sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Joachim

 

DSC04271Era uma manhã de céu plenamente azul com o sol aquecendo as costas; olhei para o norte e avistei, bem lá longe, as montanhas cantábricas, descansando um pouco a mente de dias e dias - creio que foram uns cinco ou seis - caminhando pela “meseta”, onde predominou o retão. Na região da “meseta” só se enxergava a longa e infinita planície: para todo lado que você olhasse - seja para o norte, para o sul, para o leste ou para o oeste – o que se via era, até o horizonte a planície se encontrando com o céu: nenhuma montanha, nenhum morro, nem mesmo um pequeno bosque surgia à vista para oferecer um pouco mais de movimento á solidão dos páramos espanhóis.

E foi então naquela manhã que, ao enxergar, ao norte, as montanhas cantábricas e sentir o calor do sol às costas, o peso da mochila e a dor da bolha que havia se formado e que ardia no dedo minguinho do pé esquerdo deixaram de incomodar e me peguei, no Caminho de Santiago, cantando e cantando.

Assustei-me quando ouvi:

- “Que língua é esta em que está a cantar? Pergunto e já respondo um pouco: sei que é uma língua latina, mas não é espanhol e também não é português. Mas, antes, um bom dia e um bom caminho.”

- “Bom dia. Estou cantando em português...”, não terminei a frase e fui interrompido.

- “Português? Mas não o de Portugal, não é mesmo?”

E caminhei toda aquela manhã com o Joachim, da cidade de Hamburgo, sessenta e oito anos, alto como os alemães costumam ser, farta cabelereira branca sob o boné de abas largas e um enorme bigode, todo branco, retorcido em suas extremidades cobrindo os lábios superiores; me ative com atenção ao bonito rosto e percebi a pele alva, sem as manchas típicas de nossa idade, barbeada com esmero. Apenas as rugas denunciavam a idade em um rosto que revelava o dono: bem humorado, inteligente e um pouco desconfiado ou descrente dos mundos, dos homens, sei lá!

E ocorreu comigo uma situação estranha, irreal: enquanto parlamentava, olhava o rosto, as mãos e ouvia a voz metálica de Joachim senti, ou melhor, tive a certeza de que já o havia encontrado outras vezes, mas, onde?; já havia falado com ele e, mais que isso, uma sólida e forte amizade já havia ocorrido entre nós.

E, por conhecê-lo, adivinhava as respostas que daria às minhas perguntas, previa suas esquivas a outras perguntas; conhecia, de há muito tempo, aquela voz. Mas, de onde?

Aquela situação me fez lembrar um amigo que disse-me, certa vez, em uma mesa de bar – temos que relevar o fato de já havíamos bebido bastante - que em uma sua primeira e única viagem à Índia reconheceu lugares, sentiu cheiros, como se já tivesse por lá, antes, passado. E passou?

E agora, já velho, vivido, confesso que me sentia incomodado com a situação em que me encontrava e desconfortável em obter, sem que Joachim desconfiasse, informações para confirmar nossos encontros anteriores; sentia-me como um padre fazendo perguntas capciosas na busca de pecados escondidos. Desconfortável, admito, mas incontrolável a necessidade de reconhecer, de saber com quem eu falava.

E Joachim, tagarela, outra característica que confirmava minhas suspeitas, atende a minha pergunta:

- “Onde aprendi espanhol? Lendo, manuseando dicionários e ouvindo zarzuelas. Conhece zarzuela? Não? Oras, zarzuela é um gênero musical operístico espanhol, que infelizmente foi abafado pelo sucesso da ópera italiana ou francesa. Gosto muito. Já ouviu alguma? E não estranha, você, um alemão com o nome de Joachim?”

Entendi sua resposta como uma pista para eu entender o que estava a ocorrer e fui firme:

- “Bem, posso dizer que já conheci outro alemão chamado Joachim, o primo de Hans Castorp; o soldado Joachim a quem Hans foi visitar em Davos, onde o mesmo se tratava de uma doença pulmonar...”

