quarta-feira, 6 de julho de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS–5–NAT KING COLE, DURANGO KID…

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No silêncio e na solidão dos caminhos uma boa coisa é cantar ou assobiar.

Tem dias em que se amanhece, sem saber por que, com uma música na cabeça que a todo momento a gente se vê assobiando ou cantando. Isso, às vezes, me satura e fico então procurando outros temas, outros autores, velhos sucessos.

Nestas minhas andanças, agora, pelo Caminho de Santiago, por várias vezes estive com a Asa Branca, do Luís Gonzaga, na cabeça. Como não sei a letra completa da canção canto alguns trechos, assobio outros, e brinco comigo mesmo de imitar o Caetano, em uma gravação bem antiga, quando ele faz uns “nhaum, inhaum, inhaum” aos finais das estrofes, plagiando os cegos tocadores de sanfona do nordeste.

Pois então: em uma manhã, estava eu todo feliz e distraído com a minha Asa Branca quando fui surpreendido por um senhor australiano, que assuntou:

- “Mas que bela melodia”.

Fiquei surpreso: tem peregrinos que surgem do nada e aquele australiano foi um deles. Me recompus para responder:

- “É uma canção muito antiga e popular em meu país.”

- “Muito bonita a melodia e do que fala a letra?”

- “Fala da seca em uma região do Brasil, da necessidade de migrar e do retorno ao local de origem quando volta a chover... Não resisti e tentei cantar, em uma tradução literal, a belíssima: “quando o verde dos seus olhos se espalhar na plantação... eu te asseguro.”

E a conversa continuou: música, pobreza, migrações.

Logo depois nos separamos por culpa nossos caminhares, muito diferentes: ele rápido e eu com meus passos lentos, lerdos, atento e distraído com pequenas bobagens - uma borboleta, uma flor – ou com besteiras maiores, mais imponentes – o gelo ainda preservado no alto de uma cadeia de montanhas, a visão negra de um povoado medieval visto do alto de uma montanha. É assim que sigo o meu caminhar.

Tem dias em que uma música que não gosto muito teima em me perseguir.

Busco uma solução: penso em um autor, Chico Buarque, por exemplo, lembro de uma música sua e me ponho a assobiar. Mesmo assim, tem vez que não dá certo. Nesta caminhada, por exemplo, tive, toda vez que usei esta estratégia, uma surpresa: iniciava a cantar ou assobiar a velha Banda e o meu canto ou meu assobio era, sem minha autorização racional, substituído pela Praça, do Carlos Imperial. Um parêntese:

aos que não sabem, ou mesmo, pela idade, não conhecem nem uma das duas músicas relembro: “A praça” surgiu depois do sucesso da Banda e foi ironicamente chamada, por nós, de “A banda dos pobres”.

Continuando a história: o que acontecia era o seguinte: eu iniciava a cantar “estava a toa na vida, o meu amor me chamou... e o velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou que ainda era moço...”, tão mais bonito, e quando dava por mim estava cantando “Eu hoje eu acordei-me com saudades de você...” Consciente do mau gosto, irritado comigo mesmo, parava de cantar a “praça”, me concentrava na voz de Nara Leão e continuava com a Banda: “e a moça feia apareceu na janela, pensando que a banda tocava prá ela...” e, outra vez, quando dava por mim estava a cantar: “a mesma praça, o mesmo banco, e o mesmo jardim, tudo é igual, mas estou triste...”. O único jeito de acabar com este conflito musical que ocorria dentro de mim era mudar radicalmente de assunto: e a “Truta” do Schubert, mostrava-se infalível nestas horas, até porque a região norte da Espanha é repleta de largos, pedregosos e caudalosos rios.

Mas vamos ao que interessa nesta história.

