segunda-feira, 16 de abril de 2012

AGOSTINHO E EMERENCIANA – V – O DESTINO

2009 Caminho da fé 102
- “Pois então Oberaldo, eu só posso te contar que voltei do rancho de pesca do Domingo Franco, acho que fiquei lá uns dois ou três dias, sem saber o que fazer da vida; a casa vazia de Emerenciana, de minha filha e de Romeu me asssutava, desacostumado que estava da solidão de amor. Mas o pior era de noite: e olhe que não era só por medo de dormir sozinho: era o medo - na verdade, a certerza - de dormir sabendo que não poderia, a qualquer hora, nos escuros da noite, virar um braço e encontrar um corpo e sentir sua quentura, em poder descansar as pernas sobre a anca macia e quente, que eram meus costumes, meus vícios: me acostumei demais em noites assim, me viciei nestas gostosuras e, de repente quando nem consigo lembrar o nome de minha filha, e nas noites solitárias de amor, os braços encontrando o vazio do colchão frio e as pernas com caimbras doloridas, reclamando da ausência do costumeiro apoio das ancas de Emerenciana. Isso é de uma tristeza de fazer perder a alegria de viver, capaz de fazer parar de sonhar com o dia que vai amanhecer ou com as noites que vão chegar escuras, o céu estrelado. O que fazer, Oberaldo? Não estou te cansando com este meu contar palavreado? Afinal das contas Oberaldo, sei que você é crente, mas não se formou padre para se acostumar às confissões de pecados, de assuntos e de glórias. Se quiser eu paro, apago a luz e a gente dorme, que amanhã o dia vai ser duro de trabalho.”
- “Que isso Agostinho? Conte: estou sem sono e descansado.”
- “Tá bom: já que cê diz que não atrapalho, eu continuo a palestrar. E eu fui, Oberaldo, sempre empurrado pelo destino, a viver a vida eu viveria após ali em diante. Estou agora aqui,  junto d'ocê, neste dormitório de peões que constroem as refinarias: noites e dias com cheiro de gasolina e de óleo esparramados pelo céu; dia e noite esta catinga de óleo e de fumaças que saem, escuras e gordurosas, das pesadas máquinas que vivem a furar buracos nos chãos; catinga de fumaça misturada com o cheiro azedo e amargo dos brejos de mar, que chamam aqui de mangues, com seus carangueijos de patas azzuis, olhos para fora, saindo dos barros dos brejos do mar. Cubatão. E foi assim o começo: estava voltando, montado em Mossoró, da casa de Dona Terezinha, onde fui ver meu filho Romeu e envergonhado de fazer perguntas – onde já se viu esqueccer o nome da filha – fui entabulando uma conversa com Romeu até chegar ao que queria: “Luzia me batia às vezes, mas tenho saudades dela, pai” e, desde aquela hora, aquele momento, eu fiquei querendo escrever o nome Luzia em meu cérebro, em minha cabeça, porque o meu coração sempre foi de amores, enormes amores e fraco em guardar nomes; nomes se guarda na cabeça, igual aos nomes dos rios e das cidades que agora conheço, Oberaldo e eu não queria nunca mais esquecer o nome de minha filha e então repetia: Luzia, Luzia, Luzia e Romeu e também Romeu, Romeu e Romeu, de medo de ocupando a cabeça com o nome de um esquecer o do outro; mas então, continuando, quando na volta para casa, repetindo os nomes Luzia e Romeu, Romeu e Luzia, mudei o caminho da estrada e, a galope, com as rédeas tensas e Mossoró pedindo mais velocidades, cortei caminho pela invernada do sítio do Chico Baltazar e o capim jaraguá encobria um buraco de tatu: Mossoró, galopando e pedindo mais velocidades, com tantos espaços e possibilidades, esccolheu um e enfiou fundo a pata dianteira logo naquele buraco de tatu escondido pelo capim jaraguá e caiu, parando de sopetão o galope; fortemente: me atirou longe, entortou-se em seu corpo pesado e tombou quebrando a espinha; tudo tão de repente: agora, naquela hora, Mossoró imóvel, espinha quebrada, me olhava com olhos dolorosos, obnubilados, pedindo ajuda para uma morte rápida, tanta dor e eu, com o punhal, cortei a veia do pescoço ele ficou ali, morto. Morto com os olhos abertos? Era assim mesmo que cavalo morria? Esperei que todo o sangue escorresse do pecoço para fechar seus olhos com meus dedos: não queria que Mossoró, morto, com os olhos abertos, enxergasse os urubus negros, que, com certeza, logo surgiriam no céu, voando e voando mais baixo em busca de carne. E eu não sabia, mas cavalo, mesmo morto, não fecha os olhos – será que fecham para dormir?, eu não sei, mas sei que catei o pelego feito de pele de carneiro e coloquei em cima dos olhos de Mossoró, escondendo seus olhos mortos dos urubus que logo chegariam, sempre aos bandos, nunca um só ou dois, com seus voos silenciosos. E fui a pé para casa. Na vila soube da novidade: o Governo ia fazer um comício frente da igreja para contar da estrada que ia construir: uma estrada que ira rasgar os chãos e com seus rasgões e pontes nos rios e nos corgos ia juntar a vila até a cidade maior e depois de lá, como um rio, desaguar numa estrada chegando até outra cidade ainda maior, e aí, como discursava em voz grossa o governador “os frutos do trabalho desse meu querido povo aqui da vila do Baguaçu, povo tão ordeiro e patriótico, povo de cristandades, de sentimentos puros tão generosamente cristãos, que os frutos do trabalho deste meu povo, que nunca esqueço e para quem vivo e para quem eu ofereço meu trabalho honesto, que o fruto do trabalho deste meu povo possa chegar cada vez mais longe, até a capital de nosso Estado,e os cafés, aqui colhidos com estas mãos calejadas de tanto trabalho, chegar aos portos para deliciar as manhãs dos europeues. Cidadãos do Baguaçu: é a estrada que junto vamos contruir que vai devolver dividendos e riquezas, que é o que o meu governo quer, e que por isso eu estou aqui agora chorando e me perdoem as lágrimas tão sinceras” e eu não entendia o que ele dizia , mas, de prático, acabou o comício e toda a vila ficou ciente que iam precisar de gente para fazer a estrada. E eu fiquei bravo comigo por causa de que, por preguiça e cuidados, quase perdi o comício: muita gente reunida, foguetes de alegria, alto falante aumentando as vozes dos discursadores e eu querendo silêncios, sossegos, isolações com as minhas dores. Mas fui e o governador disse que para construir a estrada careciam de homens fortes para trabalhar de sol a sol ganhando salário e naquela noite já dormi arresolvido: acordei dia seguinte e passei às providências: arrendei as terrras com a roça de feijão, arroz e milho, vendi as safras que seriam colhidas mais as oito vacas leiteiras e seus cinco bezerrinhos, vendi tudo, Mossoró não: eu não vendi porque morreu e eu não sei se teria coragem de vender, tem horas que penso que sim, que venderia o Mossoró junto com as vacas e os bezerrinhos e tem horas que acho que não, que não teria coragem de pegar dinheiro por ele e que o melhor seria dar para quem dele gostassse e que cuidasse dele em sua velhice.”
- “É eu penso que o melhor teria sido não vender o Mossoró”, Oberaldo falou baixinho, mais com ele mesmo do que com Agostinho, falou mais para dizer que ouvia a conversa, que não dormia ali ao lado, na cama do alojamento dos operários.
