terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

CÍCERO...

Meu nome de batismo é Cícero Émerson Antônio de Paula das Cruz. Quando tinha treze anos, no Cartório, trocaram o “das Cruz” por “da Cruz”. Nasci lá nos fundos do sertão do Maranhão e gostava muito de viver lá até virar rapazinho...
Foi nessa idade de rapaz, quase virando homem feito, que me enrabichei por demais com Dorvalina, uma prima que morava em casa, desde que perdera o pai, morto a tiro, por trás, de tocaia. Linda, morena, cabelos negros encaracolados, os seios pequenos, redondos, parecendo uma laranja lima ou uma cidra pequena. Sempre que dava, longe do olhar vigilante de minha mãe e de minhas irmãs mais velhas, nos encontrávamos e nos deliciávamos com carinhos longos e ternos afetos. Dorvalina prometia que seria minha, que comigo queria casar, ter filhos, viver a vida.
Por isso, então, eu pensava em sair daquele fundão de mundo e fazer a vida em São Paulo; sonhava em, junto com aquele grande amor, conhecer a cidade grande, ver luz elétrica e outros progressos; ouvir rádio sem pilha: bom demais!
Poderia trabalhar como ajudante de pedreiro, biscateiro... melhor mesmo era conseguir ser mecânico de automóveis; mas, se não desse, faria qualquer coisa: força e coragem eram o que não me faltava, apesar de, às vezes, Dorvalina rir e dizer que forte eu não era: isso tudo por causa de minha magreza muito grande. Meu pai e meus irmãos mais velhos, todos lá de casa, menos minha mãe, diziam que eu parecia uma “varinha de varrer estrela.” Também pudera: lá nos cafundós daquele sertão, nascer e crescer um homem com seus um metro e oitenta era coisa rara; quilos eu só tinha uns 60: era puro osso.
“Essa pele esticada no rosto e no peito é causa de uma grande queimadura.” Eu era danado de bom nas disputas de saltar fogueira, mas, num São João, errei o pulo e caí no meio das brasas e das labaredas: me tiraram de lá, jogaram água e me enrolaram em uma coberta. Fui curado sem remédios de farmácia: o que mãe usou foi emplastro de fubá de milho, clara de ovo, ervas, rezas e promessas. Desde então, fiquei assim, com a pele esticada no rosto e no peito para todo o sempre; tão esticada ficou a pele que barba não nasceu em mim; a pouca que tinha antes do fogo me queimar secou, sobrando só uns poucos fios no bigode.
Mas isso pouco importa.
O que importa mesmo em meu destino de vida foi quando, numa tarde, voltava do pasto onde tinha ido buscar um jumento bravo, aconteceu de eu ver o que nunca imaginava e nem queria: na matinha, pouco depois do curral das cabras, embaixo de uma moita de guabiroba, meu pai trepado em cima da Dorvalina, gemendo os dois de prazer, na maior das sem-vergonhice.
O mundo caiu em cima de mim.
Fui-me embora.
Nem tive coragem para pedir a bênção da mãe, de medo de ter que contar para ela o que tinha visto; e, também, “por mode esta desobediência, passei, desde então, a ter um ódio danado do pai.” O recurso foi pegar uma trouxa com as roupas e cair na estrada e na vida.
Jurei esquecer Dorvalina e nunca mais voltar por lá: vontade não tinha, de tanta tristeza do visto e acontecido.
Caminhei até Buriti Bravo, sede do município, e, de lá, peguei rabeira em um caminhão, com o trato de ajudar na carga e descarga; passagem não carecia pagar e, além disso, ganhava a comida.
Apreciava, na boléia, a mudança das marchas, ouvia o ronco diferente do motor e decidi virar mecânico, ou motorista. Tito, o dono do Scania, se tornou meu patrão. Menor de idade, mas com todos os documentos que eu trazia comigo, trabalhei de ajudante de caminhoneiro e, nesse ofício, fui conhecendo de tudo: mar, cidades, estradas e Estados tão diferentes: uns com calor muito grande e outros com frio que nunca imaginei que tivesse tanto.
E a vida ia passando.
