terça-feira, 25 de junho de 2013

AS TRÊS MARIAS–II - INÍCIOS

2009 Bahia 074retoc

Para Didinha a vida na cidade era plena de novidades: tinha luz elétrica, rádio vitrola, sorvete de baunilha e tinha a missa das seis cantada em latim e ela se achava linda dentro do vestido branco e da faixa azul da congregação das filhas de maria; teve também, naqueles inícios de vida na cidade, o pedido de namoro do magro Eduardo, de olhos grandemente tristes, esverdeados, o sorriso sempre escondido sem mostrar os dentes, as mãos enormes com os dedos cobertos de pelos castanhos, unhas bem feitas e a permanente tosse.

O namoro era na sala, os dois sentados um frente ao outro separados pela mesinha de centro e vigiados pelo olhar de Deus que atravessa os telhados, como via no manual das filhas de maria e pelo intermitente pigarrear do pai no quarto avisando que estava acordado; isso sem falar nos movimentos da Emerenciana usando duas bacias para lavar e enxaguar as louças do jantar, e terminando essa tarefa varrendo forte a cozinha, empurrando com a vassoura as cadeiras, barulhenta, quebrando o silêncio da casa e da cidade quieta a dormir: sinal de que as nove horas vinha vindo e que era chegada a hora de terminar o namoro: ele para sua casa e ela para a cama a sonhar. Durante o namoro, entre os intervalos dos acessos de tosse, Eduardo falava da festa do casamento, da casa em que iram morar na fazenda, dos filhos que teriam e que correriam alegres atrás das galinhas no pomar da fazenda, do tão bom que seria vê-los brincando de separar e recolher as vacas do pasto com os cavalinhos de pau e ela quieta, quase sem falar e daquelas conversas a que lhe causava alegria era ter filhos: tinha aprendido a gostar dos confortos dos sorvetes da cidade, da missa das seis e da eletricidade clareando e alongando mais os dias, fazendo demorar a escuridão da noite e seus medos, aliviando os entardeceres que na roça são tristes, doloridos e, melancolicamente, imploram para o sono da noite e o dormir para apressar o novo dia.

Encontrou Cidona, melhor dizendo, falou com ela uma primeira vez por acaso, quando as duas, ainda escuro, iam para a missa das seis e o cachorro do Lázaro avançou pela rua a dentro latindo forte e Cidona medrosa, dando pulos com seu sapato de salto alto e suas pernas finas, gritava deus do céu, mãe de deus e Didinha passou a mão pelo chão, fingindo que ia catar uma pedra e o cachorro fugiu adoidado, rabo entre as pernas, latindo fino: caim, caim, caim, e até fazendo xixi de medo e Cidona soube, pela Didinha, que era assim: tanto os cachorros como as vacas são medrosos dos homens e que o importante, o que bastava era mostrar coragem, e que ela, Didinha, já tinha feito muito touro bravo correr do pedaço de cana que ela tinha nas mãos que ele - o boi - pensava que era um pau de guatambu. Desde então Cidona perdeu o medo do cachorro do Lázaro e sempre que se encontravam se falavam, Didinha ensinava as coisas dos bichos, da roça e Cidona contava das rezas da bíblia, dos cantos sagrados que cantava, das ladainhas que sabia responder em latim, e cochichou no ouvido – pedindo segredo – que de verdade que não entendia o significado nem mesmo dos sabat mater e dos kyries que cantava e as duas riram daquela travessura; Cidona contava também dos bolos que fazia para as festas de casamento que tinha na cidade e da igreja que era ela que enfeitava com hortênsias, palmas de santa rita, avencas e samambaias: e na hora do casamento dos ricos era ela que ainda cantava doces ave marias – com Frei João ao órgão - e depois corria para a festa, ajudava a servir o bolo que havia confeitado, pedaços generosos colocados em pratinhos de papelão decorados, garfinhos pequenos de plástico coloridos, isso tudo tão logo a noiva iniciava, simbolicamente, o corte do bolo e todo mundo fazia um pedido, era ela – Cidona - que corajosa, destrinchava sem dó o tão enfeitado bolo que fizera: cortava e servia em pedaços, ridicava oferecendo pedaços menores para pessoas que não ia muito com a cara, ou que havia feito desfeito a ela por causa de sua cor ou de suas pernas finas, e assim ia descontruindo o bolo e o sonho de sua feitura: o glacê colorido se destrincando, se debulhando e rachando na lâmina branca da faca afiada: bons os bolos que fazia, recheados com doce de leite.

