segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A BROCHURA DO LOUCO OROZIMBO: A história de Durvalina


O verão já chegara.
O ipê amarelo perdera as flores e estava, agora, carregado com suas folhas verdes pardas, ásperas, mas que funcionavam com um bom guarda-chuva, protegendo, do sol quente do meio dia, o banco do jardim, no qual me sentava após o almoço, para ler e fumar. De verdade, penso que ler e fumar talvez fosse a desculpa, sem motivo, inventada por mim, para o encontro e as palestras com Orozimbo, que chega faminto por fortes tragadas.
Fumamos e, já pensando na troca que faria, leio para ele:
“Meio século não se passa em vão. Sob nossa conversa de pessoas de leituras misturadas e gostos diversos, compreendi que não podíamos nos entender. Éramos diferentes demais e parecidos demais. Não podíamos nos enganar, o que torna difícil o diálogo. Cada um de nós era o arremedo caricatural do outro...porque o inevitável destino dele era ser o que sou.”
Orozimbo toma de minhas mãos O Livro da Areia, do Borges e me entrega sua brochura; percebi que desenhara, com sua caneta de pena, um par de óculos sobre os olhos do Duque de Caxias, que assim, de óculos, ficou mais sério, o Patrono do Exército Brasileiro.

DURVALINA: ACABOU-SE A HISTÓRIA, MORREU A VITÓRIA.

