sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

AS TRÊS MARIAS–XI–AMORES EM SÃO PAULO!

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Na volta do Teatro Municipal Moacir dirigia devagar e apontava os importantes: olha ali o Edifício Martilnelli; ali é o Mosteiro de São Bento e seu famoso relógio; na rua o menino gritava: olha o jornal, olha o Estadão, olha o jornal! o relógio badalou doze vezes: um badalado gravemente sonoro e os homens engravatados, na rua, conferiam se seus patacões, corrente de prata ou de ouro, marcavam a hora certa? Será? e Moacir encurtou o caminho de volta pelo viaduto Santa Efigênia, o Anhangabaú lá embaixo, os homens vistos tão pequenos andando, fumando seus cigarros.

Chegaram para o almoço. Dona Amélia, sempre prestativa e útil, encaminha as duas Marias para seus quartos – se arrumem logo que o almoço está quase pronto - , e foi para a cozinha provar o sabor do frango assado, do molho do macarrão, enfiou o dedo na jarra do refresco de tamarindo para sentir o gelo e achou que estava tudo bom, sorriu contente e voltou para a sala. Na sala Moacir e Fátima bebericavam licor de jabuticaba, se falavam, narravam as novidades: Cidona e Didinha ficaram surpresas com a beleza do municipal; imagino: é tudo muito bonito, mesmo e você retirou os ingressos?; sim, estão comigo, bem guardados e você continua mesmo teimando em não ir? vai perder uma belíssima apresentação, a orquestra está afiada, o maestro, ainda há tempo...; vou não, Moacir, a festa deve ser sua e de Cidona, penso assim; obrigado amiga, mas você, em nada atrapalharia a nossa festa; vocês, homens, não conhecem mesmo as mulheres: atrapalharia sim, amigo, agora você é da Cidona e não imagina o tanto que estou feliz por sua felicidade. Dona Amélia chega, passinhos rápidos, tec tec tec no assoalho, avisando de sua chegada, sorri e se serve de licor, quero bebericar também, estou feliz por demais com os acontecimentos que ando a adivinhar, novidades, felicidades.

Na mesa, para o almoço, toalha de linho branco cobrindo, talheres ao lado dos pratos, copos para o suco de tamarindo, sobe pela sala o perfume do frango assado, do arroz, do feijão, fumega a travessa de macarrão coberta do vermelho dos tomates, uma folhinha aqui e outra acolá de manjericão, a fome atiçada por tantos perfumes e cheiros, a vontade de encher o prato, mas vamos ser educadas, não vamos fazer feio aqui, cortar o frango com a faca segura pela mão esquerda, é assim que se faz na casa dos ricos, mas está bom demais o macarrão e todos comem e falam e lá fora o sol bate forte, a sombra do buriti desenha seu retrato em cima da grama do jardim, e o pássaro preto e os curiós e o pintassilgo e o canário da terra – cabecinha vermelha - , presos na gaiola, cantam e cantam, orquestradamente, sem maestro.

E Didinha lembrou do Nêgo, seu pássaro preto e do vira-lata Pitoco que ficaram na sua casa por conta do pai de Cidona e se entristeceu, bateu saudade de seus companheiros de vida, e seu eu vier morar aqui será que posso trazer os bichinhos, largue de pensar besteira, pode ser que o italiano faça o que fez comigo com todas as mulheres que encontra naquela sala cheia de vestidos brocados, e será que com as outras a névoa esconde as poucas vergonhas do anjo da guarda e do espírito santo, e comeu um pedaço do peito do frango e se lembrou que em sua casa, se tira os ossos do peito e põe para secar no varal para jogar: aposta-se e cada um segura em uma ponta e puxa e quem segurar o lado que quebra, que frissura, perde a aposta, e no varal de casa tem mais de cinco ossos do “jogo” secando, esperando, quero apostar com Natalino, quem perder paga e o que você aposta? quero um beijo...pare de pensar besteira na mesa, os outros podem desconfiar. Cidona aceitou a sobrecoxa do frango que dona Amélia serviu, segurou a faca com a mão esquerda cortou pequenos pedaços e delicada comia com prazer, estava faminta e Moacir olhando carinhosamente, melado para ela, faça assim não, me envergonho, mas Moacir, orgulhoso, feliz, teimava em desobedecer e continuava a olhar umidamente, penetrava em seus olhos e em seu corpo, ia até o fundo de seu ser e enxergava no fundão um brilho de felicidade que arrodeava a alma, o coração, parecia as auras dos santos da igreja – nossa Senhora, pecado pensar assim, será? e ela resolveu, também, olhar dentro dos olhos do Moacir e enxergar lá dentro, ver se aquela luz aquecia seu corpo de amor, felicidade deve ser isso, pensou e na mesa, todos, em silêncio, talheres postos sobre a toalha, reverenciaram aquele momento de celebração de amor.

