sexta-feira, 1 de julho de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS -4 - COMOÇÕES

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Uma amiga, curiosa, perguntou-me: “onde, no caminho, você sentiu o maior medo?”


Difícil saber. Medo, mesmo, de verdade, grandão, não tive. Medinhos menores, assim bem pequenos, tive alguns.


Uma vez, em uma ruela de um povoado medieval, vi-me cercado por vacas, garrotes e bezerros, todos brancos com manchas negras; e as vacas e garrotes vinham e vinham com seus passos lentos, ocupando toda a estreita ruazinha como se ela fosse só deles; caminhavam em direção contrária à minha e iam passando lerdamente, me observando, curiosas, com seus olhares negros e doces e balançando seus corpos pesados. Magro, me espremi no vão de uma porta e aguardei, sem medo agora, a passagem da boiada, que seguia obediente aos berros - HEEEHOOOO! - de um casal cinqüentão.


Nos caminhos da Fé e da Luz aqui no Brasil, passei, algumas vezes, medo de cachorro. Na Espanha, pelo menos na região do Caminho de Santiago, há pouquíssimos cachorros. E os que vi por lá, são cachorros do “primeiro mundo”, educadíssimos em suas coleiras, e em sua maioria, tal qual os cães do Jangada de Pedra, romance de Saramago, esqueceram de como é que se late. São, então, cães quietos, muito quietos: parece que nem mesmo abanam o rabo, tão ancestral e carinhoso costume de nossos cachorros tupiniquins.


Falando em cães: no início da caminhada, por uns dez dias, se não me engano, por várias vezes me encontrei com um suíço, moço de seus trinta e poucos anos, que fazia o Caminho acompanhado de seu cachorro. Pernoitava em uma pequena barraca, com lugar para seu cão e carregava às costas uma mochila enorme que além da barraca, tinha suas roupas, ração para o cachorro, muita cerveja e pão. Em seus descansos, ao lado do cão preto, bebia cerveja, fumava cigarros e outros que tais: falava pouco, embora educado e gentil. Me disse chamar-se Kretzschamar e tentou várias vezes, ensinar-me o nome de seu cão, mas creio que percebendo minhas limitações vocais e auditivas, o paciencioso suíço desistiu de me ensinar e eu feliz, de aprender; resolvi, então, chamar seu cão de “Joselito” em homenagem aos cães de José Saramago. Assim, quando encontrava Kretzschamar e seu cachorro de nome impronunciável, tal o enorme número de consoantes e tão poucas vogais, chamava seu cão pelo novo nome, e ao que parece “Joselito” gostou de seu apelido mais sonoro e demonstrou várias vezes seu apreço pelo novo nome, quando, em locais ermos, sob a sombra de uma árvore ou à beira de um riacho, ele, seu dono e eu parávamos para lanchar e descansar. Nestes momentos “Joselito” comia seus bocados de ração enfiado no meio das pernas do dono, eu, cá, comia minhas frutas, e Kretzschamar tomava cervejas, comia pão puro e de sobremesa enrolava e fumava seus cigarros, por aqui tão proibidos; pois nestas horas, ao ser chamado de “Joselito” e acariciado no meio das orelhas, o nobre cão abanava, com a força de um ventilador, seu rabo negro e me olhava agradecido por ter-lhe batizado com um nome tão pronunciável pelas gentes da terra dos Saramagos e dos Guimarães.


Mas estou desviando por demais do assunto.


Além dos grandes medos a curiosa amiga queria saber das comoções.


Foram vários os momentos comoventes: alguns levando a lagrimas, outros, aos arrepios da pele, ao perder o fôlego, a quase lágrimas.


Vou tentar obedecer à cronologia da viagem.


O previsto, naquela sexta-feira santa, era sair de Nájera e dormir em Santo Domingo de La Calzada: um percurso de vinte e um ou vinte e dois quilômetros pelo Caminho tradicional. Mas..., tem sempre um “mas” em qualquer história, se se desvia do percurso original do Caminho, rumo a sudoeste, e andando, por isso, uns dez ou doze quilômetros a mais, passa por San Millán de Cogolla, onde se encontram os monastérios de Suso e Yuso.


Imperdível: não seriam oito ou dez quilômetros a mais, que me faria perder a oportunidade de conhecer os monastérios, considerados, pela UNESCO, Patrimônio da Humanidade. Então, desviei-me da rota principal na esperança de – naquela sexta-feira Santa – encontrar vazios os magníficos monastérios. E aqui vem outro mas...


