quinta-feira, 18 de julho de 2013

AS TRÊS MARIAS -IV - A SOLIDÃO DE DIDINHA, A ENCARNAÇÃO DA VULGÍVAGA E A VINGANÇA DE NORMA.

2009 Caminho da fé 074retoc

E mortes, enterros e lutos se acumularam, deus me livre e guarde! Em seis meses de mulher casada - vestida com seu branco e comprido vestido de organdi - saias e blusas e vestidos tiveram que ser costurados, às pressas, em negros tecidos comprados na loja do Mansur: Dona Hercília tirando as medidas e costurando entre choros, lágrimas e suspiros.

Primeiro o pai: morreu, não se sabe se de tristeza, o governo mandando queimar sacas e sacas de café no porto de Santos, dívidas com bancos, a saúde da esposa piorando a cada dia e assim, sem mais, em uma tarde quando voltava da fazenda, caiu morto do alto do arreio do cavalo Tiziu, um manso cavalo, batizado com este nome de tiziu pela cor negra o e não pelos acrobáticos saltos que o passarinho dá, se mostrando todo o exibido nas moitas de capim, assobiando fino tiziu! tiziu! tiziu! Morreu, sem nenhum aviso, o pai. Já Eduardo, o marido, precavidos avisos foram fornecidos: o primeiro veio da ordem de ir para Campos de Jordão, viagem apressada em ambulância, acompanhado apenas do médico da cidade, o doutor Vicente, que comentou: uma esperança para o grave estado do Eduardo; quinze dias depois, chegou mensagem no telégrafo da estação da Mogiana: “Sr. Eduardo nas últimas pto. Avisar família pto.buscar urgte pto. Dr. Cabral Sanatório CJ” e lá foi de volta a ambulância, obediente ao telegrama, trazendo de volta Eduardo vestido em um corpo quase sem vida, febril, pulmões ocados pela tuberculose: morreu uma semana depois, em casa.

E no guarda-roupa de Didinha os cabides com vestidos e saias e blusas pretas foram empurrando para o canto os outros coloridos, brancos, rendados: luto de seis meses pela morte do pai que se juntou a mais seis meses pela morte do marido. Pena de se ver o guarda-roupas, agora sem as roupas de Eduardo – queimadas, medo de a doença passar -: o negro apertando para um canto o colorido, espremendo e amassando o branco vestido de filha de maria e sua fita azul, o véu branco de virgem, que ainda era.

O sinal da solidão foi dado depois da missa de sétimo dia da morte de Eduardo: na missa, todos de negro, reviu as primas que tinham vindo para o enterro, Didinha foi tocada pela concretude da morte em si como um evento, a não volta, meio a tantos abraços e confortos: meus pêsames, mas você é forte e vai vencer; meus pêsames: estou ao seu lado; pêsames Didinha: a vida continua, fé em deus...e os abraços e as lágrimas umedeciam sua blusa negra – escorridas de seus olhos e misturadas às lágrimas reconfortantes de primas, tias, da Cidona – e a saída da igreja, o silêncio da praça e as impossíveis esperanças de retorno, de que tudo era um sonho foram se esmaecendo, a vida continua, e Didinha achando que sua vida não continuava, que estava parada como a de um relógio quebrado, querendo conserto e se viu só, imensamente só e triste.

A prima que havia ficado com ela até aquele dia da missa de sétimo dia se despediu – qualquer coisa que precisar, me chame, a vida continua – e Didinha retornou para sua pequena casa: sala, cozinha, quarto com cama de casal, os presentes de casamento ainda sem uso, embrulhados em cima do guarda roupa com as roupas negras invadindo o espaço, sufocando os colorido, os rendados brancos.

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Sobre a mesa da cozinha, grande toalha branca de linho, jarra com água, panelas e pratos! Moacir e Lourdes jantam, os dois, um quente angu de fubá mimoso com frango e quiabo e vão beber, após o jantar, café coado por Moacir: tempo demais para prosas e olhares amigos com os corpos aquecidos do frio e do vento que entrava zunindo, assobiando, pelas frestas da porta de duas folhas da sala de entrada da casa, agora reformada com confortos rememorados da casa dos Campos Elísios, na Alameda Nothman.