Um dia, em mais uma viagem, paramos para almoçar em um posto grande e Tito, que tudo conhecia, já antes da comida, foi se engraçando com umas putas que faziam ponto por lá. Bebeu cerveja, ficou alegre por demais e trocava que trocava carinhos com uma morena alta e gorda. Então, resolveu que uma outra mulher, de cabelos amarelos de tingimento, fosse comigo para a cama.
- “Cuida do menino. É igual se fosse meu filho: bom rapaz, trabalhador, só que triste demais. Dê um pouco de alegria e sorriso para ele.”
E logo sumiu para um quartinho que tinha lá nos fundos do posto, dando gargalhadas e beliscando a bunda da moça, que, de contente, dava altas risadas.
A moça de cabelos tingidos de amarelo veio me acariciar. Foi daí notei que já fazia mais de ano que havia saído de casa, que já era de maior, e que, desde meu último encontro com Dorvalina, não tinha tido a menor vontade de mulher.
A moça de nome Ruti me levou para um quartinho e foi tirando toda a roupa: ficou pelada, pelada. Mas, vontade eu não tinha. Então ela foi me acariciando, me abraçando, me beijando, me apertando e sussurrando promessas; e foi aí que sem querer, não cumprindo o juramento feito, comecei a me lembrar de mim e Dorvalina em nossos encontros tão escondidos.
A moça tirou minha camisa e seus peitos roçavam os meus; eram brancos e grandes, tão diferentes dos de Dorvalina. Aquela recordação - dos lindos pequenos peitos morenos de Dorvalina - me encheu de uma tristeza tão grande que quando dei por mim estava chorando.
Ruti percebeu minha súbita mudança:
- “Você é veado?”
- “Não, é só falta de vontade. Me desculpe.”
Ruti, assim meio desapontada, começou a colocar de novo as roupas.
Pedi para que não contasse para o Tito o acontecido.
- “Não conto, mas, então, vou cobrar a trepada.”
Tito pagou.
Almoçamos e fomos embora. Na boléia do caminhão, Tito contava suas vantagens com a morena. Queria porque queria saber da minha trepada com a loira, de como ela era na cama, se era quente, o que fizemos, “quantas” demos e mais detalhes.
- “Gosto de falar disso não”, encerrei a conversa.
O fim dessa viagem foi em Cubatão, perto de Santos, onde entregamos a carga na Cosipa. Resolvi ficar por lá e, com a ajuda de Tito, arrumei emprego de ajudante de motoniveladora na EDMARO, uma companhia construtora que prestava serviços para a Cosipa.
Arrumei pensão e passei a morar em Piassaguera, com mais um mundão de operários, a maioria vindos, como eu, do Norte ou Nordeste.
Trabalhava e trabalhava. De beber não gostava, jogar não sabia e nem tinha vontade de aprender.
Minha vida era trabalhar, pensar e ensimesmar. E foi assim, me ensimesmando e pensando em minha vida antes do que tinha visto o acontecido entre pai e Dorvalina, relembrando a vida de meus irmãos mais velhos lá no sertão e da sede que eles tinham por mulheres e rememorando, mesmo, a vida dos animais lá do sertão, descobri que eu estava era doente. “Isso de não querer mais mulher só pode ser doença: tudo quanto é homem sadio tem essa precisão.”
Foi daí que passei a não gostar de pensar nisso e, para não pensar, trabalhava feito louco. Fui promovido de ajudante a operador de motoniveladora e minha habilidade como mecânico e no manejo da pesada máquina virou notícia.
Ganhava e guardava dinheiro: para quê, eu não sabia. Até poupança em banco eu fiz, com caderneta e tudo: dava orgulho disso, mas não tinha para quem contar.
A EDMARO pegou um grande serviço em São Paulo para trabalhar na construção do Metrô. O Dr. Jairo, dono da empresa, aumentou meu salário e me levou para a capital. Trabalhava perto da Catedral da Sé e morava na Pompéia, nos fundos de uma casa da empresa. Passei a trabalhar dia e noite: não tinha sábado, domingo e nem feriado.
Ganhava dinheiro e me esquecia da vida. Se eu gostava daquela vida? “Sei, não. Acho que nem gostava nem desgostava.”
Daí que, sem saber porque, um dia passei a me sentir mal: muita dor no corpo, falta de vontade de comer, febre e o pouco que conseguia comer vomitava. Mesmo ruim, continuei trabalhando e, no dia seguinte, depois de uma noite mal dormida e com febre, acabei desmaiando na cabine da máquina, quase causando acidente grave.