Além da briga da Banda com a Praça, outra briga que ocorreu nesta caminhada, foi entre uma música, cujo título não me recordo, mas que, na adolescência, e eu ouvia na voz afinadíssima e anazalada do Miltinho: “cara de gaiato, pinta de gaiato, roupa de gaiato, foi o que eu arranjei prá mim...” que, também, sem minha autorização, era substituída pelo: “A si pasam los dias; Y yo desesperado; Y tu, tu, tu, contestando; quizas, quizas, quizas” que em minha adolescência costumava ouvir na aveludada voz do Nat King Cole, em seu disco: “Nat King Cole canta em Espanhol”. Pelo menos, nesta briga, eu gostava das duas e não me irritava.

Estava, então, com meu castelhano capenga, cantarolando o “estás perdendo o tempo...”, quando me vi acompanhado, na segunda voz, por Diogo, um espanhol de minha idade, da região de Catalunha e com o qual havia feito amizade.

E cantamos: confesso que com Diogo funcionando como “spalla”: dava o tom, a altura, e afinadíssimo, contrapunha e cobria possíveis desafinados de minha parte.

E, felizes, após finalizarmos o “concerto” em duas vozes, a céu aberto, nos pusemos a falar:

- “Mas Diogo, que bom que você sabe esta música. Gosta dela?”

- “Muito, cantava sempre enquanto ouvia no rádio ou no toca-discos quando adolescente.”

- “Eu também. E, aqui na Espanha, quem é que cantava? Lá no Brasil...”, não terminei porque fui interrompido por Diogo:

- “Nat King Cole! E meu primo tinha o disco, à época um enorme long- play...”, e aí foi minha vez de interromper:

- “Não acredito... um LP de capa azul com a foto enorme do negro e sorridente Nat King Cole? Em casa, não tínhamos toca-discos e eu ia à casa de um amigo ouvir. E eu sempre pensei Diogo, que discos como o “Nat King Cole Canta em Espanhol” faziam sucesso apenas nos países da América Latina. Mas agora, vejo que não!”

E aí descobrimos que além de Nat King Cole havíamos à mesma época, nos encantando com a força da voz do mexicano Miguel Aceves Mejia: cantores fazendo sucesso junto a adolescentes espanhóis e tupiniquins.

- “E no cinema?”, perguntei curioso.

- “Os meus filmes preferidos eram os de “cowboy”: Durango Kid, Roy Rogers, Hopalang Cassid e tinha aquele bigodudo, de cabelos bancos compridos, meu Deus do céu, não consigo lembrar seu nome agora, que coisa! E os seus?”

- “Parecido... não gostava muito do Roy Rogers porque deixava de matar índios para beijar a mocinha e cantar... mas gostava demais do seu cavalo, o Trigger. Meus preferidos eram os filmes do Durango Kid.”

- “Eu, sempre que podia, ia toda semana ao cinema. Era bom demais”, disse Diogo.

-“ Eu também... E, penso que como vocês aqui na Espanha, batíamos os pés no assoalho do cinema e vaiávamos quando os nossos heróis se punham a beijar as mocinhas, a cantar...”

- “Aqui também a mesma coisa: o que queríamos era ver índios mortos.”

Gargalhávamos com nossas memórias e nos pusemos e a falar, desordenadamente, de como torcíamos no cinema enquanto o mocinho espancava ou, simplesmente, matava os bandidos ou os índios.

E nosso entusiasmo aumentava a cada comentário, que nos certificava da semelhança de nossas reações na Espanha e no Brasil; isso fazia com que nos atropelássemos a fala um do outro e outros peregrinos do Caminho de Santiago que passavam por nós não entendiam o entusiasmo de dois velhos falando ao mesmo tempo; e nós não estávamos apenas falando em voz alta, mas gesticulando, sonhando, absurdamente surpresos com tamanha coincidência no comportamento de jovens em tão distantes países.

E, neste louco entusiasmo, do que falamos?