Mas tão logo que falou dava para ouvir o seu ronco. Dorme: é melhor: falo e me escuto. Penso na vida: não altos pensamentos que não tenho competências para alturas de pensar, mas penso e falo baixinho, comigo mesmo, estou sem sono. Engraçado este Oberaldo: um crente no meio desta peãozada aqui, agora, nesta construção de refinarias de petróleo, de usinas de ferro: não bebe, não fuma, quando não está trabalhando, dirigindo a enorme máquina niveladora, está a ler a Biblia: capa de couro, os meios marcados com uma fita vermelha, suja em suas pontas pelo uso de seus dedos suados. Reza e trabalha Oberaldo: inté aos sábados, mais ainda perto do fim do mês que é quando pegamos envelopes recheados de dinheiros de nossos salários, e assinamos o reecibo de que recebemos, mesmo nestes dias de perto do fim de mês, bastange dinheiro, Oberaldo não quer saber de farra, nada de querer ir na zona das mulheres que fica aqui perto, em Piassaguera. Eu vou: me acostumei de ir. Nos começos eu ria achando engraçado o modo do pessol dizer: “vamos em Piassaguera molhar o pescoço do ganso”, vou mas não gosto de beber: adespois que uso os serviços das mulheres, pago o que devo e enquanto espero os outros, quando demoram mais, fico na sala que tem uma rádio vitrola RCA e peço para colocarem discos bonitos para eu escutar. Gosto!
Ficou meu amigo o Oberaldo. Nos começos ele me deixava aperreado, quando abria seu livro da Bíblia, fechava os olhos e ficava a dizer que tinha lá escritos que contavam de Moisés, o Patriarca, que quando falava com Jeová, lhe cresciam cornos na testa, acima dos olhos, e eu pensava que ele advinhava meus passados, que queria bolir comigo, atasanar meus sofrimentos e minhas vergonhas, até que um dia, resolvi tudo contar, confiante em sua amizade e ele continuou a falar desta história dos cornos na testa de Moisés, penso que para me consolar das saudades da vida sem Emerenciana. Não sei direito! Logo depois de amanhã teremos férias do traballho e decido que vou repetir o que tenho feito: pego o ônibus, e no posto onde ele para para refeições e lanches, meio a estrada, compro mais um caminhãozinho de madeira para Romeu e mais uma boneca para Luzia; Romeu desobedece a avó e brinca e quebra e suja seus caminhõezinhos: transporta chuchus e ovos do ninho da galinha para a cozinha, ameixas amarelas do pé de amora, jambolões do pé de jambolão que tem na beira do córrego: e com isso suja e envelhece seus caminhões e a avó fica brava mas ele não liga sabendo que final do ano ganha outro novo, colorido, maior do que o que tinha; agora as bonecas que compro para a Luzia, não: estão ali, novas, imechidas, cobertas ainda pelo papel celolfone que se desbota do sol. Quatro grandes bonecas com seus olhos abertos, quietas, novas, descoloridas pelo tempo; todas as quatro bonecas colocadas uma ao lado da outra, na prateleira do quarto de Dona Terezinha, se assemelhando a um oratório de santinhas, misturadas com as imagens de Nossa Senhora da Apareecida e de Santa Izildinbha, que ficam pequenas perto das bonecas de Luzia: enormes mais ainda as duas últimas e a última que comprei e que a vendedora na loja me explicou, que tem pilhas e tem um lugarzinho no peito que quando aperta ela fala “mamãe” em uma voz rouca, e também fecha os ohos quando se põe deitada para dormir. Esta de agora que compro no posto a caminho da vila já é a quinta e, Luzia,um dia, talvez, dê nome a todas elas, e vai fazer o bartizado delas, e neste dia do batizado, fazer limonada com limão galego com muito açúcar e por um pouqinho de bicarbonto para parecer soda limonbada que é assim que as crianças gostam: tudo doce, doce, borbulhante!
Do ônibus vejo, pela janela que descubro da corftina de pano azul, as vacas paradas que parecem correndo no sentido contrário ao que estou indo, e também as árvores que balançam suas folhas pela força do vento que o ônibus deixa no ar: lá longe, na frente, bem à frente o morro do Baguaçu: logo chego!

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