Fui interrompido com uma gargalhada:

- “Sei, sei...Está é querendo me contar que leu a “Montanha Mágica, não? Um belo livro; também gostei muito. E já que você conhece o Joachim e o Hans Castorp eu te pergunto: conhece também o Adrian Leverkhün, do belíssimo Doutor Fausto, um outro filho da infinita família de Thomas Mann?”

Percebi claramente, àquela hora, que Joachim sabia de minhas intenções e que minha busca a tão irreal encontro não o incomodava; talvez estivesse, pensei, tão curioso quanto eu em confirmar que eu era eu.

E claro que sua pergunta, investigando meu conhecimento sobre Adrian Leverkhün, foi intencional, forçando-nos a falar de música e, com isso, fazer com que nossas preferências musicais viessem à tona. E seu entusiasmo por Schöemberg o denunciou. Tive, a partir dali, a confirmação das certezas anteriores; agora a certeza era absoluta: conhecia, e muito, Joachim.

Sempre fui, e principalmente na mocidade, fascinado pelos contos e filmes que narravam as visões que as pessoas tinham nos desertos áridos e sem vida: nos infinitos areais ensolarados, com insuportável calor e sede profunda surgiam as visões de lagos, de águas claras, de odaliscas dançando com o umbigo à vista, o véu cobrindo o rosto e deixando desnudas as lindas e morenas pernas torneadas sob coqueiros verdes e suas sombras. Oásis na secura da vida. Mas, e agora, Deus do céu, aqui, em pleno páramo espanhol, o que está ocorrendo? Será que aos sessenta e sete anos, vou ter minha crença na descrença em outras vidas, em outras almas, colocada a prova? Será que, como um antigo cristão, um Paulo ou um Agostinho, terei, agora, a fé em minha vida ateia e materialista colocada em dúvida?

Impossível.

Meu amigo Dirsom faleceu já há quatro anos, no Brasil, em São Paulo; certeza absoluta: fui ao velório e ao seu enterro no Cemitério dos Ingleses, em Pinheiros. Revi amigos comuns em sua missa de Sétimo Dia, celebrada por um pastor anglicano, seu amigo.

Como posso, então, reencontrá-lo aqui neste caminho de Santiago?

Joachim é Dirsom?

O mesmo bigode retorcido, a pele clara com pequeníssimas veias azuis desenhando figuras abstratas em seu rosto, o infinito entusiasmo por música, pelo estudo de línguas, sua eterna busca do belo?

Mas explicando melhor para não confundir aos que escutam esta história: conheci e me tornei amigo do Dirsom, há muito tempo atrás, ainda no início de minha vida profissional, coisa de mais de quarenta anos. À época, trabalhava em uma empresa estatal, e foi meu superior hierárquico quem falou-me do Dirsom, que conhecia e do qual tinha excelentes informações e lembranças e do interesse do mesmo em compor nossa equipe. Estava, Dirsom, voltando dos Estados Unidos, para onde tinha ido com a família, em exílio forçado pela ditadura militar que comandava o Brasil.

Entrevistei-o, falei dos projetos que alimentavam nosso trabalho e senti seu entusiasmo. Rimos muito, mais tarde, é claro, após a amizade tão construída, de sua necessidade de aproximar o papel aos olhos para ler, de sua miopia profunda e de sua quase cegueira que o impedia, como eu, de se deliciar dirigindo motocicletas por estradas e ruas.

E também, além de míope, era daltônico e vou contar um episódio que ocorreu em seu processo seletivo. Tínhamos na empresa, um psicólogo baixinho, moreno, seríssimo e profundo crente nos testes que aplicava aos candidatos a emprego. Mandou me chamar à sua sala onde estava com Dirsom e todo compenetrado:

- “Olha este rapaz, o Dirsom, é daltônico, veja”, falava ao mesmo tempo em que pedia a Dirsom que, com o dedo indicador, seguisse os números que havia em uma colorida prancheta de papelão. E, Dirsom, obediente á ordem do psicólogo e às cores da prancheta “desenhou” o número dois; e “somente” ele via naquele emaranhado de bolinhas coloridas da prancheta o número dois que ele fazia com o dedo indicador. Enfim, “o candidato é daltônico, o que é um complicador do ponto de vista...”