Acordei em um hospital, com um medo danado de morrer.
O médico moço aliviou meu medo:
- “É só uma pneumonia. Amanhã ou depois sai daqui, mas precisa continuar tomando os remédios em casa. Vamos te dar uns dias de folga do trabalho e você estará, logo, logo, sãozinho da silva. Não é nada grave para um baiano forte como você”
Aproveitei para fechar os olhos, com medo de mais perguntas; dormi e só acordei na escuridão da noite. Apesar da luzinha fraca da enfermaria, dava para ver os outros leitos e ouvir os gemidos de dor de um velho ao meu lado. A enfermeira veio, me viu acordado, perguntou se sentia dor; menti que sim.
Ganhei uma injeção e muito sono: tornei a dormir e só acordei na hora do almoço. Mais remédios e comida de hospital. O velho havia parado de gemer.
À tarde, voltou o médico que tornou a me examinar. Prometeu alta para o dia seguinte. Tornei a mentir: disse que gostaria de sair o quanto antes, para tomar, o mais depressa, um ônibus na Praça Clóvis e ir descansar e me curar na casa de uma irmã, em Piassagüera. O médico pediu que eu dormisse e prometeu que, caso houvesse alguma ambulância livre naquela noite, ele recomendaria que me levasse até a praça Clóvis, onde eu tomaria o ônibus.
Tornei a dormir a tarde toda e parte da noite. Acordei outra vez em plena escuridão e, mais uma vez, a bondosa e cordial enfermeira veio ver minha febre. Contei-lhe da promessa do Doutor e ela foi verificar. Voltou logo depois: “Sua pasta já está pronta. Tem a alta, a receita, o pedido de afastamento do trabalho e um vidro do remédio que você tem que continuar tomando. De madrugada, a pedido do Doutor, uma ambulância leva você até a praça Clóvis.”
Não consegui dormir mais.
Ainda estava bastante escuro e volta lá o meu novo anjo da guarda, a cordial enfermeira Eunice. Foi colocando, em uma sacolinha de plástico, de uma maneira tão cuidadosa, meus documentos, a receita, o vidro de remédio e o atestado solicitando afastamento do trabalho por cinco dias.
- “Acorde que logo a ambulância sai. Vá ao banheiro lavar o rosto e se prepare para ir embora. Não esqueça de tomar o remédio e boa sorte.”
Pouco depois, já estava na boleia da ambulância, ao lado de um motorista negro e gordo, o Reginaldo. A ambulância correndo macia pelas ruas, com a sirene ligada cortando o silêncio da madrugada e passando velozmente pelos faróis vermelhos. Eu temeroso e Reginaldo rindo a toa: “Tem perigo não. Estou nesta vida já há mais de trinta anos. De acidente, comigo, você não morre não.” Só se via seus dentes brancos no rosto brilhante e largo.
Chegamos na Praça da Sé. Havia soldados espalhados por toda a região. A praça, mesmo, estava toda cercada. “Hoje é a missa do operário comunista morto pela polícia; vai ter barulho por aqui hoje, pica a mula logo”, disse Reginaldo, ao me deixar na calçada. Saiu veloz, com a sirene ligada: nem tempo de agradecer tive.
Desci com minha sacolinha de plástico nas mãos. O fato de ter chegado em uma ambulância fez com que eu não fosse nem interrogado, nem importunado por nenhum dos soldados que a todos paravam e pediam documentos; “se pedissem para mim, eu tinha todos e até atestado do médico”, pensei e não tive medo.
Comecei, outra vez, a me sentir mal e vi que ia desmaiar. Na lateral da Catedral, havia uma porta junto à qual me sentei, com as costas apoiadas no batente; imediatamente, desmaiei ou dormi, ou os dois, até hoje não sei.
Foi aí que sonhei que estava levando um beliscão nas pernas. Acordei e o beliscão se repetiu: era uma moeda jogada em minha perna; confundido com mendigo, os passantes que se dirigiam para a missa me davam esmola.
Sobre as minhas pernas, notas e moedas: bastante.
O dia estava clareando. Fechei os olhos para ter tempo de pensar o que fazer com o dinheiro. Primeiro, tomei a decisão de colocá-lo aos pés da Virgem Maria; depois, resolvi que ficaria comigo mesmo.