Mas, como estava dizendo, havia caminhado uns seis ou sete quilômetros na nova rota quando em Lãs Canas, à esquerda da pequena estrada, uma monumental construção chamou-me a atenção: o belíssimo monastério Santa Maria de Canas.


Eram por volta de nove e trinta da manhã, e resolvi descansar e lanchar no jardim frente à porta do Monastério. Estava a tirar a mochila das costas quando um rapaz de seus vinte e poucos anos estaciona apressadamente seu carro, e surpreendentemente rápido entra Monastério adentro sem nem mesmo se dignar a um Bom Dia, ou a um simples Ola; mas, e continuam os “mas” desta história, tão rápido e surpreendente com havia entrado o jovem espanhol retorna ao jardim, mas agora calmo, em pressa, todo conversador:


- “Caminhante? Brasileiro, puxa vida, que bom? Qual sua idade? Saiu da rota do caminho para visitar o Suso? Pois saiba, senhor peregrino, que nosso Monastério é tão lindo quanto os monastérios de Suso e Yuso, não quer visitá-lo?”, e enquanto falava saboreava, com longas de fortes tragadas, um cigarro.


Para resumir havia o problema de horário: no Monastério de Santa Maria de Canas, o horário de visitas iniciava a partir das dez horas, havia a distância que teria que percorrer a mais, e eu fui fazendo contas: gasto um tanto de tempo aqui, mais tanto tempo na estrada até San Millan de Cogolla, mais a visita aos monastérios... será que dá? Perder a visita aos monastérios de Suso e Yuso, nem pensar.


A decisão de visitar o Monastério foi tomada em função da extrema delicadeza do rapaz e de seu supervisor, os quais, percebendo minha indecisão, me convidaram a entrar no Monastério antes do horário normal de visitas.


Gentis ajeitaram um lugar para guardar minha mochila e me vi entrando no belíssimo monastério mastigando um enorme pedaço de pão rústico com queijo de cabra: meu lanche daquela manhã.


A limpeza do monastério, a luminosidade penetrando pelos vitrais, o pé direito altíssimo, a simplicidade da construção românica, um belíssimo altar para a celebração das liturgias das monjas cistercienses, e, - penso que o que mais me tocou - um excelente serviço de som, inundava de canto chão todo o ambiente. A tudo isso a surpresa do inesperado Monastério, a simplicidade majestosa da construção com enormes pedras negras à mostra, o silêncio absurdamente grande vedando todo e qualquer som a não ser o coral com canto gregoriano, a gentileza do rapaz em favorecer minha entrada fora de hora, sei lá o que mais: mas sei que meu corpo e minha alma foram impregnados de uma sensação de felicidade extrema, de uma abertura para o belo, para a simplicidade que, quando dei por mim, lágrimas corriam em minha face.


O pão rústico com queijo de cabra ficou esquecido na mão; a fome era outra e o canto alimentava a alma.


Coisa de velho?


Pode ser: mas, inesquecível.


E agora, passado mais de trinta dias de tão inesperada e comovente visita tenho que contar: eu julgava que por ser sexta-feira santa encontraria os monastérios de Suso e Yuso vazios, só para mim, um velho peregrino. Ledo engano: estacionamento lotado com enormes ônibus de turismo, filas imensas para visitas, o barulho infernal de turistas reduziram a visita aos monastérios a simples fotos externas. Cheguei, cansado, já de noitinha em Santo Domingo de La Calzada.


Outra comoção?


Esta eu vou contar, mas sem a garantia de detalhes geográficos. Efetivamente não me lembro o dia e, claro então, a cidade onde ocorreu.


Chovia bastante e era por volta do meio dia quando alcancei o ponto mais alto de uma pequena montanha onde havia um monumento extremamente simples, de concreto, lembrando uma agulha apontada para os céus, cercado por um pequeno jardim de pedras. À beira do jardim, frente ao obelisco, uma peregrina, mulher alta e forte, sobre a qual terei, necessariamente, que contar outra história, de joelhos frente ao monumento: lágrimas, misturadas aos pingos da chuva que caia, desciam pelo belo rosto. Na placa de bronze, ao pé da agulha de concreto, a explicação: uma homenagem do município aos mais de trezentos fuzilados, naquele alto da montanha, pela polícia de Franco: assassinados por sua resistência e luta em defesa da democracia.


E a bela, alta e forte peregrina, com seu rosto de pedra, chorava e chorava.


Também chorei, claro.

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