quinta-feira, 26 de julho de 2012

O VISITANTE IV–PESCARIA PENSANTE

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“Depois disso, tive uma visão: vi uma porta aberta no céu, e a voz que falara comigo,como uma trombeta, dizia: “Sobe aqui e eu te mostrarei o que está para acontecer depois disso” Apocalipse II- 4.1

 

José Antônio chegou na região do Toca da Onça onde o córrego corre forte entre as pedras negras, formando dezenas de pequenas, barulhentas e espumantes cachoeiras; lá, o musicante córrego tem suas margens ladeadas por guatambus, embaúbas, ingazeiros, que tapam o sol, tudo escondendo, enegrecendo e deixando frias as águas claras do riacho. Barulho? Sim, música tem: das águas, dos galhos sacudidos pelo vento que vinha lá dos lados de Minas e dos pássaros que, confiantes, se punham a cantar por perto. Mas o coração de José Antônio, em tudo, via amores: “oras bolas, se o pássaro está a cantar é porque quer, com seu canto, clamar a companheira pro seu lado; onde já se viu, parece que até os ventos estão fazendo os galhos se retorcerem, se encostarem uns nos outros em apertados abraços.” Era assim que se sentia e foi assim pensando que encontrou uma clareira e resolveu sentar: acomodou – com um certo desconforto - sua bunda na pedra escorregadia e iniciou a feitura de um cigarro; alisou com os lábios a palha de milho que enrolaria um cigarro grosso que queria com muito fumo, forte o bastante para espantar os mosquitos com sua fumaça e, mais que isso, forte o suficiente para encher sua garganta e seus pulmões de sonhos, fantasias, realizações difíceis. E estava a pitar quando viu, no céu, uma nuvenzinha parecida com uma mula-sem-cabeça tingindo de branco o azul do céu e, parece que foi o encantamento da nuvem mula sem cabeça que tomou conta de todo o seu ser, apoderando-se dele e o animando em pensamentos delirantes, transbordantes: “em que que Sebastiana, naquele instante, naquele justo de hora, estaria pensando? Será que pensava nele, José Antônio, a danada mulher ? Será que, depois dos acontecidos, Sebastiana enxergava nele o sonho de gerar um filho? Ou estaria brava, de ovo atravessado, cheia de ofendidas raivas pela ousadia de minha fala?” E foi então que a mula sem cabeça, formada pela nuvenzinha no céu, começou a se turvar, se plumbeando toda e, empurrada pelo vento, ou, até acredito mais nisso, por outras forças, iniciou uma rápida marcha de descida e direção à terra, a tudo cobrindo, enevoando a clareira do Toca da Onça, onde estava José Antônio a fumar. E deu-se então que a fumaça do cigarro foi se misturando com a névoa da nuvem da mulinha sem cabeça e o branco das fumaças do cigarro e das névoas foi encobrindo as árvores, as pedras, os pássaros, o sol e mesmo o olhar do anjo da guarda que tudo via, deixando José Antônio a sós com Sebastiana. Será, pensou, que era a fumaça do cigarro forte que promovia tantas delícias em sua alma? Sim, delícias porque não teve medo, e melhor que isso, sentiu a presença de Sebastiana no meio do nevoeiro, perto demais, junto dele, quase sentindo os cheiros dela. Medo? Medo não, apesar de nunca aquilo lhe ter acontecido até então, jamais ocorrido, nunca antes visto, sentido ou sonhado. Mas aconteceu nos ocorridos! José Antônio teve a certeza da presença de Sebastiana ao seu lado e resolveu, dali onde estava à beira do Toca das Onças, enfiar seus pensamentos cabeça adentro da mulher, misturar na cabeça dela as suas vontades e seus desejos! Fazer fervilhar um redemoinho de ideias, de desejos e de sonhos: tudo misturado, dos dois – dele e de Sebastiana – e deixar subir o redemoinho, ao sabor dos ventos, se elevando aos céus, levantando folhas, ciscos e poeiras, assustando as mansas vacas, aconchegando em seu miolo materno de redemoinho o saci de uma perna só com seu cachimbo aceso, suas fumaças. Medo não: quem não arrisca não petisca! E sentiu Sebastiana ao seu lado ali: toda presente. Não pode ser? Você não acredita? Precisa de real para crer, como o São Tomé, o santo do ver para crer? Mas, me diga então: você acredita na luz da vela que alumia as nossos corpos no escuro do quarto sem tocá-los? Experimente: na escuridão de um breu total chega a luz da vela, quieta, sem volume ou matéria, e alumia os braços, as mãos, os peitos de Sebastiana aos seus olhos, que graças a luz da vela tudo vê: acabou –se a escuridão do breu. Era tal e qual o que ocorria ali, no Toca da Onça, mesma coisa: eram não matérias – reais não matérias, como a luz da vela, ou a luz do sol - se tocando, confabulando futuros, agora estes futuros , sim, materiais em suas concretudes sonhadas. E soube Sebastiana dividida ao meio: urgia decisões difíceis, pesando os futuros, lacrimosa: sem filho, se sentia vazia, queria um filho como quem quer a própria vida; e soube dela que andava por pouco a chorar: imagine que chorava até mesmo, quando via os bezerros mamando nos peitos das vacas, e estas - olhos enormemente negros – sentindo as cabeçadas dos filhos nos seus peitos e não reclamavam da dor: ao contrário, as cabeçadas faziam descer o leite que tinha escondido dentro de si, no mais fundo de seu corpo, escondido do homem que, todas as manhãs, amarrava suas pernas e sugava suas tetas com as mãos fortes, em movimentos de cima para baixo, querendo encher seus baldes com o leite do filho bezerro! Sebastiana disse que também chorava ao entardecer que era a hora de apartar vacas e bezerros, chorava ao ouvir o berrar agudo do filhote e a resposta – o berro grave – da mãe, como que respondendo: “logo logo a gente se vê e eu te dou o meu leite e você que ao me esvaziar de leite, vai me encher de vida.” Mas, e o Chico? O que será do Chico? Será o fim! E José Antônio, calado, fumando seu cigarro, alimentando ainda mais, com a fumaça do cigarro de palha, o nevoeiro da nuvem parecida com a mula sem cabeça que se desmanchava sobre os dois, reconheceu que tudo estava resolvido. Geraria um filho em Sebastiana e era, naquela hora, tudo o que ela mais queria. Onde encontrariam outra nuvem a descer sobre eles escondendo-os de todos os olhares, até o de Deus? E a imagem da paineira que fica no fundo do cerradinho, perto do curral do sítio do Chico de Barros, surgiu como uma fotografia: a pequena paineira protegendo os corpos do sol, as flores brancas e de miolos rosa, esparramadas lindamente no chão como que enfeitando os chãos para o amor. Um lençol de flores de paineira. Mas, e Nair? Será o fim! O amanhã é o amanha, o agora é o agora! E foi então que o sol iniciou a se enfiar no meio do nevoeiro, dissipando a nuvem que tudo escondia de todos os olhares, mesmo o olhar da Virgem Maria que tudo espiava, clareando as árvores, sobrando somente a fumaça catinguda do cigarro de José Antônio. Sonhou? Desmaiou de sonhos, ou foi real? Sentia, agora, apenas o cheiro de Sebastiana, não mais ali, para onde teria ido? Havia enlouquecido? Fraqueza no estômago e fumaça forte demais do cigarro de fumo goiano? Zonzo de bêbado, cambaleante como quando tomava seus tragos a mais de cachaça, pegou o enxadão e foi a caça de minhocas... Voltou para casa tardezinha com duas fieiras de negras e escorregadias gambevas para fritar. Apartou as vacas dos bezerros, decidido que na manhã seguinte queria tirar leite das vacas e jantou quieto, mudo: dava para ouvir, na cozinha, o “creque creque” do barulho dos ossinhos das gambevas nos dentes! “Cuidado que peixe tem espinho menino: mastiga direito senão vai engasgar.” Deitou e dormiu.

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