Senti fome; levantei dali e fui a uma padaria em frente, do outro lado da calçada, passando entre o bando de soldados.
No balcão da padaria, enquanto aguardava minha vez para pedir o pingado e um pão com manteiga, fui abordado por dois homens agressivos e ameaçadores: “Aquele ponto na porta da igreja, onde você ficou, é nosso; você está pensando o que? Quer roubar de nós? Esse dinheiro aí, que você ganhou lá, também é nosso e pode ir passando prá cá.” O mais agressivo - alto, moreno com os olhos inchados de pinga - tentou tirar, na marra, o dinheiro de meu bolso, mas eu, apesar da fraqueza, reagi. Foi aí que, repentinamente, entra na padaria e me socorre um grupo de jovens barbudos: todos novos, tão bem vestidos que se pareciam com os filhos do Dr. Jairo. Os mendigos se afastaram para a calçada e fiquei lá com os rapazes. Tomei o pingado, comi o pão na chapa e os novos amigos passam a me chamar de “camarada” ou “companheiro”; tão logo descobriram meu nome, virei “camarada Cícero.” Eles só beberam café: não quiseram nem pingado nem pão na chapa.
Para mim, estava difícil entender: a cabeça meio zonza de tanta dor no corpo, de medo e de tanta coisa, muito depressa, acontecendo: “muita novidade, por demais”, pensava. Os rapazes me perguntam se eu, junto com eles, não gostaria de distribuir “santinhos” na praça e na porta da igreja. Os dois mendigos, “donos do ponto”, estavam ainda na calçada, frente à padaria, e vez por outra me olhavam.
Era a oportunidade de atravessar, livre dos dois mendigos, a praça da Sé e tomar ônibus ou para Pompéia, onde morava, ou até mesmo para Piassagüera. O que eu mais queria era fugir dali. Topei. Ganhei um pacote de “santinhos” e atravessei a praça, acompanhado de meus novos “companheiros”, que se dispersaram e, imediatamente, começaram a, meio escondidos, distribuir os papeizinhos.
Havia, mais próximo da entrada principal da Igreja, um grande aglomerado de policiais e pessoas: me dirigi para lá e comecei a distribuir os “santinhos”. As pessoas pareciam surpresas e os soldados começaram a me bater com o cassetete; queriam pegar minha sacolinha com os santinhos e meus documentos, mas eu protegia e não deixava: berrava alto que só estava entregando santinhos, nada demais, mostrava os papeizinhos e falava que era um sujeito de paz; eles, acredito, não entendiam e batiam mais, nas mãos, na cabeça e nos ombros.
Caí agarrado à minha sacola; os santinhos se esparramaram pelo chão e foram todos recolhidos pelos policiais.
Eu fui agarrado e levado para dentro da igreja, por dois rapazes, uma freira e um padre. A igreja estava lotada de gente para assistir à missa. Dom Agostinho, o padre que ajudou a me recolher, arrumou lugar para nós. A missa já havia começado e sentamos todos juntos. Logo, obedecendo ao ritual, todos ficaram de joelhos: imitei, mas fui, firmemente, demovido de minha intenção: “Você não está bom. Pode assistir à missa sentado”, falou Dom Agostinho ao meu ouvido. Gostei e fiquei ali quietinho, ouvindo a missa. Veio a hora do sermão e todos sentaram. Achava o sermão bonito: não entendia o que o padre dizia, mas as palavras e a melodia das frases eram belas e me pareciam doces. Sempre gostei muito de ouvir palavras: estava trabalhando no Metrô, quando, num dia, apareceu um grupo de visitantes que falavam em outra língua; pediram para eu parar a motoniveladora, por causa do barulho, me deixando livre para prestar atenção; achava a coisa mais linda aquelas conversas e penso que até entendi alguma, de tanto prestar atenção nos sons e na música das palavras. Se eu um dia fosse estudar, queria estudar as palavras: nada de corpo humano, geografia e histórias: queria entender as palavras, seus sons e suas melodias.
Dom Agostinho ouvia o sermão com os olhos semicerrados. Fiz o mesmo e dava para perceber que, de vez em quando, ele se emocionava e seu rosto branco e sem barba ficava todo vermelho. Aí voltava outra vez para o branco, até, de novo, avermelhar-se: fui me distraindo com as mudanças de cor do seu rosto e com a melodia das palavras do padre em seu púlpito.