Gosto do sabor do frango caipira, dizia Lourdes e ele: tem um pouco o cheiro de quintal, de cocô, assim como o leite gorduroso daqui: cheiro de fezes, de curral; seu paladar é muito apurado e sensível, Moacir, ou é uma forma de resistência; resistência a que?; à que? oras à falta de óperas, de concertos, de ilustrados saraus; é pode ser, talvez seja, responde em voz baixa, pensativo; e ela: tenho claro o que me trouxe para cá e sempre, você sabe disso mais que eu, que sem você eu não teria vindo, mas tenho dificuldade de entender o porquê de você ter concordado com mudança tão radical em sua vida; me sentia um pouco preso e asfixiado pelos saraus e querelas intelectuais e além disso, aceitei por admirar e querer saber até onde ia sua coragem e disposição para permanecer, contra tudo e todos, ao lado, ou pelo menos mais perto do seu amado; o mais difícil foi deixar meu filho com meus pais: no mais, a capital, para mim, sem Vicente, não tinha o menor sentido, ou melhor, a vida para mim, só tem sentido com a possibilidade de Vicente por perto, não juntos, mas acessível; é o que me faz te respeitar e admirar; não me envergonhe com suas palavras amigo, apenas corro atrás do que me é importante; você, Lourdes, abre buracos e frestas tornando as paredes do inconsciente tules perfurados; e lá vem você e suas análises: procuro apenas viver, Moacir, meu caro amigo; sem sentir nenhuma culpa, sem nenhum arrependimento?; penso que arrependimento e culpa todos temos: pecadoras como eu e santos como o Agostinho: a diferença é que me arrependo por reais e concretos atos e Agostinho por pensamentos; deixa o Freud saber disso, amiga; sei que você respeita por demais Freud, de quem só sei o que você – nas horas dos nossos jantares – e o Vicente – após longas e extasiantes horas de carnal amor, cansado – me falam: e ele, o Vicente, penso, mais para justificar a si mesmo a imensurável força animal que nos une; não te falo, Lourdes: Freud é um dos pilares da compreensão da alma humana, quer café? ; sim, vamos ao café porque a noite promete.

A casa em que moravam tinha, a partir da reforma, uma serpentina que passava pelo forno do fogão a lenha, e aquecia água para banhos quentes de chuveiro: agora não mais os fios d’água caindo do chuveiro elétrico, que diminuía a força das lâmpadas, queimava fusíveis e obrigava o corpo a ginásticos e cansativos contorceres para esparramar o fiozinho de água quente pelas costas, pelas coxas e pelo pescoço, e enquanto esquentava uma parte esfriava a outra: agora não, com fartura de água quente se derramando pelo corpo, dando adeus aos contorcimentos que geravam câimbras no pescoço e pior ainda, quando o fusível queimava, o término do banho em bacia e canequinha, um horror, mais ainda nos frios meses de inverno.

Saboreado o café quente, cooperativamente os dois recolheram os pratos e as comidas, amontoando as panelas e pratos cima do fogão e dobraram a tolha branca, desnudando a mesa de jacarandá!

Ao banho quente! falou Lourdes enquanto, ainda na sala, se desnudava sensualmente. Banhou-se, inundando o banheiro com uma nuvem de quentes e perfumados vapores: amigo Moacir, meu querido, declame Vulgígava para mim! cantarolou Lourdes, rosronenta como uma gata, saindo do banho, o corpo quente, gotas d’água escorrendo dos ombros para as pernas, para as nádegas redondas, da cabeça para o pescoço fino e delgado e para os peitos empinados.

Moacir enrolou a toalha sobre os ombros nus e molhados da mulher e declamou:

“Não posso crer que se conceba

Do amor senão o gozo físico!

O meu amante morreu bêbado,

E meu marido morreu tísico!

Não sei entre que astutos dedos

Deixei a rosa da inocência.

Antes da minha pubescência

Sabia todos os segredos...”

Tá bom, chega Moacir, estes dois versos são suficientes; se quiser declamo o resto, não gosto de cantar o Manoel Bandeira pelas metades; e ela: não está bom, e sabe Moacir, que se eu fosse espírita teria certeza absoluta que eu sou uma encarnação dessa poesia; e ele: mas você sabe quais foram os astutos dedos, minha linda; sim, sei e hoje eu os terei novamente.

Moacir deixou Lourdes enrolada na toalha no quarto de banho: o corpo redondo, ancas largas, coxas curtas, grossas, torneadas, os pelos negros do ventre sobressaindo no corpo branco; os seios redondos - sujeitos à flacidez da idade e da amamentação – com os bicos rosados e o pescoço delicado davam a Lourdes um ar qualquer da Vênus.

Atravessou a rua e viu sua casa de frente. Olhando para a direita era a terceira casa até chegar na esquina, casas separadas uma das outras por pequenos corredores de metro e pouco, sem jardim de frente, sem alpendres, com amplos e compridos quintais nos fundos: a frente da casa com três janelas venezianas, duas do quarto de dormir de Lourdes e outra do pequeno escritório de Moacir; a entrada da casa era pelo corredor onde havia a porta principal, azul, de duas folhas, pé direito de mais de três metros.

Quando as duas venezianas do quarto de dormir de Lourdes se abriram, Moacir, na calçada frente sua casa, caminhou a passos lentos para o lado direito; na calçada da esquerda viu Vicente, que caminhava a passos de gato para evitar barulho e sorriu ao ver as duas venezianas abertas e então, respondeu ao sinal das venezianas abertas: pigarreou baixinho, limpando a garganta enquanto deixava a calçada e entrou pelo corredor a dentro à busca de Lourdes.

