segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO – III – FUGA DO SILÊNCIO!

DSC05752

Mosquitos, vespas, marimbondos - em bando – semelhante a uma nuvem, zumbiam em volta do defunto corpo da onça suçuarana, de olhos meio abertos, mortos, sem brilho, da boca escorria bolotas negras de sangue que misturavam com os vivos mosquitos que zuniam impingindo no silêncio da caatinga estranha música, não se podendo classificar de feia – assustadora, sim, com certeza -, sem ritmo, música que não dava vontade de sacudir o corpo e sapatear as alpercatas até levantar poeira nos secos terreiros, rodar feliz; na noite que antecedeu aquela manhã, pouco dormi: o sono não vinha, o Estevo roncando no girau, um calor brabo, os ventos – iguais aos córregos e rios - secaram, não assopravam para aliviar um pouco, ao menos, o calor que melava o corpo, os peitos suados, o pescoço molhado, deu sede, me levantei para beber água e iniciei um pensar: como pode conseguir - o Estevo – de se vestir com roupas novas, de ter o arreio bordado com estrelas prateadas, de usar esporas de prata enfeitando o grosso e negro calcanhar? como pode ele conseguir isso tudo? o colete de couro de cabra trabalhado em cores, mostrando que foi comprado? e o homem, vi bem ontem, carregava boas armas: nada de espingarda de um cano só de carregar pela boca, carregava, isso sim, no ombro, em cima do colete de couro de cabra, um cinturão recheado de cartuchos, cartucheira de dois canos – alemã - de nome estranho, facão brilhante preso na cintura e na parte traseira do corpo se escondia o punhal com cabo de madrepérola, colorido, o aço do punhal com mais de palmo, pontudo, deve ter sangrado diferentes corações; mas, como será que Estevo conseguiu tudo isso? e, por minha conta, por minha livre e espontânea vontade desacreditei que não foi seguindo rezas do conselheiro que Estevo apresentava tantas posses, tantos bens: só reza não constrói belezas assim, isso só pode ser de invasões e saques, e naquela manhã, ainda escuro, me benzi por medo das ofensas que havia conseguido pensar: devo estar variando a cabeça de tanto calor, muita sede, e voltei deitar no girau, tentar dormir um pouco, corpo cansado, suado. Manhãzinha, a barra clara do dia ainda sem ousar de aparecer no horizonte, tudo escuro, levantei para acender o fogo, coar café e o barulho do fogo pipocando nos gravetos, esparramando amarelas estrelinhas na boca do fogão e a claridade amarela do fogo se juntou com a barra clara do dia que agora vencia o horizonte, subia céu acima e entrava pela janela de perto do fogão, e o fogo e a barra do dia clareou a tapera, fez o dia chegar e a luz bateu nos olhos do Estevo que acordou, virou de lado no girau escondendo os olhos, mas nada adiantou: a barra do dia encheu a tapera de claridade e Estevo, vencido, espreguiçou forte, soltou da garganta forte AHHHHHHUHHHHHHH! ‘dia Nenzão!; ‘dia Estevo, água fervendo mode coar café, tem farinha, rapadura; e Estevo girou o corpo no girau, acordou de vez: café com rapadura e carne de onça é o que careço para este dia de hoje; Estevo levantou do girau, se benzeu com o sinal da cruz e arrastou para fora do chão da tapera o corpo morto da onça, espantando com as mãos em barulhentos tapas os mosquitos, as muriçocas, as vespas, e até negras mangavas e enormes venenosos marimbondos – daqueles amarelos de ferrão - todos ali zumbindo e se matando na procura do melhor lugar para beber o sangue seco da suçuarana e o Estevo - xingando palavrões - arrastou a onça para fora da tapera, se estancou debaixo do pé de umbus, desaguou o mijo e arrancou um galho do umbuzeiro que usou para espantar tantos insetos e começou, com afiada faca, a esquartejar a onça suçuarana morta, o corpo endurecido pela morte, a faca afiada guiada pelas grossas mãos de Estevo separando o couro amarelo desenhado de manchas negras da carne vermelha, os mosquitos e vespas e marimbondos infernando o trabalho e Estevo decepou – forte golpe de facão a cabeça da onça - e atirou longe, para ainda depois da sombra do pé de umbu e a cabeça da onça voou até perder a força e rolou pelo meio da caatinga, cabeça redonda da onça, os dentes de fora, parece que sorrindo triste embaixo do mandacaru, e o Estevo berrou alto xingando para os mosquitos, marimbondos e vespas: aproveitem seus diabos do inferno: cabeça de onça é o de comer de mosquitos e marimbondos, deixem eu aqui em paz; e continuou o delicado trabalho de esquartejar – pacientemente, sempre xingando, mas com muita ciência - o corpo da morta onça, e jogou longe, para perto da cabeça, o bucho e as tripas.

A caatinga fedia!

Carne de onça é dura e adocicada, açucarada não sei se pela falta de costume de comer aquela espécie de carne, nunca tinha ainda usado de fazer, ou se é mesmo doce – por sua natureza a carne de onça -, que a gente comia junto com a farinha de aipim e rapadura e o café amargo, e depois - quando a garganta já seca de tanta farinha – Estevo tirou da capanga uma garrafa verde, pinga e a pinga se misturava na garganta com a farinha e a carne da onça e a rapadura fazendo um gosto muito dos bons e apercebi que matava a fome do de comer, me empanzinava, a barriga cheia e foi me invadindo um estado de felicidade de conversar, de estar falando e de ficar escutando a voz do Estevo e foi então que resolvi naquela hora: vou-me embora deste sertão, largar nos de agora a vida de vaqueiro, viver com gentes e vozes: tudo aquilo pensado e decidido nos intervalos das conversas com Estevo, ele não desconfiado do que estava a decidir, e se for só mode as pingas que bebi, me sentia tonto, era desacostumado a beber tanto assim, pernas bambas, a língua enchendo a boca de grossa, e Estevo me contando das gentes reunidas, de joelhos, orando de manhã e a tardezinha pela monarquia - orapronobis, virgo fidelis, quirieleison – as beatas, magras e enrugadas, feias com cabeças cobertas de negros véus, terços de contas nas mãos, orando com fé e me contou mais ainda do magro e santo conselheiro, das rezas e das ladainhas e das brigas e das lutas e das guerras para defender – sob as ordens do conselheiro - a monarquia dos republicanos federais armados até de canhão, e falou das necessidades de invadir povoados para arranjar comida e armas e da satisfação do corpo com moças virgens encontradas em invadidos e distantes povoados...

Resolvi que ia embora!

Nenhum comentário: