sábado, 9 de junho de 2012

O VISITANTE: - I - OS SÍTIOS DO REBITA UNHA E DO TIRA PROSA.

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“Aquele morto voltou para assistir à primeira reunião familiar

E retirou-se agradecido

Ao ver que seus saudosos parentes estavam falando de outras coisas...”

“in” Quintana, Mário – Velório sem defuntos.

Gostava de contar histórias o visitante! E como gostava! “E de onde as tirava?”, pensava eu? “Deve ser igual aos mágicos dos circos, que pululavam pelo interior a fora com suas lonas gastas, que tiravam – mágica e assombrosamente - de dentro de ocos chapéus ou de vazios bolsos, coelhos orelhudos, baralhos ou lenços vermelhos misturados com pombas brancas? Circos do interior: a moça de cintura fina e pernas bem torneadas de fora, cabelos negros, um coração vermelho pintado no lado esquerdo da face, olhos maquiados, ajudando o mágico. Diziam, nos bares, que era com que ele que ela – sonhando mágicas - dormia depois do espetáculo.

Para contar qualquer história se faz necessário preambular e, ademais que isso, solicitar paciência de quem escuta, pois a história - na verdade dos acontecidos – ocorre tudo ao mesmo tempo, em diferentes lugares, juntando distintas pessoas, diversos amores, paisagens, sons e cheiros; pensando bem e fazendo uma comparação uma história é tal como o raio e o trovão: os dois, uma só coisa – fenômeno primordialmente único – mas vivemos em dois tempos: primeiro vivemos o riscar brilhante no horizonte e depois, muitas vezes dando tempo até de fazer o sinal da cruz e pedir ajuda a São Gerônimo, Santa Bárbara e a Virgem –, só depois é que, assustados, mãos em concha tapando os ouvidos, vivemos o barulho forte do trovão, que é o barulho do raio. Aqui, nesta história, também: tudo está acontecendo ao mesmo tempo e só para contar é que se em que se vai dividindo, separando: necessárias estratégias para o contador visitante se fazer entender. Complexidades!

Ele conta:

Duas pequenas propriedades, dois pequenos sítios, vizinhos, existentes nas gerais de Minas, enfiados nas costas da Mantiqueira. O primeiro, e ponho nesta ordem para facilitar o entendimento, tinha por nome Rebita Unha e o segundo Tira Prosa. E este “tinha”, no passado, também é uma forma de se contar que os que moravam e existiam nos dois sítios – época dos acontecidos - não mais estão mais por lá: sobraram as casas – vazias –, os pastos – outras vacas e cavalos – e as roças – expirantes - de café.

Só pelos nomes – Rebita Unha e Tira Prosa - dá para imaginar suas feições: sítios, ambos os dois, em terrenos pedregosos, secos, beirando os precipícios e tembés da negra serra da Mantiqueira, lobos uivando nas noites de lua, isolados dos mundos da luz elétrica e dos telefones. Em fins de semana, nas épocas em que se negociavam os resultados das colheitas – cafés, arrozes, milhos e feijões - seus donos se banhavam no riacho ou na bacia, ensaboavam o corpo, cortavam as barbas com a navalha, tiravam da arca as roupas de sair e iam para a cidade de carroça ou de charrete; lá, na vila, se dedicavam a vender o que haviam colhido e a comprar querosene para as lamparinas e metros de panos: chitas para os vestidos e brim para as calças; agora quando a colheita era farta se comprava extravagâncias: sardinha e bacalhau salgados, pó de arroz para embelezar os rostos das mulheres...e o que mais se comprava? A cada dois anos um chapéu, uma sombrinha para esconder o rosto da mulher do sol e era quase que só isso: o mais das necessidades se plantava e se colhia nos sítios do Rebita Unha e do Tira Prosa, fora o que já existia, por Deus, de graça na natureza: pés e pés de araticuns, jurubebas, bacuparis, gabirobas, jatobás e as caças: seriemas, rolinhas, nambus, codornas, porco do mato, um veadinho ou outro – estes mais difíceis de se ver, ariscos – as pacas, os preás, e peixes e peixes no córrego do Bom Jesus.

Dois sítios, duas famílias. No Rebita Unha: o casal José Antônio e Nair, mais três filhos, o cachorro Duque, dois cavalos machos e a égua Briosa, uma meia dúzia de vacas que dava para o gasto de leite e no chiqueiro cercado e fétido, porcos para a carne e a banha. E o que mais que tinha no Rebita Unha? Tinha as roças de arroz, de feijão e de milho separadas dos mais de mil pés de café, que se colhia nos dias frios de julho. Neste ano do ocorrido esta história a colheita do café foi fraca, pouca produção e compras mais medidas na cidade: nada de extravagâncias!

No Tira Prosa, o outro sítio vizinho: Chico de Barros – rapaz novo ainda - , sua mulher: Sebastiana – de quem tenho que contar melhor depois, daqui a pouco, dois cachorros: o Vinagre e o Duque, vacas, poucas, dois bois capões para uso no carro de boi, um cavalo e duas mulas. No quintal: laranjeiras e mexeriqueiras que nos meses de junho e julho se carregam com tantas frutas doces que fazia com que os galhos, com o peso das frutas se arrastarem no chão, formando uma choupana onde as galinhas ciscavam e se escondiam, sim, porque naqueles dois sítios, soltas nos quintais, meio as laranjeiras e mangueiras, galinhas e mais galinhas: ovos quase diários e carne aos domingos de vistas ou dias santos.

Duas vezes por mês, sempre aos sábados, noitinha, os dois vizinhos se juntavam para o jogo de truco: os homens jogavam truco e bebiam o café coado pelas mulheres que conversavam e confabulavam na cozinha. Mais raramente se juntava aos dois, que combinados se jogava de parceiros contra, o Arnaldo e o Alcindo Baltazar; e quando o jogo era assim, a quatro, se apostava leitão assado: quem perdia o jogo devia o leitão para o outro jogo. Mas isso era mais raramente, muito uma vez ou outra. O de rotina, de sempre, todo o mês eram os compadres José Antônio e Chico de Barros urrarem “truco, seis...seu ladrão” e bebiam café de coador. Também muito raramente é que uma família dormia, no chão forrado de panos de colher café, na casa do outro: o mais normal era que lá pelas nove horas, se acabava o jogo, despedidas e no escuro, quando não se tinha lua cheia, o visitante voltava para sua casa, seu quarto, sua cama. Manhã do dia seguinte acordava com as obrigações de tirar leite, cuidar dos porcos e isso mesmo que fosse dia de domingo: o dia de folga mesmo, guardado e naquele dia nem a casa se varria – era um só no ano: sexta-feira santa, dia da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.

E foi em um dia de jogo de truco com os irmãos Baltazar – Alcindo e Arnaldo – valendo um leitão assado que desta vez foi assado pelos visitantes que perderam a última queda de truco, que os berros no jogo de truco se fizeram escutar mais longe: entusiasmo, talvez, acrescido pelas doses de pinga, pelas companhias diferentes, pelos torresmos, pelas tripas de porco fritas...E foi naquela noite que José Antônio tomou coragem por dentro de ver e comparar Sebastiana sem as censuras de ser seu padrinho de casamento e compadre do marido dela, que batizou seu filho mais novo. Além disso tem-se que pesar que os dois eram primos distantes - compadres, amigos e primos distantes - : assim todo respeito era pouco. Mas naquela noite José Antônio se livrou de todas estas considerações e viu que Sebastiana era moça forte, bem torneada, peitos parecendo mamão empinados, traseiro redondo, rebolante quando andava. Chico de Barros e Sebastiana eram casados há pouco mais de dois anos; Chico descobriu a moça lá pelas bandas de Tocos de Mogi, quando foi lá um dia jogar futebol. Se apaixonou, prometeu a si mesmo e cumpriu: pediu a mão da moça e casou com ela de papel passado e cerimônia religiosa na igreja da vila. Como já disse antes, na Igreja, o padrinho foi José Antônio. Não tinham filhos nestes dois primeiros anos de casados e se os filhos não vinham não por falta de tentativas que eram tantas que os dois não sabiam muito bem se tentavam por querer filhos correndo no quintal da casa ou se era por necessidades puras de desejos de enrolar seus corpos quentes: um recheado, curvento e outro magro, ossos saindo fora, peito cabeludo. Carinhos! Amores!

E naquela noite José Antônio reolhou sua mulher: Dona Nair, e já ponho aqui o Dona antes do nome, pelo olhar entristecido do marido que viu a mulher parecendo mais que os seus trinta e tantos anos que realmente tinha: olhos azuis, cabelos escorridos, loiros, quase sem bunda de tão reto o traseiro, poucos peitos e um coração enorme de bom: um poço de bondade. Benzedeira afamada: benzia com orações e costurava curando males de quebradura ou de espinhela caída com barbante, puxava os terços e cantava, voz doce, nas rezas e terços de clamação por chuvas. Aparentava mais idade que tinha de verdade: as rugas e uma tristeza indefinida no olhar davam a ela anos a mais.

E naquela noite comeram leitão, beberam pinga e jogaram. Nove horas, noite escura, se iniciam as despedidas com José Antônio, ainda, com os olhos corajosos em cima da Sebastiana; as mulheres terminam de falar das receitas de pé de moleque, de outros assuntos de mulher já fora de casa, céu aberto, estrelado e o homens foram se despedindo e combinando o próximo desafio: a turma dos Baltazar ganhou, desta vez, as três quedas de truco, cada queda com três mãos e o próximo leitão seria de responsabilidade dos primos distantes José Antônio e Chico Barros.

Todos saíram pelo escuro da noite, cada qual buscando o caminho de casa: os Baltazar se foram montados em seus dois cavalos e Chico de Barros foi-se embora, a pé, levando consigo a Sebastiana que ficou nos olhos de José Antônio: que deitou, exigiu da mulher posições de amor e socou forte como nunca, penetrando o corpo magro com a fúria dos primeiros encontros, despejou fazendo sobrar entre as pernas da mulher o seu líquido pegajoso, uma vez e quis mais e mais assustando a esposa Nair com tantas e até então nunca vistas exigências de amor; e naquela noite foi que José Antônio possuiu fortemente em sua mulher os sonhos de possuir Sebastiana com seus seios iguais a dois mamões empinados, sua bunda gorda e forte, seus lábios grossos e seus dentes brancos; seu perfume de eucalipto, cabelos negros tapando o pescoço. E Dona Nair, assustada com tão estranha fúria, foi para o quintal, buscar água na cisterna para assear o corpo dolorido.

Chico de Barros e Sebastiana, calados, um frente do outro, seguiam caminho pelo trilho em direção a casa. Sebastiana tropeça e se enrola em uma touceira de capim vassoura e cai. Chico de Barros acode e busca levantar a mulher do meio do mato. Um beijo cobre seus lábios e os dois, apressados, não esperam chegar em casa e usufruir do quentinho do colchão de palha: aquecem os corpos e a touceira de capim vassoura se enrolando sob o céu estrelado, escuro...Se amam! Grilos saltitam, assustados soltando, olhos saindo fora do corpo,  “cri..cri...cri”, temerosos de serem amassados pelos corpos nervosos, gementes. Adormecem os espasmos e chega aquela morte conhecida que acontece depois das fúrias do amor! Silêncio total! Céu forrado de estrelas piscantes: uma estela cai no vazio do céu, deixando o seu rastro lluminoso que se junta com as lanterninhas verdes de um vagalume vigilante, curioso, que ilumina o trilho de casa. E lá se vão os dois, agora de mãos dadas, lado a lado, tropeçando, felizes, trilho a fora.

Os Baltazares levam, na garupa de cada cavalo, cada um sua mulher. Vão quietos, felizes pela vitória no jogo de truco. O sacolejar, pelo trote vagaroso dos cavalos, faz esfregar delicadas e sensíveis partes do corpo no quente do pelego macio de pele de carneiro! As mãos das mulheres segurando na cintura para se equilibrarem nas gordas garupas dos cavalos antecipam o que ocorrerá, logo logo, nas camas dos Baltazares...

Dez horas: todos dormem nos sítios Rebita Unha, Tira Prosa e em suas cercanias. Ouve-se, quem tem ouvidos acordados e atentos, o crescer do capim e o cair do sereno no jaraguá!

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