Acabou o sermão e, logo depois, também, a missa. As pessoas foram saindo, calmamente. Fomos ficando e só sobramos nós, naquela igreja imensa e silenciosa.
Dom Agostinho resolve então que era hora de sairmos; resolveu, também, que eu estava fraco e que ficaria na casa onde moravam, para descansar um pouco. Saímos da igreja e vi, encostados na parede da padaria, os dois mendingos ameaçadores.
Aceitei o convite.
Nos dividimos em dois carros e fomos para o Pinheiros, onde moravam. No carro, dirigido por um homem alto e quieto, chamado Júlio, fomos em cinco: o Dom Agostinho, Odilon, a freira, chamada Irmã Dulce, e eu.
A casa onde moravam Dom Agostinho e seus companheiros era simples, com vários quartos e livros esparramados por todos os cantos. Apenas uma imagem da Virgem Maria enfeitava a sala: o resto eram sofás, camas, livros e revistas.
Odilon, percebendo meu sotaque, tenta adivinhar de onde eu era: “Pernambuco?”; “Não”; “Paraíba?”; “Tumém não.”; erra mais uma vez e explico, então, que era do Maranhão. Ele era de Pernambuco e estudava para ser padre, assim como os outros que ali moravam. “Somos todos estudantes que queremos ser ordenados padres; antes, porém, antes de fazermos o “voto” final, vivemos um ano junto ao povo, testando a fé que precisamos ter.” Assim, me contou que, além de estudar, visitavam fábricas, asilos, hospitais e “lutavam contra a opressão da ditadura.” Dom Agostinho, com a sua santa paciência, tentou me explicar o que era a opressão da ditadura; achei melhor dizer “agora sim, entendi.” Como gostava muito dos sons, achava as palavras bonitas: opressão, ditadura, democracia, imperialismo americano....
Júlio pediu para tirar fotos minha para mandar a uns jornais de fora do Brasil. Deixei. Almocei com eles e conversamos bastante; depois do almoço, a maioria foi descansar em suas camas.
Fui até a sala onde estava D. Agostino, sentado em um sofá, com uma tesoura e um monte de revistas. Recortava das revistas as mulheres de maiô, ou com roupas mais indecentes. “Por que?”, perguntei.
- “Sou, neste semestre, o censor. Recorto, das revistas que assinamos ou compramos, as fotos ou figuras que podem nos levar ao pecado da carne. No próximo semestre, o Odilon fará o que agora faço. Todos concordamos com esta censura.”
- “Não entendo...”
- “Simples, amigo Cícero. Todos nós já somos quase padres e fizemos o voto de castidade: isto significa que não podemos ter mulheres como vocês, os não padres.” Dom Agostinho continuou seu trabalho de recortar revistas, pegou o monte de páginas com as mulheres quase peladas e jogou em uma lata de lixo.
O bondoso padre havia se oferecido para ir comigo até o escritório da Edmaro, levar o atestado de afastamento. Quis saber se eu queria ir já. Fomos.
O escritório era no início da rua das Palmeiras. Tomamos um ônibus e paramos na praça Marechal Deodoro. Estava cansado e nos sentamos em um banco. Havia na praça um casal de idosos, tomando conta de dois netinhos, que brincavam na areia da praça. De repente, percebo que Dom Agostinho está chorando.
- “O que foi? Pelo amor de Deus, está com alguma coisa? Passa mal?”
- “Nada Cícero, estou bem”
- “Bem como? O senhor está chorando. Que foi?”
- “É de ver aquela família, Cícero...Tudo tão impossível para mim. Filhos, família, um passeio de mão dadas com a esposa. Sabe, Cícero, a vida que escolhi não é natural: vai contra as leis da natureza.”
Eu ouvia com atenção.
- “Mas, não me arrependo; acredito que fiz uma opção correta e que Jesus merece este sacrifício: é a Ele a quem eu ofereço minha vida.”
- “Muito difícil a vida sem mulheres, padre?”
- “Para você entender, veja só isso”: pegou minha mão e colocou sobre uma de suas pernas. Sob a batina, uma armação de ferro, da largura de uma ferradura.