Mas, Deus do céu, onde foi parar o tatu galinha?
Sumiu, o desgraçado? Será que esqueceu seu compromisso de buscar-me para meu retorno de volta à luz? Ando já cansado do escuro e da umidade das profundezas do cemitério e querendo, muito, ver de novo o sol. Resolvo que a melhor maneira de esperá-lo é conversar com a Mariquinha Precata. Vou até seu canto!
Como sempre está lá a Mariquinha, toda encolhida, costas curvadas, magérrima, e me faz pensar: “não sei como deu certo em sua profissão: feia demais para ser puta”.
- Me conte, Mariquinha a história de sua irmã Durvalina?
- Conto sim, Orozimbo. Mas para não encompridar ainda mais esta história, vou contar para você partindo do fim, e assim, vejo se, hoje, termino. Pois aconteceu que Durvalina, sabendo dos meus finalmente de vida, veio me visitar, palestrar comigo, fazer a última visita. Você sabia, Orozimbo, que foi ela que ficou comigo na hora da minha morte, segurando em minhas mãos, rezando terço baixinho, pedindo a Deus e a Santa Luzia pela minha alma? Boa demais minha irmã Durvalina. Então foi assim que ela me contou:
- “Pois então, Mariquinha, moramos lá na Santa Generosa, eu e Oscar, por trinta e tantos anos. Já no segundo ano de morada por lá o Patrão nomeou Oscar, como vaqueiro: isso dava a ele toda a responsabilidade pela fazenda, desde tarefas mais simples como cuidar do trabalho e do pagamento dos colonos e dos peões até trabalhos mais difíceis e honrosos como contar e vender, todo ano, lá pelo mês de setembro, a boiada, receber o dinheiro pelas vendas e zelar por ele até hora de entregar ao patrão. De bom, além dos pagamentos, a cada quatro bezerros que nascia um era dele. No início, quando tínhamos a certeza de muitos filhos e filhas, oferecíamos aqueles bezerros aos futuros: este vai ser do Luís, aquele outro da Luzinete, o tourinho bravo, cujo nome é Cigano, será do Justino...Filhos não tivemos: nada, providência nenhuma – e foram muitas as tentativas - conseguiu apagar a praga de secar meu bucho, jogada, em mim, pela patroa. “ Que fazer: Deus quis assim “, dizia Oscar;” desgraçada, filha d´uma égua “, pensava eu. Mas enricamos, Mariquinha: muitos bezerros e bezerras, porcos, galinhas, arroz, milho, mandioca...tudo com fartura a ponto de sobrar para vender. E foi daí, não sei se você ainda se lembra, Mariquinha, mas sabe aquela fazenda quase em frente a do Patrão, chamada de Boa Vista? Então: o governo desapropriou, dividiu em alqueires e distribuiu entre os moradores da região que não tinham terra. Seu Alfredo, pai de Oscar, e dona Ana, sua mãe, ganharam dois alqueires e para lá se mudaram. Com o dinheiro da venda de bezerros e porcos, Oscar mandou construir uma casinha, cercar as divisas, fazer curral e comprou duas bezerras para iniciar a criação. Seus pais também plantavam mandioca, milho e feijão de vara. A única dificuldade era a água: em grandes secas tinha que ser buscada na fazenda do Patrão, em troca de dias de serviços. E foi daí, Mariquinha, que Oscar, com seus cinqüenta e poucos anos foi ficando fraco e mais fraco. Não mais aguentava montar cavalo, respirava mal com o peito doente, de qualquer coisa se cansava e nada mais podia. O médico disse: “foi picada de barbeiro, o coração cresce demais e morre cedo.” Morreu, o meu Oscar, de tanto que inchou seu bom coração. Levei seu corpo para ser enterrado no cemitério do lugar onde nascera. E passei a ficar morando por lá, cuidando dos seus pais; te confesso, Mariquinha, que fiquei muito desiludida, sem o marido, sem os filhos que não tivemos; de bom, mesmo, só as lembranças de nossa vida de marido e mulher, das tardes na Santa Generosa, dos nomes que imaginávamos para nossos filhos, dos sonhos que sonhamos.
- “Mas me conte, Durvalina, como foi que você voltou a trabalhar para o Patrão Anselmo”, pedi.
E Durvalina continuou sua história. Pois foi assim, me disse: Acontece que, mesmo antes de sua mulher morrer, ele me contratou para lavar suas roupas, cuidar da limpeza da casa e cozinhar. Era o pagamento pela água que a gente precisava e que em casa não tínhamos. Então fui. O Patrão Anselmo era agora um homem fraco, doente, cara amarela, barba sempre por fazer: quieto, moribundo. Apenas quando nuvens apareciam no céu, chamando chuva, ele assoviava, um pouco desafinado a Saudades do Matão, mostrando um pouco de alegria.
Nos demais, parecia tão triste como eu.
Pai de Oscar morreu e ficamos na chácara, sua mãe e eu, para de tudo cuidar: das vacas, da plantação de mandioca, do feijão e do chiqueiro com os porcos. Intentei e consegui, com o Patrão, trabalhar até o meio-dia em sua casa com o direito de voltar à tarde para cuidar das nossas coisas. “Se não der conta de tudo o que tem que fazer, também dou só a metade da água que vocês precisam, combinado, Durvalina?” foi sua mal humorada resposta. Então era essa a luta: eu querendo tudo fazer logo cedo até o sol do meio dia queimar minhas costas para poder voltar e cuidar das nossas vacas, porcos, galinhas, mandiocas e feijões, e ele, Anselmo, querendo tudo retardar, reclamando da comida, sujando mais roupa, exigindo que além da dele eu lavasse também a roupa do vaqueiro já que “minha mulher morreu e não tem mais que lavar a roupa dela”. Eu seguia fazendo de tudo para dar conta: aquilo era minha diversão, minha vida: jogar na cara amarelada e barbuda do patrão doente que eu estava ali, forte, sacudida, com doença apenas na alma triste de tanta falta do Oscar. Uma tarde, lavando a louça do almoço, ouvi no rádio que o Patrão havia ligado: “o governo decidiu arrendar a lagoa da fazenda do Patrão para oferecer água a quem não tinha”.
- “Filhos da Puta! Sabem, os desgraçados do governo, que não quero arrendar merda nenhuma”, berrou o patrão, desta vez saindo da rede com a antiga rapidez de homem são.
Terminei de lavar a louça e me despedi.
- “Até amanhã, seu Anselmo.”
- “Inté”, respondeu nem bem se dignando a olhar para os meus lados. E continuou a falar sozinho: “Desgraçados, querem tirar minha água para oferecer aos merdas dos seus eleitores; que se fodam: bondades com minha água é que não vão fazer.”
Fui para casa e sob o sol escaldante, sem uma nuvem no céu, me peguei assoviando a Saudades do Matão. Manhã seguinte, também: alguma coisa me fazia assoviar Saudades do Matão enquanto lavava as louças que sobraram da janta, enquanto pendurava a roupa lavada no varal, enquanto ajeitava, sob a sombra da aroeira, a rede do Seu Anselmo, toda manchada e fedida de suor, para ver se aliviava um pouco aquela catinga por demais de ruim. No rádio, dia seguinte e seguintes, a notícia era a mesma: decisão tomada pelo governo era a de desapropirar a Lagoa, tirar sua cerca em volta e dar água a quem quisesse: era para se cumprir a lei. “Filhos da puta, desgraçados!”, xingou, pulou da rede e desligou o rádio. Espreguiçou forte, enfiou o chapéu de couro na cabeça, pegou a espingarda e dirigiu-se para a Lagoa, com a intenção de defender suas águas.
Terminei o serviço, arrumei as louças na prateleira, peguei minha trouxinha e me pus a caminho de casa. Era outro dia em que, sem nenhuma santa nuvem no céu anunciando chuvas, eu, independente de minha vontade, meu pus a assoviar a Saudades do Matão. O jeito foi a polícia chamar, na capital, Lindomar e Sebastiãozinho, seus filhos; Seu
Anselmo pai endoidara, não mais comia, teimando em ficar dia e noite encostado na aroeira, espingarda às mãos, para, dizia mal humorado entre os dentes, “defender o que era seu pela justiça de Deus e dos homens”.
Os filhos o levaram, vestido com camisa de força, para um hospício na capital; decidiram, também, que eu seria paga para tomar conta da casa onde, quando criaças, sobre minhas costas, brincaram de cavalinho. A polícia retirou os arames que cercavam a lagoa, agora de todos. Foi também a polícia quem avisou do telefonema do Seu Tonico, me avisando de seu estado de saúde. Então resolvi vir: vendi um porco, duas galinhas, arranjei, com isso, o dinheiro das passagens, peguei o ônibus e estou aqui, ao seu lado, Mariquinha, rezando por você que logo, logo estará junto do meu Oscar.


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