terça-feira, 27 de março de 2012

AGOSTINHO E EMERENCIANA–III–A SOLIDÃO.

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Mossoró estacou junto à porta do rancho de pesca do Domingo Franco, beira do Rio Grande, e esperou que seu dono ao apear, desta vez, tivesse o cuidado de tirar os arreios, os freios, e não esquecesse de acariciar o pescoço, alisar as crinas compridas demais, descuidadas, que andavam a precisar de corte.

Agostinho adivinhou o pedido de Mossoró e agiu de acordo: retirou os arreios, os freios e o cabresto, passou as mãos fortes no pescoço do cavalo em um carinho de agradecimento pelos acontecidos, pela companhia e disse em silêncio: ”urge cortar estas crinas, grandes demais Mossoró, vão acabar chamando morcegos para fazer mossorocas nelas. Logo que der eu corto”. Pegou água na cisterna, encheu um balde, lavou a cara, molhou o pescoço e jogou o resto no lombo do cavalo, tirando o suor; olhou para os lados e escolheu o pastinho verde de capim gordura para soltar Mossoró.

Empurrou a porta do rancho, que reclamou rangendo, e se enfiou rancho a dentro: um fogão de lenha feito da mistura da argila da margem do rio com estrume de vaca, montado em cima de um girau de guatambu; ao lado, no canto, tinha os dois giraus para dormir, forrados com esteiras de taboa bem embaixo da janelinha pequena que dá vista para o rio; no teto as telhas enegrecidas de picumã, vindos das cinzas e dos fogos necessários para fazer o café margoso, fritar os peixes pescados, as pacas caçadas e, quando tinha mulher no meio das pescarias, melhor ainda, pois tinha quem fritar o arroz e os torresmos das boas e quentes comidas para a janta ou almoço.

Boas pescarias: melhores memórias.

Viu, da janelinha, o rio com suas águas claras, espumantes em sua velocidade para chegar até o outro rio, depois a outro, até chegar ao mar: ouviu o barulho do rio, sua música e pensou: “a música do rio é mais bonita que a música do mar: tem uma variedade maior de sons, melodias inusitadas melhores de se ouvir quieto do que o ronronar repetitivo da música das águas das ondas do mar”. Conhecia o mar: tinha ido de ônibus, em uma excursão da igreja, com a mulher e os filhos ver o mar, em Santos.

Agora a solidão do rancho!

“Melhor fingir que sou um cachorro sarnento e me por a lamber as feridas. Ver Emerenciana, de volta, vai ser difícil. Sei o porquê ela fugiu com sua trouxa de roupas, levando a menina, logo a menina: porque não levou o Romeu e deixou, para eu ver mais vezes, a menina?”. E logo, arrependeu-se do pensado: “Deus do céu, perdão, sei que é pecado gostar mais de um filho que de outro, não posso ser assim. Mas o motivo de sua fuga, de seu sumiço, depois que andei desconfiado e peguei Emerenciana como o Luís Celeiro, isso eu sei: é uma fuga causada pela minha fama de destemido valentão. Mas aqui, comigo mesmo, não é de agora que sei: é uma fama não verdadeira, que valentão, de verdade, não sou, nunca fui. Fama mais fruto do acaso, me alembro, foi assim: em um dia santo, dia de São José, depois da missa rezada pelo padre que veio da cidade, teve um festival de futebol na vila e eu, com um ou dois amigos, torcendo e torcendo para a taça ficar para o nosso time, o time da Fazenda Olho D’ Água, que ganhava de pouco do Baguaçu. Nisso, com a gente simplesmente ali assistindo o jogo e torcendo, chega junto de nós o filho mais velho da Ganga e berra alto, para todos ouvirem, que queria mesmo saber que se se encontrava por ali homem, homem macho mesmo, com coragem para torcer e dar vivas ao time da Fazenda Olho D’Água, sabendo que ele era nascido e criado em Baguaçu. Provocação pura e eu gritei: “Viva a Fazenda Olho D’ Água” e Marruco, que é o nome apelido do filho mais velho do Ganga, olhou feio para o meu lado: vi que tinha os olhos esbugalhados e vermelhos de pinga e falou que se eu fosse homem repetia e eu repeti: “Viva a Fazenda Olho D’ Água” e ele avançou como um touro bravo para cima de mim. Mostrei força: quando dei por mim estava em riba daquele homem chamado Marruco, minhas duas mãos na goela do maldito, minhas pernas segurando seus braços, e eu, com minhas mãos na goela do touro forçava para esmagar o pescoço duro, ossento, para tampar e não deixar o ar passar do seu nariz para dentro de seu corpo e ele morrer afogado de falta de ar; mas, tudo sem pensar, como disse pouco antes, e quando vi, estava desembainhando o punhal que tinha nas costas, segurando forte com a mão direita no alto, gritando: “te mato seu filho da puta”. Estava com minha mão levantada no ar preparada para descer forte com o punhal e atravessar sua garganta e eu vi que seus olhos, amarelados de medo da morte, olhavam meus olhos, que não sei que cor estava, mas não tinha cor de ódio, porque eu não tinha, naquela hora, ódio nenhum. Sou homem de pouco odiar. E foi ai, comigo sem ódio, mas querendo matar, que senti uma mão forte agarrando meu braço e me arrastando de cima do Marruco: a briga terminou assim, rápida, sem mortes maiores: e eu, depois dela, além da fama de cantador em bailes, de domador de potros, passei a ter a fama de valentão, com coragem de matar gentes, filho de Deus. Por isso sei que Emerenciana fugiu para longe: medo de morrer com meu punhal encravado na garganta cortando a veia grossa do pescoço que é o que eu tencionava de fazer com o Marruco, mas não fiz. E mesmo as depois de muitos anos de casados, com todos os segredos e intimidades trocados nos escuros das noites, ela, Emerenciana, me achava valentão. E continuou a achar, não enxergando minhas covardias e medos, mesmo depois de uma noite, quando morreu Dona Zezé, pobre mulher de um vaqueiro da fazenda do Biba, e eu tive, por amizade com seu marido, de ajudar a carregar o corpo frio da defunta em um pano de colher café, pois dinheiro comprar caixão não tinha, e senti, enquanto carregava o corpo pesado, a cabeça dura e fria da defunta me cutucando, raspado as minhas costas e principalmente quando o caminho era descida, eu carregava na frente, vinha mais peso ainda e a defunta encostava a cabeça por perto da minha bunda; e naquela noite, quando, por medo, eu encostei meu corpo no de Emerenciana ela, acordando do sono, meio dormindo e meio acordada me disse “hoje não , benzinho, estou sangrando”, pensando que eu queria outras coisa e não fugir do medo da defunta, medo de mortos. Disse a ela que tinha medo de defunto e ela respondeu: “bobagem, benzinho: morto tá morto; dorme, temos que capinar o cafezal do tira-prosa amanhã” e benzinho era como ela gostava de me tratar até quando, não sei quando começou, vi que seus olhos, quando olhados pelos meus, furtivamente se desviavam, desviavam, fugiam, me entristecendo por demais por conhecer e saber de seus olhos por demais de claros, transparentes em suas verdades, agora fugidios de mim, por quê? O que será que houve, meu Deus? Mas, ódio não sinto. E, aqui entre nós, penso enquanto lambo minhas sarnas, eu digo que nem mesmo do filho da puta do Luís Celeiro eu tenho ódio. Sei que o desgraçado é fraco perto de minhas forças, mas não quero nem mesmo dar nele uma surra, até de medo de começando a bater, a surrar seu rosto, a quebrar seus dentes com um murro meu, ver seu sangue correr boca afora e eu, desesperado, sem pensar direito, matar. E, matando aquele desgraçado do Luís Celeiro, matando sem muito pensar, sem ódio, mas matando, tenho que matar Emerenciana e sei que, sem ela, não me sobra porque viver: só a morte.”

