segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

A HISTÓRIA DE JURANDIR SEREBURÖIII–A LUA DO HÖ

2009 Caminho da fé 027rtoc

Acordei com a chegada do sol e fui ao rio banhar-me.

Ali no rio, banhando-me, resolvi que aquela seria a lua do meu Hö, o rito de minha passagem.

Tinha então que sair à procura de urucum tanto para arrumar tinta para pintar meu corpo como para fazer, com um galhinho fino e duro, um artifício e com ele furar minhas orelhas. E assim, pensando nisso, que sai meio sem rumo, margeando a beira do rio até que bem longe, por onde ainda não havia passado, foi que avistei uma lagoa todinha rodeada de densa mata.

Deixei a margem do rio para alcançar a lagoa. E nela vi, em seu fundo, traíras enormes nadando e procurando comida no fundo escuro, fazendo confundir seus corpos negros com a lama. Tentei e tentei flechar uma mas não consegui e penso, agora, que as flechas desviavam de rumo pela fundura da lagoa.

Desisti e saí pela mata que arrodeava toda a lagoa a procura de urucum. Os matos e os cipós espinhosos dificultavam o caminhar e o sol, por causa de tantas e copadas árvores, não conseguia chegar ao chão: sob o forte calor úmido meu corpo se derramava de suor. E, assim suado e receoso de me perder naquela mata quente e escura ou de ser picado por cobra, dei de cara com uma moita de timbó. Onde tem timbó não tem cobra e me veio uma coragem forte: me embrenhei pela moita de timbó adentro e clareou em meu pensamento: me perder? Impossível! Me perder do que? Não tinha de onde.

E continuei assim pensando e resolvi então que a minha janta seria a traíra teimosa que resistiu, na lagoa, às minhas flechadas. Colhi um feixe de ramos de timbó e sai da mata, disposto a, quando começasse a anoitecer, ir à forra com a traíra que há pouco que me vencera.

No caminho de volta para minha oca voltei a pensar em meu Hö. Comeria traíra, pintaria meu corpo com urucum e furaria minhas orelhas.

E fui para a margem do rio e com a fina ponta de uma flecha iniciei o doloroso processo de furar uma orelha. Na tribo de minha mãe essa era uma tarefa dos pais que executavam em seus filhos sem pena nem dó. Quando era necessário - por resistência do jovem pelo medo da dor - um tio ou um amigo , nunca uma mulher, vinha à ajuda do pai: agarrava o jovem pelos pelo pescoço e pelos ombros imobilizando-o para que o pai, com um ramo fino de urucum, furasse sua orelha; claro que para os mais velhos, aquela resistência do jovem, era já um sinal de que ele não seria um bravo guerreiro e que seria vencido nas lutas que teria que enfrentar pela frente, durante as cerimônias do Hö.

Eu, em meu Hö, não teria adversário para as lutas nem pai para furar minhas orelhas. Meu Hö seria, mais tarde eu viria a descobrir, a minha passagem para toda uma vida solitária.

Sem dó e sem grito peguei uma orelha, estiquei o tanto que dava e meti a flecha até atravessar: jorrou sangue que se misturava com a água clara do rio. Pequenas piranhas e lambaris, chamados pelo vermelho do meu sangue, vieram até a margem e, penso, beberam um pouco de mim naquela água tingida de vermelho.

Doeu muito, mas não chorei, resolvido que estava a não mais chorar.

Voltei para a oca, comi araticum, restos da paca que assara e iniciei o preparo do timbó para a pesca da tarde: para isso, recolhi, perto da oca, duas pedras com as quais amassei bem os galhos de timbó para facilitar a saída do veneno que faria morrer a traíra da lagoa.

Ansioso, esperei que o sol iniciasse a se esconder à margem da lagoa.

As traíras continuavam a nadar no fundo buscando comida para encher o seu corpo negro e liso. Entrei na lagoa e, quando a água chegou no peito, choqualhei e bati as varas amassadas de timbó nas águas da lagoa: fiz bastante barulho com os galhos de timbó e cantei canções que havia aprendido nas caçadas que havia feito com os meninos da tribo de minha mãe; nessas caçadas cantávamos canções que estes meus amigos haviam aprendido quando caçavam com seus pais.