No casamento de Didinha foi Cidona que enfeitou a Igreja e fez o bolo. Na entrada da noiva na igreja – semelhante a uma princesa em seu vestido de organdi branco, a saia enorme arrastando pelo corredor da igreja, nas trêmulas mãos o buquê de flores de jasmim - foi ela – Cidona - quem cantou, Frei João ao órgão, Os Quadros de uma Exposição de Mussorgsky e todas as pessoas saboreando a música, o perfume das rosas e das hortênsias esparramando e inundando todo o corpo da igreja – do altar ao coro -: Didinha toda extremamente bela, não se esquecendo do modo de andar compassado e do sorriso ensaiado na casa de Dona Cecília, que era, na cidade, a que mais entendia de cerimônias de casamento e de fazer vestidos de organdi branco, véus de tule enfeitados com perfumadas e delicadas flores de laranjeira – mas isso tinha que ser em tempos de florada nos laranjais – e Didinha casou-se com Eduardo no friorento mês de julho. Eduardo, o noivo, em seu terno de casimira inglesa e camisa branca, feitos sob medida, exigindo várias seções de experimentar, aperta aqui, ajusta ali, pelo alfaiate Olímpio, esperou a noiva elegante em sua altura e magreza, gravata borboleta preta comprada na capital. Tossia muito e os parentes diziam que era emoção, a mãe rogando a São Gerônimo que a tosse acalmasse para que o filho pudesse dizer sim, sim eu aceito Didinha como minha legítima esposa.

Festa para os convidados: a mesa com o bolo ao centro, um enorme bolo de três andares, todo branco, com flores e corações moldurados em glacê branco, e balas e mais balas de coco, enroladas em papel crepom azul, rosa e amarelo, fazendo o papel de toalha: uma lindeza mais ainda aos olhos das crianças que aguardavam, ansiosas, a hora da Didinha cortar o bolo, e todos tendo que fazer um pedido com os olhos fechados e depois o marido perguntando para a mulher o que ela havia pedido e ela dizendo – séria, contrita - saúde para nossa família e ele mentiu: eu também pedi a mesma coisa, e as mães ensinando os filhos: não pegue mais de uma bala por vez, enfie mais de uma bala na boca, guloso, mostre que é criança educada e não está a morrer de fome. As crianças desobedientes e sempre com a boca cheia de balas e mais ainda as duas mãos coloridas das balas que seguravam e o barulho de festa, o zunzum de conversas...Eduardo tendo que sair, vez ou outra, para o quintal e lá tossir mais livremente: acessos intermináveis de tosse, perdendo o fôlego, catarro e sangue misturados, o rosto vermelho, os olhos enormes esbugalhados pelo esforço de tossir e tossir. Passada a crise voltava recomposto para a sala e cumpria seu papel de receber os parabéns pelo casamento, pela noiva tão bonita e prendada e pela felicidade que, merecidamente, viveriam dali para frente.

No quarto do casal, sobre a cama, o presentes: jogos de pratos e travessas de porcelana, vasos coloridos, panelas de pressão, faqueiros dentro de caixas de madeira, travessas de pirex e envelopes com dinheiro... presentes e seus embrulhos coloridos cobrindo a cama do casal!

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Susto grande por demais, o coração quase saindo pela boca, os olhos não acreditando no que via, no que enxergava, torcendo para tudo aquilo ser um sonho, ou melhor um pesadelo e que logo acordaria e tudo voltaria aos seus normais e ele iria atender seus normais e usuais pacientes: uma mulher no quinto mês de gravidez, um velho ou um moço que caiu do cavalo e quebrou duas costelas, o menino que meteu feijão nos ouvidos, vez ou outra um esfaqueado em briga de bêbados, mas isso era mais em finais de semana ou quermesses e festas de São Pedro, mas enfim os seus doentes de sempre, poucos, pobres em sua maioria, mas rendendo o suficiente para a vida ali na cidade e agora quem ele via, carne e osso, em sua frente: endoideceu de vez Maria de Lourdes? e quando falava – e agora nem falava, tamanho o susto, apenas pensava - assim o nome completo Maria de Lourdes e não Lulu, Luluzinha, ou minha Luluca era sinal que as coisa estava mesmo negra. Pode me dizer o que faz aqui? Vim consultar o médico da cidade, não é você? Entre logo, pelo amor de Deus, sua louca; doida varrida é o que penso que você é. Maria de Lourdes deixou a sala de espera, entrou calmamente no consultório onde sentou frente à mesa de seu amado Vicente: vestia uma saia preta e uma branquíssima blusa de linho. Fale, disse ele. Mudei-me para cá: pedi remoção e hoje à tarde estarei tomando posse de uma minha classe no grupo escolar da cidade. Você enlouqueceu? Por quê? acha tão ruim a vida nesta vila? não gosta de viver aqui? Maria de Lourdes me diga: o que quer? quer bagunçar minha vida? Vim aqui consultar: tenho dores no peito, disse enquanto desabotoava a clara blusa de linho deixando os seios à vista: os bico rosados, empinados, os peitos arfando mostrando –ínfimas e pequenas veias azuis, riozinhos na brancura da neve. Manteve-se calma, peitos às mostra: Não vai me consultar? Não, respondeu seco. Que fazer? Até outro dia. Aqui, nesta cidade, não haverá outro dia: tenho a família, Lourdes, por favor entenda.

Dona Lourdinha abotoou calmamente a blusa de linho e saiu. Não olhou para trás em direção ao pequeno e único hotel da cidade, onde encontrou seu marido. De lá, um pouco mais tarde, foram juntos ao grupo escolar onde assinou o livro marcando a posse e concretizando sua transferência.

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