Tantos pensamentos na solidão do rancho de pesca de tantas conversas, alegrias, cantorias.

“Não sei o que fazer! Sei que sofro da doença dela: do seu amor; pode ser pecado mais amor e falta dela que dos filhos e que Deus do céu, por isso, me perdoe. Não posso, jeito nenhum, matar Emerenciana: ela não devia ter medo de mim, não devia ter fugido com a minha menina, deixando Romeu, eu e Mossoró ao Deus dará, desprotegidos de seu cheiro, de suas bravezas.

Logo chegará a noite escura e o Mossoró, coitado, sozinho pastando capim gordura no pastinho perto do rio; preciso cortar sua crina. Logo que der faço isso: quando? Não sei direito nem o que faço agora, já resolvido que matar não vou.” E a noite chegou escura, sem lua e “acho bom sair um pouco do rancho, ir a beira do rio, ouvir as águas, ver se de repente, em sua música, encontro uma solução; e ouço as águas, agora, chumbosas e negras, descoloridas pela escuridão da noite, mas velozes indo deste para o outro rio, depois estas mesmas águas que agora passam aqui, vão para outro rio ainda maior até chegar no mar e lá se misturar com a água salgada e perder sua vida de água não salgada: será que é a mesma água? A água que aqui é sem sal, doce como se diz nos livros, e que chega lá em Santos, no mar, se junta a outras águas maiores, salgadas: será que perde o seu doce? Continua doce meio ao mundão das grandes águas salgadas do mar? Doce mesmo, como se diz nos livros, não é: para ser doce tinha que se que por açúcar para tomar e acalmar as raivas: quanta besteira minha, tanto problemas e eu ficar pensando se a água doce que passa aqui agora fica salgada lá no mar de Santos, se é a mesma água: mas de pensar eu gosto, me distraio e esqueço de tantas agruras, tanta dor. Sofro da doença Emerenciana.

O céu negro, pingado de estrelas pequeninhas, sem calor e quentura: não pode ser que o sol seja uma estrela de tanta luz, tanto calor e claridade: as estrelas são mais beleza de se pensar, de enfeite, sem utilidades práticas de aquecer.

E desde há mais de uma hora que não consigo lembrar o nome de minha filha menina: castigo de Deus? Não perceberam que em meus pensamentos que tenho pensado, sempre chamo a menina de menina, minha menina! e vejo seu sorriso, seus cabelos corridos nos ombros, seus olhos negros como os da mãe, a não oferecer segredos; quero lembrar seu nome e gritar por ela, não chamar de menina, mas, Deus do céu, não lembro seu nome: mais um castigo, por quê? Melhor ir dormir, esquecer um pouco de tanto pensar: morrer a morte fingida do sono.”

As costelas estendidas sobre a esteira de taboa na cama sentem a dureza dos paus de guatambus que teimam em atritar com os ossos das costelas das costas magras de Agostinho, mas, ele dorme.

3 comentários:

profeta disse...

Caro Professor Orlando: Muito bom seus textos ... Criativos, inspirados e instrutivos ... voltarei oportunamente a lhe escrever
forte abraço
nicodemos rocha

profeta disse...

Caro Professor Orlando: Muito bom seus textos ... Criativos, inspirados e instrutivos ... voltarei oportunamente a lhe escrever
forte abraço
nicodemos rocha

Orlando disse...

Olá Rocha:
Obrigado pela visita ao blog!
Grande abraço,
Orlando.