Natalino, cumpriu o prometido. Chegou cantarolando a estrofe do coro dos homens da Cavalaria Rusticana, era sempre assim, ficava com a ópera na qual estava trabalhando na cabeça e por onde ia ficava a cantarolar ou assobiar coros, árias - era assim que seu coração dizia ao mundo de suas alegrias – e também, outro costume, era de, em cima da bicicleta, ficar tocando a sua campainha – trim, trim, trim ... buscando o ritmo da música; chegou e estacionou frente ao portão sua Monark Sueca, nova, freio de mão, amarela, frisos platinados, pneus balões. Toca a campainha da casa de Moacir e enquanto espera Didinha cantarola:

“...noi stanchi riposando dal lavoro

a voi pensiano,

o belle, ochi-di-sole

o belle, ochi-di-sole,

a voi corriamo...”

E Didinha chegou ao portão: saia godê, preta, blusa com mangas compridas, um elegante bolsinho com suas iniciais bordadas em azul, rosto brilhante, sem pó, batom vermelho desenhando os contornos da boca e ele: vamos passear, suba aqui, apontando a garupa da bicicleta e ela se constrangeu: será que posso? será que se usa mulher andar na garupa de bicicleta aqui na cidade grande, na vila só se vê menina mulher na bicicleta, na garupa dos pais ou dos irmãos, será que vou cair...Natalino percebeu sua indecisão e orientou: senta aqui, de lado, segure no selim e em minhas costas, não tem perigo, ajuste bem a saia para não pegar nas correntes, vamos; e lá se foram: ziguezagueando rua afora, a trim! trim! trim!, os pneus balão amaciando os paralelepídos negros, e a canção “o belle ochi-di-sole” no ar e as buzinas dos carros e na São João um Ford preto, limpo, bonito, atravessa a rua e freia em cima da bicicleta, buzina alto e o motorista aponta o dedo e xinga: merda de italiano; e Natalino responde: fare in culo! e Didinha, amedrontada com tudo aquilo, cruzou as suas duas mãos pelas costas de Natalino, que sentiu o calor de seu rosto, e, esperto, freava subitamente a bicicleta com força e o rosto de Didinha colava em suas costas quentes, os dois: suas costas e o rosto branco e liso de Didinha; para onde estamos indo?; e ele: para minha casa, quer ir?; sim, quero.

E Didinha passou a pensar e a pedir que a névoa que encobre os pecados pousasse forte sobre ela, encobrisse seu corpo forte, suas pernas redondas, seus seios fartos e firmes que ansiavam por amor, e amor deve ser isso, esse desejo forte, encoberto pela névoa, escondido do olhar do anjo da guarda e do espírito santo, e será que depois o anjo da guarda volta a tomar conta de mim e canta baixinho, rosto colado nas costas de Natalino:

“...Que beijinho doce

Foi ele quem trouxe

De longe prá mim

Se me abraça apertado

Suspiro dobrado

Que amor sem fim...”

A bicicleta sai da Avenida Nove de Julho e entra a esquerda em uma ruazinha estreita, as casas enfileiradas – parede-meia – as crianças da vizinhança abanando a mão e pedindo a Natalino que desse uma voltinha com elas em sua bicicleta e ele hoje não, amanhã, e parou a bicicleta frente ao número 671 e lá deixou a bicicleta, tomou a mão de Didinha e convidou-a para entrar: entre a casa é sua...

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