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Cidona passava as camisas e os ternos e os vestidos de linho na sala de visitas; a mesa de jantar transmutada em mesa de passar: sai a toalha rendada branca, o vaso com rosas e o jacarandá se vê coberto por um grosso cobertor de lã e sobre ele um lençol branco que evita que os fiapos da lã se enredem pelos delicados tecidos de linho das roupas que serão passadas. Cidona gira, como o turíbulo para liberar incensos , o pesado ferro de passar a brasa: pelos buraquinhos se vê os carvões avermelhados , pequenas faíscas caem sobre o lençol e têm que ser, rapidamente, retiradas com as mãos ou com fortes sopros e o calorento e pesado ferro de passar roupa passa a soltar pelo seu pelo bico, invejoso da locomotiva de trem, um suor fumacento, cinzento tão logo seu fundo – agora quente - toca o tecido das roupas úmidos de goma, truque usado por Cidona para deixar ainda mais liso os vestidos, as camisas e os ternos de linho.

Cidona trabalhava o seu ofício de exímia passadeira cabisbaixa, quieta, aspirando a fumaça quente exalada pelo ferro de brasa.

Moacir colocou na vitrola o que ele costumava chamar o seu LP “do momento”: importado de Portugal, a ópera Norma, tendo Joan Sutherland no papel de Norma e John Alexnder no papel de Pollione. Ligou a vitrola, ajeito o LP, colocou cuidadosamente a agulha no início das arranhaduras do disco e aumentou o volume o suficiente para o som cobrir a fumaça espalhada pelo ferro de passar roupa e, voltou para sua cadeira no escritório, onde – quieto, ficou menos a ouvir – conhecia aquela ópera como a palma de sua mão, fez testes no Municipal no papel de Pollione e não foi aprovado - e mais para ver como Cidona reagiria à voz doce da cantora e à bela melodia de Belline. Tinha, Moacir, seus pressentimentos, suas premonições: vamos ver!

A música inundou a sala! Oroverso e os druidas aguardando a chegada de Noma...

Fingindo despreocupação como se nada tivesse na sala a não ser a música, no exato momento em que findou a ária da Casta diva, Moacir foi até a vitrola e, cuidadosamente, ergueu o braço colocando a agulha exatamente no ponto onde a ária se iniciava, reiniciando o canto da ária. Agora, de pé ao lado da vitrola, repetiu esta operação por duas vezes, bisando e rebisando a ária: na segunda repetição , fingindo estar só na sala, acompanhou a ária assoviando afinado, imaginando que, com este gesto, estimularia Cidona a cantarolar a melodia. Ao final da terceira repetição, colocou a agulha no início da ópera, voltou para sua cadeira e aguardou!

Cidona, absorta no trabalho, mergulhada na névoa de vapores do ferro, ajeitava uma camisa de linho: dobrava as mangas e desdobrava os colarinhos; as longas mãos negras ora ocupada em alisar o tecido já passado, ora em umedecer com o pano úmido de goma o restante do tecido e continuando o trabalho de alisar, forçando o ferro quente sobre o tecidos em movimentos de vai e vem: a fumaça subia pela sala e quando menos esperava se ouviu cantando e a voz de Cidona se uniu à de Joan Sutherland cantarolando a melodia:

“Sedizioze voci, voci di guerra

avvi chi alzarsi attenta

presso all’ ara del dio...?”(*)

Finda a ária Moacir aplaudiu: Bravo! e Cidona, assustada, sem entender o que ocorria, assustou-se, o ferro caiu de suas mãos – brasas se esparramaram pela sala a dentro, corre até a cozinha e pega uma vassoura para juntar as brasas antes que queimassem as tábuas do assoalho e Moacir ajudando e Cidona pálida, o rosto perdendo a negritude, esbranquiçando, mãos trêmulas e o LP continuava rodando na vitrola, o som alto, as vozes, o coro!

Agachados no chão à cata das últimas brasas que teimavam em permanecer acesos, Moacir e Cidona, os corpos pertos, os rostos a pouco mais de meio metro um do outro, a vitrola ainda inundando a sala de música: Linda demais sua voz Cidona, disse Moacir e Cidona disfarçava a timidez procurando no chão as últimas brasas, pedindo a deus que o mundo acabasse ali, naquela hora, envergonhada; obrigada, bondade do senhor.

(*) vozes deliciosas, vozes de guerra,

quem ousa elevá-las

perante o altar do deus?”

2 comentários:

Rafael Sanches disse...

Bravo! Bravíssimo, amigo! Obrigado por me trazer a beleza de seu texto nesta tarde fria de inverno em Sousas, fazendo-me evocar tantas lembranças.

Beth Fadel disse...

Nesta fria tarde, ler "As três Marias", desde a apresentação, com um chocolate quente ao lado e com algumas pausas para saborear o pão com sementes de abóbora,comprado em um café alemão que abriu há poucas semanas por aqui,foi um programão. Adorei!