Interrompi o psicólogo:

- “Ótimo: ainda bem que ele não é candidato a condutor de trens e, mesmo que o fosse, não há semáforos na linha. Há outro ponto que julga importante para eu levar em consideração?”

Décadas depois deste episódio, do qual eu havia esquecido totalmente, o amigo o relembrou ao contá-lo ao maestro da orquestra que, por iniciativa de Dirsom, havia nos aproximado novamente para, juntos, desenvolver um trabalho que unia paixão pela música, uma certa experiência administrativa, fruto dos cabelos brancos do Dirsom e pela minha calvície, alguns poucos conhecimentos técnicos e uma alta dose de voluntarismo. Mas, o que importa, nesta história, foi o nosso reencontro neste trabalho; depois de mais de trinta anos a orquestra nos reaproximou fisicamente, reafirmou nossa antiga e sempre presente amizade em um prazeroso trabalho.

E mais surpresas ocorriam. Sabia de sua paixão pela música, mas não sabia que era um excelente pianista. E, soube dessa sua qualidade, não por ele, mas sim pelo “spalla” da orquestra: “Dirsom não se tornou músico profissional por absoluta falta de interesse”; e o inquieto amigo Dirsom, no momento, andava entusiasmadíssimo com o curso de violoncelo que andava a fazer.

Mas, mais surpresas! Em uma manhã, tomando café na sala da orquestra, sabendo do meu entusiasmo por Guimaraes Rosa perguntou-me a respeito do belíssimo e de certa forma inacabado conto “Meu tio o Iauaretê”. Estranhei a pergunta –Dirsom não se interessava por literatura brasileira - e obtive a resposta: teria que fazer a tradução do conto para o alemão. Estava terminando o curso de alemão no Instituto Goethe.

Prometi ajuda. Chego em casa e releio o conto.

Deus do céu, missão impossível: no conto são tantos os “n’t”, tantos os “pimenta, hã...Nhem? À-hã, é, tá escuro”, como traduzir isso para o alemão?, pensava. E, enquanto lia, mais duvidava: será que dá para traduzir “Tá bom, dei’stá. Pesei que mecê queria ser meu amigo...Hum. Hum-hum. É. Hum. Iá axi. Quero canivete não”, ou ainda “Muita pimenta, hã...Nhém? À-hã, é, tá escuro”, ou mesmo, mais simples, deve ser traduzir “cê pode ficá aqui”. E, claro, nos divertimos muito com o índio Iauaretê rosnando, bravo, em alemão. Além do alemão, que, com esta tradução eu tinha certeza Dirsom dominava como poucos, tinha o inglês, o latim e fiquei pasmo quando, no caderno mensal da programação da orquestra, vi seu nome assinando a tradução do francês de trechos de uma ópera que seria apresentada pela orquestra e uma belíssima soprano eslava.

E agora vem o Joachim me dizer que aprendeu espanhol ouvindo zarzuelas e manuseando dicionários? E o timbre de voz: igual.

Acordei!

Já fazia mais de dois meses que havia chegado em casa, depois de ter percorrido o Caninho de Santiago, e foi a primeira vez que sonhei com o Caminho depois de tê-lo realizado.

Foi um bom sonho!

2 comentários:

Orlando disse...

Olá Tonhão,
Meu blog anda meio complicado. Tentei fazer uma correção no texto e não fui bem sucedido..mas seu comentário chegou são e salvo. Abração.

regina disse...

Orlando,
muitas emoções ao ler seus textos.
Dá uma vontade danada de estar com suas personagens.