- “Isto se chama cilício: quando ando, os músculos da perna se contraem, causando ferimento e dor.”
- “Credo em cruz.”
- “Mesmo assim, muitas vezes, caímos em tentação. É uma luta constante, amigo.”
Tamanha honestidade e sinceridade naquele homem me comoveram. Contei, sem nenhuma mentira, minha história. Dom Agostinho esqueceu suas lágrimas e me ouviu.
- “Volte lá e busque a Dorvalina, Cícero. Ou você gosta, também, do cilício? Seu cilício está na alma; diferente do meu, na carne.”
Ficamos em um silêncio grande e demorado.
Bondoso, me puxou pela mão:
- “Vamos ao escritório. É pertinho daqui.”
No escritório, estava Dona Alice. Estava mostrando o papel do internamento no hospital e do afastamento que o médico me dera, quando chega o Dr. Jairo. Alegre, bonachão, brinca comigo e com Dom Agostinho. Lê os papéis, pergunta como estou e o que quero.
- “Quero férias. Ando cansado.”
- “Pudera, trabalha feito um camelo: só pensa em dinheiro... Alice, acerte ai a vida do Cícero. Dê as férias, adiante o mês e, por minha conta, pague um salário a mais. O baiano merece.” Voltando para mim:
- “Cícero, te esperamos aqui para o mês. Descanse, homem.” E voltando para Dom Agostinho:
- “Veja se ao senhor ele obedece: lhe dê uns bons conselhos, seu padre; ou uns maus conselhos, porque o erro do moço aí é ser sério demais.” Deu aquela sua gargalhada escandalosa e, na frente do padre e minha, alisa a Dona Alice. Saímos.
Ofereci um guaraná ao amigo padre. Fomos a um bar e tomamos o refrigerante, quietos, calados. Nem um nem outro com coragem de puxar assunto.
Dom Agostinho, mais corajoso que eu:
- “E agora Cícero? Para onde vai?”
- “Pro Maranhão, ver Dorvalina.”
- “Vá com Deus, Cícero.”
- “Amém e obrigado, padre.”
Fui para a rodoviária. Foram sete dias de viagem até Buriti Bravo.
Chego lá em um fim de dia, quase anoitecendo, e encontro Miguel, meu irmão mais velho. Estava embriagado. Me abraça e começa a falar:
- “Mãe morreu. Pai se enrabichou com outra, a viúva do Fagundes, lembra? Aquela veia feia. Levou ela para casa e saí de lá. Muita tristeza. O Dito também saiu, mas ele se casou; se lembra da Rosinha do Seu Raimundo? Pois então, até filhos já têm os dois. Eu estou aqui, em Buriti: trabalho no que dá e no que aparece: dia sim, outro dia não; tá dando pro gasto e para as pingas: fome passo não. Vai ver o pai?”
Digo que sim e penso se, naquele estado em que estava Miguel, era bom eu perguntar de Dorvalina. Pergunto:
- “E Dorvalina, Miguel? Que que é dela?”
- “Virou puta. Faz ponto na zona de Colinas. Saiu de casa logo atrás de você. Brigou com o pai e com a mãe e sumiu. Já fui lá e vi a danada: toda cheia de batom, vestido de seda, muito chique e bonita a diaba: deixa todos os homens doidos, doidos.”
- “Vou pra roça ver o pai. Vamos junto?”
- “Vou não. Quero conversa com o pai, não.”
Saí dali. Caminhei, dormi num rancho no meio do caminho e, já na madrugada do dia seguinte, estava em casa do pai. Os cachorros me estranharam: já se fazia mais de três anos que não me viam.
- “Vinagre, cachorro da peste, quieto, sou eu, o Cícero. Não me conhece não, seu desgraçado ?”
Os latidos se tornaram uivos, o rabo abanava feito hélice de helicóptero e me lambia todo: de tão alegre, fazia xixi no chão e em minhas calças. Agachei e abracei o animal estimado.
Vejo um vulto perto. É o pai.
- “Benção, pai!”
- “Abençoe,meu filho. Que que faz aqui esta hora? Dormiu no mato?”
- “No rancho do seu Evaristo.”
- “Quer café?” e logo grita: “Maria, filha de uma peste: faz depressa um café que o Cícero tá aqui. Vamos lá que logo fica pronto, meu filho.”
Entramos pela casa tão conhecida: os cheiros, o ar, as cadeiras: tudo igual de quando eu saí. Chorei de saudades da mãe.
- “Chore não, Cícero. Tava sofrendo muito: dor no peito, não respirava. Tá com Deus.”
Tomamos café e o dia clareou.
- “Vou-me embora, pai.”
- “Uai, mas nem chegou. Não quer almoçar? A gente mata uma angola. Fica que a Maria faz um capote com arroz, dos bons. Depois de comer você vai.”
