sábado, 27 de junho de 2009

Caminho da Fé, o retorno: sons e cheiros.


Um grande amigo, sabedor do tanto que gosto de ouvir música, não se conforma por eu não levar comigo os pequenos aparelhos de MP3 para ouvir música durante as caminhada que realizo. De verdade mesmo, não tenho, ainda, o pequeno aparelho; às vezes penso em comprar um, me animo, mas logo desanimo e, resumindo, ainda não possuo o tão moderno e eficiente aparelhinho. Mas no que diz respeito a levá-lo comigo em minhas caminhadas sou mesmo relutante. Explicando melhor: penso que o aparelhinho, como a máquina fotográfica, pode, por oferecer tantas facilidades, desestimular-me a um ouvir e a olhar mais curioso, mais paciente, capazes de captar imagens e sons não só inusitados como mais duradouros. A máquina fotográfica, esta eu não tenho dúvidas, ao ser usada para “clicar” uma nuvenzinha, uma porteira ou uma montanha longínqua, libera o meu cérebro da “obrigação” de guardar dentro de si imagem tão agradável: “lá em casa te vejo melhor, nuvenzinha”, pensa o esperto cérebro e “desliga” o botão da curiosidade e do olhar com atenção. Se, ao contrário, não carrego a máquina comigo mantenho os botões ligados e me obrigo a um estimulante e gratificante esforço de olhar, “reolhar”, mudar o ângulo e deliciosamente “fotografar” em meu espírito a nuvem ou a montanha que estou a admirar. Com o MP3, que ainda não tenho, é bom que se repita, penso que pode ocorrer o mesmo. Ao levá-lo comigo, ganho ao poder ouvir músicas que aprecio muito e que fazem bem ao meu espírito, mas por outro lado, impedirá que meus ouvidos estejam ligados, conectados, extremamente atentos e percam sons incomuns, imprevisíveis, até porque, estes sons chegam “misturados” com sabores e cheiros únicos.
Deve ser coisa de velho, admito.
Então vamos aos sons.
Estes iniciam, quase sempre, com o cantar dos galos, madrugada adentro. São eles que , segundo João Cabral, “tecem a manhã”:
“um galo sozinho não tece a manhã: ele precisará sempre de outros galos...
e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.”...
E eu inicio minhas caminhadas ao meio destas manhãs tecidas pelos galos, sentindo, na face, o frio gostoso do vento, nos pés o orvalho cristalino e podendo apreciar, lá longe, a sombra negra de um enorme pé de angico.
De manhãzinha, também é bom de se ouvir, quando se passa por perto dos currais, os longos e agudos “béeeeee!” emitidos pelos bezerrinhos separados de suas mães vacas que, também saudosas e com os peitos cheios de leite, respondem com graves “muuuuuu!”.
Quando falo da mistura dos sons com os cheiros este é um bom exemplo: na maioria das vezes, estes “béééés” e “muuuus” chegam aos ouvidos “misturados” com o cheiro de café no bule e de lenha queimando no fogão; ocorre então um milagre transformador destes sons; os mesmos, misturado aos cheiros, deixam de ser apenas “bééés” e “muuuus”, ganham uma sonoridade nova que afaga o espírito, transformando-nos: nos tornam mais humanos, mais sensíveis a encantos tão simples.
Nesta última caminhada, revi muito um pássaro, bastante comum nas roças de minha infância. Nós o chamávamos de pássaro-preto-do-peito-amarelo: nome mais que justo, na medida em que este passarinho tem todas as semelhanças com o tradicional pássaro-preto, só que “veste” um pulôver amarelo que lhe cobre o peito. Barulhentos, andam sempre aos bandos, são ariscos e para ouvi-los a contento, tem que se ter calma. É assim: ao descobrir uma árvore na qual está o bando, tem que se aproximar devagar, fazendo o menor barulho possível. Ao chegar sob a árvore tem que continuar bem quieto, mudo mesmo de som e de movimento e aguardar um pouco, pois assim que os pássaros sentem a aproximação, imediatamente, regidos por um maestro qualquer, calam a sinfonia, deixando imperar um silêncio absoluto na sala de concerto, no caso, uma aroeira. Tem que se ter calma nesta hora: permanecer quieto, em silêncio profundo até no respirar e aguardar; eu, para passar este tempo de espera costumo assoviar, mentalmente, uma melodia que, naquele dia, me acompanhará até a noite. De repente o maestro ergue sua batuta e a sinfonia reinicia: alta, intensa, emocionante, ritmada. Aí é só continuar bem quieto e ouvir!
Que outros sons?
Bem, tem as siriemas que, imitando o João Cabral, tecem, não as manhãs, mas os meio-dias: a um “qué, qué, qué , qué, qué!” agudo que surge no alto de um morro responde um outro “qué, qué, qué , qué, qué, qué, qué” bem lá no meio de uma grota, por onde passa um riozinho. Uma boa brincadeira é adivinhar de onde virá o outro “qué, qué, qué, qué, qué”: será que virá de trás do capãozinho de mato? Ou será que virá do pé daquele morro negro, rochoso? Mas, de algum lugar , com certeza, virá um outro “qué, qué, qué, qué” agudo de uma outra siriemas, ciosa para cumprir sua obrigação na obra de tecer o meio-dia.
Agora pássaro-preto, mesmo, também surgem alguns: seu canto tem, me parece, uma frase melódica mais longa que a de seu “primo” do peito amarelo. Estes, os pássaros pretos, realizam suas cantorias, quase sempre, em bambuzais, pertos das casas onde, penso, têm alimentos generosamente oferecidos pelos moradores em troca de seu concerto; melhor assim, que tê-los presos em gaiolas.
Por falar em gaiola, Inconfidentes nos oferece uma boa e verdadeira história. Nesta pequena cidade, que integra o Caminho da Fé, a Câmara de Vereadores aprovou , há anos, uma lei que estipula alta multa a quem prender o canarinho da terra em gaiola. Além da lei foram realizadas campanhas públicas de educação, junto aos estudantes da cidade, no sentido de preservar o pequeno pássaro. Foi, também, criado um “clube” com o objetivo de, continuamente, seus sócios permanecerem vigilantes ao cumprimento da lei assim como gerar outras ações que estimulem o carinho da população para com o pequeno pássaro. Resultado: as enormes e velhas árvores da avenida principal de Inconfidentes se tornaram verdadeiros criadouros de canarinho da terra, que, sentindo-se protegidos, tornaram-se mansos e amistosos; por ouro lado, os comerciantes e moradores da cidade, sensibilizados por tamanha mansidão, sentem-se proprietários e responsáveis pela “sua” árvore e pelos “seus” ninhos. Nesta última caminhada, como era época de “troca de muda”, não pude ouvi-los.
E o som de um bando de periquitos em uma paineira? Estes são menos ariscos que os pássaros-preto-do-peito-amarelo, exigindo menos silêncio e formalismo para se aproximar e seus concertos, os quais misturados a diferentes cheiros e sabores, nos remete à alegria ingênua do Vivaldi.