Cantei alto!

As águas da lagoa , surpresas em seu silêncio pela cantoria que eu cantava e pelo chocalhar dos galhos de timbó, acordaram e soltaram borbulhas e acordadas de seu não nada fazer, criaram pequenas ondas que chegavam às suas margens bolindo com os galhinhos e matinhos que a rodeavam. Estes, então, felizes, dançavam ao sabor da novidade das ondas que nunca haviam visto.

Uma traíra negra boiou na superfície da lagoa. Em minha pressa de apanhá-la, trunfo de minha vitória, escorreguei em um tronco e me afundei nas águas, agora borbulhentas, da lagoa. Como sabia nadar muito pouco bebi água. E assim, tossindo e vertendo água pelo nariz e pela boca, foi que agarrei a traíra que, meio morta, boiava sobre as águas borbulhantes e escuras da lagoa: para mim a negra e lisa traíra representava o troféu na vitória das lutas que não enfrentaria em meu Hö.

A traíra era enorme: negra, lisa, escorregadia, olhinhos pequenos e mostrava seus dois bigodes grandes que saiam de cado lado da boca cheia de dentes que pareciam serrote.

Mas foi então que - eu com a água chegando no meu peito, no fundo da lagoa - comecei a sentir em todo o meu corpo uma zonzeira e um desiquilíbrio: o mundo começou a girar em minha volta, as árvores entravam lagoa adentro, as traíras pulavam altas ondas, os galhos de timbó passaram a ter vida e, por conta própria, babavam uma baba pegajosa na água da lagoa e dentro de minha boca indo até minha garganta. Catei a traíra, e completamente aturdido, ajeitei o arco e as flechas em minhas costas e saí, bêbado de ter bebido água misturada com timbó, da lagoa em busca da margem do rio.

E tive o meu primeiro medo de morrer!

Chegue na pequena praia completamente exausto e tonto: meu corpo não obedecia meus pensamentos, e meus pensamentos eram incompreensíveis para mim. Deitei na areia com a traíra ao meu lado e deixei o mundo girar com mais força. Uma sede de água limpa invadiu meu corpo e, obedecendo ao que meu corpo pedia, me arrastei pela margem a procura de água.

Estava escuro: a lua do meu Hö era a lua nova.

Bebi água limpa do rio e me agarrei a um tronco de pita que, como eu, estava caído á beira d’água.

Dormi.

Acordei, assustado, no meio do rio, agarrado ao tronco de pita que me ajudava a boiar. Meus pés não alcançavam o fundo do rio e sua forte correnteza me arrastava. Me afundei mais uma vez, bebi água e então, desesperado, me pus a nadar, batendo forte os braços e as pernas, fugindo sem saber do que, buscando uma margem que não sabia qual; procurava, agora, com todas as minhas forças e livre da tontura que tanto me havia atormentado, a margem mais próxima, não importa qual fosse, mas que levasse para longe de mim a morte, que mais uma vez eu via.

E, agarrado ao tronco de pita, na escuridão da lua nova do meu Hö, nadei desesperada e fortemente até sentir meus pés tocando a terra. Exausto, me pus então em pé e caminhei para uma margem até encontrar terra firme, uma areia úmida onde me deitei e, como um cachorro amedrontado, me enrolei sobre mim mesmo, me arredondei em um buraco e adormeci.

Acordei com o sol forte às minhas costas.

Tinha comigo minhas flechas, meu arco e minha faca. Perdera a traíra, onde eu não sabia.

E me peguei a pensar em que lado do rio eu estava: do lado da tribo de minha mãe? ou do outro lado, o “meu” lado, o lado de lá?

Resolvi então em subir em um pé de buriti e lá do seu alto, perto das estrelas que furavam o teto do mundo, enxergando o mais longe que meus olhos pudessem, descobrir de que lado do rio em que eu me encontrava. E sorri ao pensar que poderia, no alto das folhagens do buriti, encontrar uma jovem ...

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