quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS - 7 - A FANTÁSTICA HISTÓRIA DE BOADICÉIA E CARÁTACO–III–FINAL: O SONHO

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Cebreiro, uma pequena e por demais de linda aldeia medieval, com seus vinte e nove habitantes - “o Orlando está mesmo velho, agora deu de esquecer-se de escrever os mil na frente dos números”, dirão os mais apressados e eu respondo “não, não me esqueci, não: são realmente vinte e nove habitantes e não vinte e nove mil” - fica em um dos pontos mais alto do Caminho: quase mil e trezentos metros. E esta pequena aldeia possui uma muitíssima bem conservada igreja construída no século nove: toda de pedra, o que lhe dá um aspecto de solidez, parecendo querer confirmar sua perenidade, elegante com suas portas em arco, sua torre majestosamente simples, seus sinos de bronze badalando a cada hora do dia. Aliás, outra memória inapagável do Caminho são os sinos das igrejas teimando em nos contar, com suas badaladas, as horas do dia ou da noite; e assim, como nos tempos em que ouvia as badaladas do sino da igreja matriz da pequena cidade onde nasci ou mesmo, ouvindo pelo rádio o "dém", "dém", "dém" dos sinos do Mosteiro de São Bento anunciando à hora certa, me peguei, várias vezes, neste Caminho de Santiago, contando com a ajuda dos dedos das mãos as badaladas dos sinos e conferindo, mentalmente, qual era a hora do dia ou da noite em que eu estava a viver.


Do Albergue Municipal de Cebreiro construído em estilo montanhês, um pouco fora da vila, grande e confortável com mais de cem camas, a vista é belíssima; se vê, abaixo, um “mar” de montanhas: sinuosas, verdes, negras, recortadas por estradas, aqui e ali pingam brancas construções isoladas apontando que há vida naquela imensidão de mundo. Toda esta bela visão, me disse um velho peregrino japonês, que fazia o caminho pela segunda vez, é, normalmente, coberta, por uma grossa, branca e densa neblina, o que não ocorria naquele dia, àquela hora, em que tudo se enxergava, se via longe, quase o infinito.


Cheguei a Cebreiro após haver caminhado por volta de trinta quilômetros, distância entre esta vila medieval e Villafranca De Bierzo onde havia pernoitado; o cansaço, ao chegar a Cebreiro, se explica tanto pelos trinta quilômetros caminhados, como pela diferença de altitude entre estes dois pontos percorridos: mais de oitocentos metros.


Resumindo para não cansar e encompridar desnecessariamente a história: cheguei cansado a Cebreiro.



No Albergue Público, um banho restaura, em parte, as forças e o “menu do peregrino”, a nove euros, na Mesón de Anton, completa a restauração e me enche de ânimo para passear pela vila, conhecer a igreja e uma casa, do século IX, meticulosamente restaurada e que funciona como um “museu” antropológico, forçando nossa imaginação até a vida que levavam há séculos e séculos atrás os seus habitantes; e devia ser uma vida de permanente luta: de um povo em busca contínua por alimentos, na labuta para manter crepitando a lenha no fogão para cozinhar seus caldos e se esquentar durante os longos invernos gelados, cheios de neve.



Depois do passeio pela vila, voltei ao albergue disposto a cumprir a obrigação de lavar minhas roupas, mas, e mais uma vez tem o “mas” nestas minhas andanças, a preguiça, talvez fruto do cansaço, me levou para a cama: dormi e sonhei.



Vou contar o sonho, que foi assim:



Encontrávamos, em meu sonho, Boadicéia, Carátaco, Kretzschamar com seu cachorro “Joselito” e eu sentados no chão, descansando sob a sombra de uma enorme uma enorme árvore; próximo a nós corria um caudaloso rio e ouvíamos deliciosamente concentrados, a Dança Ritual do Fogo, trecho primitivo e bárbaro do El Amor Brujo, de Manuel de Falla.



Percebi que mesmo durante tão concentrada audição, Joselito, por ser cachorro e por isso, talvez, não gostar de música, mostrava-se inquieto, e que em dados momentos não se continha em sua ansiedade e uivava, apontando com o focinho negro para as altas montanhas vermelhas, esburacadas em seus picos por cavernas imensas. E foi então que, inesperadamente, todos nós, ao mesmo tempo, pensamos a mesma coisa e fomos decididamente conduzidos até as cavernas pelo gordo Carátaco, com o cão Joselito à frente de todos.