Falamos de como eram os filmes, das tomadas de cena, de nossos delírios de maneira tão atabalhoada que e é impossível por ordem nestas falas, distinguir quem falava, o que cada um falava para mudar de parágrafo, colocar aspas para marcar os diálogos, enfim escrever conforme as velhas e respeitáveis regras.

Então vai assim. As tomadas de cenas nos antigos filmes americanos de “cow-boy” eram simples e usadas por diferentes diretores; no geral a tão desejada perseguição do bandido pelo mocinho era feita com a câmera posicionada em um local mais alto, o que possibilitava uma visão ampla que contemplava o mocinho, o bandido e pontos de referência para se calcular a distância entre um e outro na luta que empreendiam. A visão ampla era, em diferentes momentos, conforme a perseguição continuava, estrategicamente substituída ora por uma aproximação da câmera junto ao bandido e seu cavalo, mostrando sua face temerosa, seu rosto horrorizado, suas tentativas de olhar para trás a fim de calcular a que distância estava o mocinho, focava, às vezes, sua expressão de supremo esforço a exigir maior velocidade de seu cavalo, açoitando-o para isso, enquanto atirava, a esmo, para trás, visando ferir o mocinho; e a cada tiro que o bandido dava vaiávamos e aplaudíamos ao perceber que suas balas não atingido nosso herói; agora a câmera se deslocava e focava o sorridente mocinho - barba feita, dentes claros - e seu belo cavalo a todo galope que, sob nossos fortes apupos, abaixava a cabeça para escapar dos tiros e, vez ou outra, sacava seu revólver, sempre munido de infinitas e intermináveis balas, dava lá seus tiros, mas sem muito interesse em acertar.

O que iria mesmo ocorrer, e era o que queríamos, era a câmera mostrando a aproximação cada vez maior do mocinho, até o momento em que ele, de pé na sela saltava de seu cavalo sobre o bandido, derrubando-o e, no chão, aplicando-lhe uma tremenda surra. Eram nestes momentos que os cinemas, aqui e na Espanha, separados apenas pelo fuso horário, eram literalmente invadidos pelo pó levantados do chão pelo bater fortes nossos pés sobre o assoalho; ao pó acrescentávamos gritos, urros e assobios de aprovação e vaias para o bandido quando o mesmo, traiçoeiramente, tentava pegar, em um fundo falso da bota, uma faca para atirar em nosso herói; era então o momento em que o mocinho, alertado pelas nossas vaias e urros, pressentido o perigo, voltava-se para o bandido, sacava rapidamente seu revólver e com uma bala certeira tirava a faca de sua mão. Bandido desarmado, pois seu revólver já havia sido tomado, destruído ou estava no coldre do mocinho, ocorria mais uma seção de pancadaria: sob nossos delirantes aplausos, o mocinho aplicava a última surra no bandido, prenunciando o “The End”.

Os “The End” eram também previsíveis: depois da última surra, o mocinho ou punha o bandido, sem seu cavalo, a fugir ou gastava uma bala não para tirar a faca de sua mão, mas, apontada ao peito do inimigo, que caia morto com o sempre certeiro tiro.

Tanto eu quanto Diogo, o amigo espanhol, gostávamos mais quando o “The End” era precedido com o bandido a correr, fugindo a pé, sem seu cavalo por aquelas terras áridas, sob o sol forte, até quando, não se sabe.

Saíamos do cinema: os menores de calças curtas, invejosos dos maiores com suas calças compridas e mais invejosos ainda de um ou dois que, ricos, usavam as tão desejadas calças “rancheiras” LEE ou LEVIS. E, tanto aqui como na Espanha, os maiores iram para o “footing” no jardim frente ao cinema e os menores com suas calças curtas iam direto para casa, sonhando com o combinado para a manhã do dia seguinte: em vez de jogar futebol o encontro de toda a turma para brincar de “cow-boy”: matar índios, bandidos, fazer justiça.

Era assim: na Espanha e no Brasil.

The End.

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