domingo, 19 de maio de 2013

O MORRO DA CABEÇA DE PADRE: IX -LOUCO MANSO I.

retoc

Resolvi passar na igreja para encontrar Frei Agostinho, falar com ele, ouvir sua voz calma: dentro de mim ferviam calores indecifráveis, assombrosos medos – visões de assombrações, da mula sem cabeça soltando fogo pela boca rotando gazes com catinga de enxofre – senti que carecia de calma, refrescar a alma. Igreja com a porta principal fechada, entrei pelos lados e encontrei os santos e altares encapados de roxo, cobertos, dia e noite tristemente fantasiados dentro de mantas roxas durante todas as quatro luas da quaresma! No ar cheiro de vela queimada: lembrança de defuntos. Saí depressa e resolvi me afundar - vestir minha manta roxa - na caverna mal assombrada: lá queria ficar por muito tempo absorvendo a umidade escura, aprendendo a enxergar dentro do breu sem medo de assombrações, viver no inferno negro livre da mula sem cabeça, me sentir protegido pelas águas claras da cachoeira: a chuvosa porta da caverna mal assombrada

Fui.

Passei, antes, na casa do Tibim – tantas memórias - e vi que o pé de cacto de frente da porta da sala estava crescido, já se igualando mas querendo ficar mais alto que a porta da entrada e aquilo não era nada bom: tão logo o cacto ultrapassa a porta em altura, naquela casa alguém morre. Sabia disso não? Não leu Miguelim? Se lembra, então: Miguelim mandou cortar o cacto que teimava em ultrapassar a altura da porta, por medo da morte do pai, ou da mãe, sem nunca imaginar, o pobre coitado, de que quem logo morreria – de dolorido tétano - seria o irmão que o salvou de levar surra do pai por ter ordenado o corte do cacto; o irmão – não consigo agora me lembrar o nome do irmão do Miguelim, coisas da idade, dos muitos anos passados, tenho que ler de novo - disse ao pai coisa mais ou menos assim: pai mandamos cortar o cacto porque não queremos que você morra, por gostar demais do senhor. E tudo ficou bem, Miguelim não levou a surra do pai, mas logo seu irmão adoeceu e faleceu no quarto escuro, janelas fechadas evitando a claridade que aumentava a dor. Miguelim chorou muito.

Não quero que Tibim morra: gosto de sua flauta, de sua música e de comer galinha de cabidela. Cortei o cacto!

No quintal, em cima do quarador de roupa, uma ave por demais de diferente; que que é isso? e Tibim: isso é uma mistura, foi a cruza da seriema que criei com o galo índio aqui do quintal que gerou esse bicho feio, horrível, bravo como ele só; qualquer dia mato o desgraçado, faço sopa, parece que quer acaba com minhas plantas, vive a beliscar, agora deu de arrancar as penas carijós das galinhas d’angola, querendo cruzar com elas. Xó! Chou! Xô ...s’imbora que senão te mato, cruza dos infernos, berrava Tibim enquanto catava e jogava tocos de pau na estranha e horrenda ave, nem sei se é ave aquilo, sei lá que bicho era aquilo. Bicho longe, fugido dos paus e dos xingamentos, mais sossegados, contei a ele que tencionava me retirar na Cachoeira, por tempos sem fim, não previsto o sair da escuridão da caverna para o claro dos dias ensolarados e pedi: busca sua flauta e toque uma música que é para eu entrar na caverna da cachoeira com música nos ouvidos e lá ficar a saborear o som de uma melodia alegre - ensolarada de fás, de mis e de sois -, ou triste - escurecida de bemóis dós e rés - ; com a alma repleta de música sigo o trilho para a cachoeira mal assombrada. No meio do caminho o bicho - cruzamento de urubu com seriema - pulou de cima do pé de cambuí – cheio de frutos - e ficou, por uns tempos, me seguindo trinando um qué qué qué grosso, desafinado! Xôo, xô capeta dos infernos, Santa Izildinha me livre e me guarde! Catei no chão uma pedra e acertei forte e o bicho horroroso fugiu mancando, sem poder de voo, com a asa quebrada!