Em meu sonho Boadicéia carregava seu enorme cajado, enfeitado com flores de todas as cores e tamanhos; Carátaco vestia suas roupas apertadas, a barriga querendo sair para fora, calçava sandálias de couro que deixavam à mostra seus dedos gordos e suas unhas compridas; o jovem suíço vestia-se como um típico peregrino: calças e jaqueta cinza da Solo, botas Salomon, e carregava, às costas, sua enorme mochila Deuter. Não lembro como eu me vestia, mas devia ser com uma das minhas duas “mudas” de roupa que usei para percorrer o Caminho.



E assim que chegamos às cavernas, parecidas com enormes bocas abertas no pico de uma enorme e gorda montanha vermelha, o dia se transformou em noite. E escureceu. Para nos aliviar da escuridão que parecia um breu, Boadicéia tirou de uma sacolinha de veludo, presa a sua cintura, toda bordada com lantejoulas, seis vaga-lumes, e ofereceu dois para cada um de nós. Tirou, depois, do fundo da mesma sacolinha de veludo bordada com lantejoulas, uma boa quantidade de lacraias e, com elas, fez um colar para o Joselito.



Para melhor entendimento do sonho que estou a contar vou precisar abrir parênteses e falar da diferença entre o que chamo de “lacraia” e o vaga-lume. Erradamente, agora eu sei, em minha infância chamávamos de “lacraia”, um besouro que é, na verdade, apenas outra espécie de vaga-lume. Explicando: caçávamos e brincávamos com dois tipos de vaga-lumes: um, o maiorzinho, que lembra mais um besouro compridinho e dispõe de dois “faróis” que permanecem sempre acesos à noite e outro, que chamávamos “lacraia”, mas vim, a saber, quando estudava no ginásio, que era também um vaga-lume; esta espécie, a “lacraia”, tem no abdome órgãos luminescentes que ficam a piscar. Tanto o vaga-lume com os dois faroizinhos na cabeça quanto o que ficava piscando na escuridão da noite, nós caçávamos balançando tições acesos e cantando: "vaga-lume tém tém seu pai t’áqui sua mãe também"; e assim enchíamos vidros com os vaga-lumes que tinham os faroizinhos na cabeça. Já “lacraia”, menor, que ficava piscando no escuro, e lembrava um marimbondo, pegávamos e esfregávamos com força o seu abdome em nossas camisas ou no peito e assim, escrevíamos nomes ou desenhávamos figuras que brilhavam à noite.



Os vaga-lumes maiores ficavam presos nos vidros por uns dias até que nossas mães, penalizadas com a sorte dos bichinhos, nos obrigavam a soltá-los no brejo, perto do cemitério; tinham, portanto, melhor sorte que as lacraias que eram espremidas e mortas para enfeitarmos nossos peitos ou nossas camisas com rabiscos que logo se apagavam a sua fosforescência. Fecham-se os parênteses.



E então, com a claridade dos vaga-lumes em nossas mãos e do pisca-pisca do colar de lacraias no pescoço de Joselito, fomos entrando na primeira caverna, guiados por Carátaco. Em fila indiana fomos nos enfiando caverna adentro e encontramos um enorme salão, com pé direito altíssimo, e que tinha em suas beiradas, junto às paredes da caverna, bancos de barro cobertos com almofadas de seda, convidando ao descanso. Joselito, agora, calmo, passeava pelo salão da caverna, tudo farejando, com seu colar de lacrais piscando, parecendo uma moderna árvore de natal. Kretzschamar sentou-se em uma beirada da sala e iniciou, ritualmente, a preparação um de seus cigarros que passou a fumar impregnando a sala com o cheiro amargo da fumaça de maconha, inebriando a todos.



A sala da caverna cheia de fumaça e com o pisca-pisca dos vaga-lumes no pescoço do Joselito me fazia lembrar os antigos inferninhos da Rua Aurora.



