolso da mochila e fotografou o seu calendário florido. Era o seu truque para, repetindo a mesma cerimônia todas as manhãs de seu caminhar, suprir a deficiência de sua ultrapassada câmera, que tão velha, não tinha o calendário automático embutido.


- “Assim que clareia o dia, disse-me, colho flores, pequenas folhas que uso para anotar, no caminho, o dia que se inicia.”, ao mesmo tempo em olhava a tela de sua máquina para ver a foto do dia quatorze de maio.


Aprovou e me informou, emocionada, que mais tarde, em sua casa, em seu distante país, ao rever as fotos, saberia o dia em foram tiradas.




domingo, 17 de julho de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS –6– OS PEREGRINOS DO CAMINHO

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Já disse, ou penso ter dito, que se fosse possível reunir os peregrinos do Caminho de Santiago em um canto qualquer, teríamos uma cópia fiel da torre de Babel: são pessoas de todos os cantos deste mundão de Deus, de todas as idades, com todas as belezas e feiúras; alguns caminham só, outros acompanhados; há casais jovens, casais sessentões, enfim, de tudo se encontra naquele Caminho.



Comecei a observar estes diferentes tipos já no início da caminhada, em St. Jean Pied de Port, e agora, passado estes tempos, percebo que nos primeiros dez ou quinze dias de caminhada o humor está à flor da pele. A origem de tanto humor, penso, se deve ao imenso prazer que sinto ao caminhar, aliado ao fato de estar acompanhado de um grande amigo, de me encontrar em um país estranho, em um caminho belíssimo, comidas e paisagens nunca antes experimentadas, enfim, tudo novo, excitante.



De tudo se ria, e - aproveitando o fato de falarmos, Pablo e eu, uma língua incompreensível para a maioria -, a todos apelidávamos: e os dois simpáticos alemães se transformaram em “fiscais do Kaiser”; teve a “freira”, o “espanha gordito”, e o “kaiser” propriamente dito.



O “Kaiser” era um alemão alto, rosto vermelho e suado, barba por fazer e sempre que o via, me lembrava a propaganda de uma cerveja na qual jovens cansados estão para desistir da empreitada quando um deles anima o grupo -” tem cerveja nos esperando” - e todos afirmam os passos, marcham com os joelhos altos, com os cajados firmes em direção ao local onde se encontram as cervejas geladas. Pois o Kaiser deveria ter, ao que parece, sempre – de manhã ou à tarde – uma caixa de cervejas esperando por ele. Caminhava sempre com os passos firmes, joelhos altos, cajado riscando as pedras do caminho e assim se ouvia seus passos firmes e compassados de longe; logo, logo estava o Kaiser a nos passar e, sem alterar seu caminhar, com a voz gutural dos alemães nos desejava “Bom Caminho” e lá se ia o Kaiser. Nos albergues era quieto, quase sempre se isolava, não saia para as praças e bares para tomar um café ou beber, nem mesmo com seus compatriotas; assim que chegava, arrumava sua cama, se enfiava dentro do saco dormir, ligava seu radinho e, deitado, ficava a ouvir notícias de sua terra.



E os “fiscais do Kaiser”? Eram também alemães.



A Espanha cresceu muito nos últimos dez anos e vive agora, do ponto de vista econômico, momentos de dificuldades. E foi então que resolvemos que dois peregrinos quarentões, eram “fiscais do Kaiser”. Quando éramos por eles ultrapassados ou o contrário, brincávamos: estão no Caminho a trabalho, fiscalizando a correta, ou não, utilização dos recursos do Mercado Comum. Muitas vezes, então, os “fiscais” não pareciam contentes com uma placa de sinalização ou com buracos no caminho, e, por isso, telefonavam para Ângela Merkel denunciando os espanhóis que, espertamente, haviam utilizado os recursos oriundos do Mercado Comum destinados a tampar os buracos e melhorar a sinalização do Caminho, para outros fins menos nobres. Claro, então, que a Merkel ligava nervosa para o Rodriguez Zapatero cobrando providências urgentes e este, nervoso com as eleições que se aproximavam, prometia porque prometia urgência na averiguação dos fatos e nas providências que, com certeza, o governo espanhol tomaria... “Paguem o que nos devem”, diziam os “fiscais”. E assim horas e horas se passavam, quilômetros e quilômetros eram percorridos em uma alegria infantil demais para dois avôs; mas o que se há de fazer?



E tinha a “freira”.