E eu fui gostando da escuridão, apreciando a vida de dentro da oca que fica protegida pelas águas da Cachoeira Mal Assombrada: dias e dias, escuridão total, sem saber quando era dia ou quando era noite, tudo igual, ouvindo o farfalhar das águas batendo nas pedras e na mente as melodias da flauta de Tibim que, como o filho na terceira margem do rio do Guimarães, me levava comida e quieta conversa: me contou que as almas dos mortos ficam vagueando por perto dos familiares, protegendo-os, zelando por eles. Eu disse: o Doutor Bonafim, médico kardecista, diz diferente: as almas perambulam no vazio do espaço até encontrar um corpo para nele se enfiar e vivenciar as aventuras da vida terrena à busca da perfeição! Eu queria meus silêncios! Sem medo do escuro e do barulho do silencio. Musical, fui ficando por lá!

Encontrei-me, sem saber o dia e a hora, o quando e o local, com Deraldo da gaita. Meio cego, de pouco enxergar com os olhos remelentos, revirados, cabelos sujos, pastosos, barba rala, comprida: fedia muito o mameluco Deraldo, desmazelado com os necessários asseios para com seu corpo magro, amarelo, olhos puxados, cara chata de bugre: bravo, valente, perigoso em sua quietude que escondia o coração, os pensamentos: alma afundada no corpo, nada mostrava. Só quando tocava sua gaita, virava o normal de gente, de homem filho de deus: se transformava, retorcia o corpo buscando os mais agudos sons para falar dos amores, e se encurvava todo, parecendo um tatu bola, à procura dos sons graves que contavam das tristezas, das desilusões, dos desamores! Bonito o seu tocar: judiação não poder juntar sua gaita à flauta do Tibim: intermináveis distâncias de tempo os separam.

Deraldo sobreviveu à luta dos Canudos! Li em Os Sertões que o curiboca de nove anos, Deraldo, estava de tocaia, armado aguardando os republicamos quando foi pego e preso pelos soldados inimigos da monarquia. Preso, ficou enjaulado dentro de uma arapuca feita de bambu grosso, na margem do Vaza Barris: interrogado, até por generais e coronéis, mentiu os reais destinos e as artimanhas de Pajeú e disse mesmo, mentira mais descarada, que o santo Conselheiro estava morto, enterrado, alma junto de deus; para os generais e coronéis da república mostrou conhecimento de guerra, de luta: criticou o Comblain do soldado republicano: “não presta o Comblé, melhor o manulixe” – que era assim que Deraldo chamava as Mannlicher - . Escapou da prisão em uma noite de lua nova, tudo escuro e fugiu de Canudos, safando-se da morte que rondava o monarquista e cristão povoado, agora cercado pelas tropas do governo.

Fizemos amizades! Eu, uma pata choca, que mal atirava pedras com estilingue e bodoques, orgulhoso de poucas mortes de sabiás e juritis e Deraldo: mortes e mortes na cacunda, descrente de deus e dos homens, eterno andante – quem tem raiz é aipim - , comia calangos, bebia água salobra, pinga com cambuí, farinha e rapadura. Me encantava o musical Deraldo e sua mágica gaita: era com sua música que enxergava o mundo: seus olhos remelentos de pouca valia tinha agora, velho, doente. Contei para ele da trágica morte de Euclides da Cunha, morto a tiros em duelo com o amante de sua mulher e ele chorou: meu pai, esse Euclides, sem ele eu não existido; quem ia contar de mim para o mundo? tudo se acabou por lá: morto, minha alma, encontrou águas e águas, tudo inundado, me instalei no fundo daquele aguaceiro na torre da igreja do Santo Conselheiro e só vejo o sol e o céu quando a seca é tão forte que faz as águas abaixarem: só ai, quando a seca tudo devasta eu vejo o sol, a luz: deve ser praga dos republicanos, ou de deus para eu pagar meus pecados de tantas mortes: justas e injustas, doloridas e rápidas, dependendo da arma usada: se um manulixe ou um facão jacaré enfiado na barriga do inimigo, cortando largo até ver os buchos, livres, caindo nos seus pés.

E eu disse: você, Deraldo, enfiado na torre da igreja inundada, sem poder enxergar o muro da casinha que morava e eu aqui, perdido, vagueando no tempo à procura de um corpo livre, para nele me enfiar e poder apurar os pecados de outras vidas que vivi.

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