Almocei com meu pai e Maria. Não era tão feia como Miguel falava.
- “Agora vou, pai. Sua benção.”
- “Pra donde, Cícero?”
- “Colinas.”
- “Ah! Já sei. Perdoa o pai?”
- “Tudo esquecido, pai. A benção.”
- “Deus abençoe, meu filho.”
Fui embora. Da casa do pai a Colinas são umas seis léguas. Cheguei à noite: cansado e com medo do que estava por vir. Perguntei ao primeiro: “Onde fica a Zona daqui?”
- “Vire às direitas, na igrejinha, e, depois de umas duas quadras, você vai ver umas três ou quatro casas, todas com luzinhas vermelhas na porta de entrada. É lá.”
Entrei na primeira casa com a luzinha vermelha acesa na porta e tinha lá umas três putas. Paguei uma cerveja para a mais velha delas e puxei assunto:
- “Conhece Dorvalina?”
- “Tem ninguém aqui com esse nome não. É nome de guerra?”
- “Não, nome de batismo, mesmo.”
- “Deve ser, então, a Cacilda; uma moreninha que chegou aqui faz uns três anos. Será? Se for, é na última casa da rua. Rabicho seu, bonitão? Sortuda.”
Vou até a última casa da rua e entro.
Ninguém na sala. Dou uma tossida para avisar que tem gente.
De trás de uma cortina de fitas coloridas de plástico, aparece Dorvalina, linda, linda demais: toda cheia de batom, o “rouge” cobrindo a face morena. O mesmo sorriso de dentes brancos:
- “Cícero, meu amor, veio me buscar?”
- “Sim, vamos embora?”
- “Vamos, sim.”
Dorvalina me deixa só na sala e nem um minuto depois já está de volta, com uma trouxinha de roupas pendurada no braço moreno.
- “Vamos?” me pergunta.
Saímos. Para onde, eu não sabia.
Dorvalina me guia; passamos perto da igrejinha e fomos nos afastando da cidadezinha e de suas poucas luzes. A lua estava cheia e dava para tudo se ver: estrada, pedras, árvores...ao longe, o riozinho, com o ruído das águas rolando nas pedras. Chegamos à beira do riacho.
- “Dá um tempinho, Cícero.”
Foi até a beira do riozinho e começou a tirar toda a roupa. Tirava e jogava no meio da corredeira: o vestido, o soutien, a calcinha; ficou nua com havia chegado no mundo. Entrou no rio e mergulhou.
Saiu com o corpo molhado, seu rosto antigo, sem maquiagem, os cabelos soltos. Pegou da trouxa o vestido de chita, que era o que usava quando morava em casa com a gente.
Vestiu e remoçou-se toda.
Ali, na beira do rio, nos amamos como nunca havíamos amado.
De Colinas, pegamos o ônibus e fomos para São Luiz do Maranhão.
De lá, para São Paulo.
Passei no escritório da Edmaro. Havia uma encomenda para mim. Encaminhado por Dom Agostinho, era um jornal em língua estrangeira, com foto minha e um bilhete, explicando que, embaixo de minha foto, estava escrito: “Cícero, operário brasileiro, torturado e queimado pela polícia da ditadura militar.”
Me achei horrível na foto: cara muito triste, desfalecido, o marrom do rosto misturado com o amarelo da fraqueza, um ar de medo, angustiado...
Nem parece eu, pensei.

4 comentários:

Anônimo disse...

Seu Orlando,

suas histórias são um tanto longas para a expectativa dos leitores da internet... mas, devo admitir, valem cada palavra.

forte abraço,
Maurício Pedro

Anônimo disse...

Olá Maurício,
Fico feliz com sua visita e comentário; vamos ver se consigo escrever histórias mais enxutas.
Abração!
Orlando.

Morales disse...

Longa e bela história. O evento mencionado da morte de um operário é a do Santo Dias? Outra coisa: você deve saber, claro, mas o cicário ainda é utilizado pela OPUS DEI, cujos membros, chamados de numerários, o utilizam como instrumento de auto-flagelação.

Anônimo disse...

Olá Tonhão,
Sim, Tonhão, o evento relatado na Catedral da Sé foi uma lembrança da Missa para o Santo Dias.
Não sabia que o pessoal da OPUS ainda utilizam o cilício, prática batante comum entre padres e frades em meados do século passado; felizmente, para mim, não era praticado entre os Beneditinos Olivetanos, congregação que foi , por alguns anos, a minha praia.
Abração,
Orlando.