Gorda, baixinha, cabelos negros curtos, devia ter seus cinqüenta e poucos anos, a nossa “freira” fugia do padrão dos “uniformizados” peregrinos. Explico: a maioria dos peregrinos, inclusive nós, vestia-se com calças, camisas e jaquetas que, pelo pouco peso e facilidade de secagem após serem lavadas, são extremamente adequadas para caminhadas longas. Assim o Caminho de Santiago se torna um verdadeiro desfile de Kechuas, Salomon, Solo, The North Face, Curtlo e claro, das excelentes mochilas Deuter. E na contramão deste desfile, lá se ia, com seu passo lento, mas firme e seguro, a nossa “freirinha” vestindo sua saia rodada, com estampa escandalosamente floral, e que, saindo por debaixo da blusa preta e indo até os tornozelos, eliminava qualquer possibilidade de imaginar ou adivinhar que tipo de corpo, de pernas, de nádegas, ela cobria; nada de botas Salomon: usava sapatos de couro e meias de algodão, comuns, que cobriam suas pernas até onde chegava a saia. Um crucifixo de prata pendia no peito acima da blusa branca e sob a jaqueta negra; no rosto redondo um ar de pura bondade, um sorriso ingênuo, em suas faces coradas pelo frio e pelo sol. Caminhava firme, com poucos descansos e nos albergues tão logo preparava e saboreava seu jantar, se recolhia para dormir. Era, assim como eu, uma das primeiras a sair dos albergues, antes mesmo do dia clarear, e assim, nosso hábito de madrugadores fez com que caminhássemos juntos, em absoluto silêncio, sem nenhuma troca de palavras, alguns percursos do caminho. Um tipo humano original, a "freira" em sua total desconsideração pela moda e pelos modismos; indiferente mesmo ao sentido de “pertencer” - e aos seus símbolos - e, ao contrário da maioria, em sua pequena mochila não havia sido grudada a bandeira de seu país, e nem mesmo a sempre presente concha de vieira teve o privilegio de ser amarrada e ficar balançando para cá e para lá.



E teve também o “espanha gordito” e seu fiel escudeiro, o Sr. José, este um pastor de cabras aposentado que se orgulhava de ter uns tios que migraram para os Estados Unidos , com o emprego no ofício de pastor de rebanhos garantido. O “gordito” é um espanhol baixinho, cabelos grisalhos, e foram seus quilos a mais que deu origem ao seu apelido; muito alegre e falador, cioso de sua cidadania o “gordito” estava sempre disposto a denunciar eventuais desmandos nos albergues municipais. Portador de um problema cardíaco, segundo ele, muito sério, carregava em sua mochila um vidrinho com o remédio salvador e, sempre que podia, ficava o gordo peregrino explicando a todos que providências teriam que tomar em caso de um desmaio seu, providências “imediatas, antes mesmo de chamar o serviço de saúde do Caminho”: enfiar sob sua língua seus dois comprimidos salvadores. Ouvi várias vezes, para diferentes peregrinos, sua explicação, e egoisticamente, reconheço, sempre pedia a Santiago que se fosse pra o "gordito" desmaiar que o fizesse em momentos em que tivesse ao seu lado mais corajosos “paramédicos” do que eu. E Santiago me atendeu: pelo menos até onde vi no caminho o "gordito", não houve desmaios. Seu fiel escudeiro, o pastor de cabras aposentado se preocupava e cuidava do amigo. Me disse preferir levantar mais tarde, andar menos, mas não o fazia para poder acompanhar o amigo. Para isso levantava pelo menos uma hora mais cedo para sua cerimônia de ajeitar a, com certeza, mais bem organizada e invejada mochila do caminho. Era, o Sr. José, o único entre os peregrinos a dormir com um típico pijama de flanela, daqueles listrados de calça e magas compridas, e que era minuciosamente esticado, dobrado, transformado em um pacotinho perfeito e colocado em sua mochila. Repito: sua mochila, tão organizada era motivo de inveja a todos nós outros, simples mortais peregrinos, que ao contrário do velho espanhol, simplesmente enfiávamos “goela abaixo” nossas roupas e pertences em nossas desorganizadas mochilas.



Mas, claro, tivemos muitos outros tipos observados. Mas não se preocupem: vou apenas citar nomes ou apelidos sem contar mais histórias! Ainda no início, na fase do bom humor teve o casal da Namíbia, sempre querendo chegar à frente no albergue para escolher melhores camas; teve a bela e escultural romena, que pedia para eu cantar em português, orgulhosa da origem latina de nossas línguas; teve o velho canadense que se dizia amigo de um famoso treinador de vôlei brasileiro; a coreana que com todos se comunicava em uma única língua que sabia falar: o coreano; teve o simpático casal de franceses que resolveu me “adotar”, e, enquanto bebiam vinho e eu café, falávamos de ópera e de música...



Já havia, até este momento aproximadamente uns trezentos ou pouco mais quilômetros, o humor já não estava mais tão à flor da pele e os tipos foram mudando: o japonês, de minha idade que fazia o caminho pela segunda vez; o jovem italiano que mora em Barcelona já há cinco anos e se mostrou apreciador e muito conhecedor de música popular brasileira e me contou a história dos motivos que levaram Almodóvar a convidar o Caetano para cantar, uma interpretação inesquecível, diga-se de passagem, em seu filme “Fale com ela”.



Mas chega um pouco de tipos... Cansa!