Kretzschamar passou seu cigarro para Boadicéia, tirou de dentro de sua mochila uma flauta doce e começou a tocar.



E ao som da melodia simples, primitiva, Boadicèia se pôs a fumar, a dançar e a cantar: - - “Meus avoengos se aventuraram do Reno até os sopés dos Pirineus; nem as tão altas e espinhosas montanhas os detiveram, e a Hispânia não resistiu à força e a coragem de nossos ancestrais germanos.” Dançava sensualmente, passos lentos, pronunciando cada palavra com os lábios abertos, dentes brancos à mostra, seios arfando no peito, obedecendo ao ritmo da melodia, pescoço erguido, olhar desafiador, convidando-nos à dança, à orgia.



Foi quando a melodia tão simples e primitiva da flauta do jovem suíço foi repentinamente substituída por outra melodia: esta pírrica, que com seu ritmo forte, inundou a caverna com sons de tambores e de tubas; Carátaco, contagiado pela música, levantou-se do banco e demonstrando uma agilidade incrível para corpo tão pesado e gordo iniciou uma dança estranha, bela, e cantou desafiando Boadicêia:



- “Vocês germânicos e mouros tomaram e devastaram nossa terras, nossas casas, nossas mulheres, nossas vidas; nem a oferenda de todo nosso ouro e de nosso sangue foram suficientes para a sua retirada; e nos escravizaram, a nós e aos nossos filhos e aos nossos reis; mas Deus, fez surgir Roldan e El Cid, que conduzidos por um exército de anjos, nos libertou”



E no meio do salão da caverna Carátaco e Boadicéia se uniam na estranha e sensual dança e foram, aos poucos e delicadamente, despindo de suas roupas, mostrando corpos tão diferentes em sua beleza: a esbelteza rígida do corpo de Boadicéia se misturando às gorduras das banhas do enorme corpo de Carátaco.



Boadicéia disse: “Carátaco: segundo um escritor português, quando a península se deslocou do continente e se transformou em uma enorme jangada de pedra, um grupo peregrinou por aqui, por perto dos Pirineus. E naquela longa viagem que empreenderam na jangada foi gerado uma criança, fruto do amor de um velho com uma jovem. E é o que quero, agora: um filho seu! E saiba que este seu filho não ficará os longos nove meses em meu ventre, mas sim e apenas os nove dias que faltam para eu caminhar até Santiago, onde a criança nascerá.”



E abraçou fortemente a Carátaco que correspondeu ao seu abraço. Respeitosamente todos os vaga-lumes fecharam os olhos de seus faróis e a sala ficou iluminada apenas pelos piscares das lacraias envoltas no pescoço de Joselito.



O som de amor emitido pelos amantes misturou-se à fumaça e ao silêncio da flauta doce, agora muda no colo do peregrino alemão.



E um silêncio sepulcral tomou conta da sala: tão silêncio que era possível ouvir as batidas de nossos corações e os seus pulsares misturados às nossas respirações ofegantes. Descansados ficamos a ouvir o silêncio e a enxergar o breu da escuridão até o momento em que os vaga-lumes foram abrindo novamente seus faróis e a luz, no início fraca, inundou toda a sala e me vi a cantar:



“Ai clariô ai ai clariô


Ai clariô ai ai clariô



Ai clariô ai ai clariô



Purriba do lajedo o luá chegô”.



E enquanto eu cantava e assobiava e dançava a canção do Elomar, a luz da lua invadia a caverna forçando a todos a cerrar os olhos, tamanha a imensidão de claridade; e os vaga-lumes e as lacraias, que gostam da escuridão, voaram para fora da caverna e voltaram a acender seus faróis e seus pisca-piscas lá fora, indicando o caminho que deveríamos percorrer depois, na volta para a cidade.



E então foi que acordei com a intensa luz do sol das sete horas da noite invadindo as janelas do albergue e incendiando os meus olhos com sua claridade e calor.



Acordei, esfreguei os olhos, espreguice-me e assim acabou-se a história e morreu a vitória.

Um comentário:

Rafael disse...

Adorei as três partes da história, Orlando. Lindas, tocantes, profundas.
Me transportaram de verdade para esses lugares míticos do Norte da Espanha. Obrigado, amigo!