Estas paineiras, onde os periquitinhos realizam seus concertos enquanto beliscam os frutos são o local preferido para os anus-brancos construírem seus rústicos ninhos. Mas gostam das paineiras só para construírem seus ninhos; pois são nas cercas de arame farpado, nas moitas de capim Jaraguá, ou pulando atrás dos bois e vacas que os anus-brancos, enquanto caçam carrapatos, emitem os seus “pinhé, pinhé, pinhé, pruuuu” repetitivo e pouco melódico; fonte, talvez, de inspiração a modernos autores e suas estudadas dissonâncias melódicas.
Mas estes “pinhé, pinhé, pinhé, pruuuu” estão em minha memória por uma brincadeira infantil que fazíamos com este som. Era assim: a turma de crianças, algumas vezes com adultos ajudando, se unia e um colocava a mão em concha que era beliscada por outra mão, que por sua vez era beliscada por outra, por outra e por mais outra, formando uma coluna de mãos enquanto cantávamos “pinhé, pinhé, pinhé” que só terminava quando o que havia colocado a mão por último encerrava os “pinhés” com um “pruuuuuuu”....Eram os anus voavam e o imitávamos com nossas mãos. Após “pruuuu” do vôo a brincadeira se reiniciava: o que havia colocado a mão por último passava a ser o primeiro a ter a mão beliscada e lá se vai mais “pinhé, pinhé, pinhé, pruuuuuuu”.
Que mais de mistura de som com cheiros?
Tem o latido de cachorro. Não há uma casa mineira sem um cachorro, penso eu! E, no meu caso, o som dos latidos é sempre misturado com o medo que tenho por cachorro; ainda bem, penso, e agradeço ao também medo atávico que os cachorros têm de cajados. E cada um, peregrino e cachorro, olha para o outro desconfiado.
E quando o cheiro e os sabores não vêm acompanhado de som?
É difícil mas, às vezes tem, e é bom!
É bom, de tarde, o cheirinho gostoso de café sendo passado pelo coador; mais tarde ainda, lá pelas cinco horas, tem o cheiro de fumaça do fogão a lenha junto com o cheiro de banha de porco frigindo na panela, mas aí, quase sempre “misturado” com o corpo já cansado e com o “cocoricó” dos galos e das galinhas, estas, com um “cocoricó” desconfiado, desafinado e temeroso: medo de que sua hora possa estar chegando...

4 comentários:

Morales disse...

Orlando... deve mesmo ser coisa de velho. Pois lhe dou toda a razão de preferir os sons da natureza aos sons emitidos pelos modernos e eficientes aparelhinhos para ouvir música de hoje em dia. Também os prefiro, especialmente se estou em locais cheios de vegetação, pássaros e bichos.
Essas maquinetas são mais para cobrir os ruídos repetitivos e irritantes da cidade que atormentam nossos ouvidos.

Orlando disse...

Olá Tonhão,

Ouvir os sons e o silêncio das montanhas de Minas faz um bem tremendo para a saúde: renova, remoça e, melhor ainda, aguça nossa humanidade.
Bom demais.
Abração,
Orlando.

Morales disse...

Engraçado isso...quando estávamos imersos nesse universo rural - boa parte de minha vida foi assim - não nos dávamos conta disso.

Nem sequer, muitas vezes, prestávamos atenção. Não sei dizer se era coisa da idade ou se era mesmo porque fazíamos parte desse ambiente de tal modo que era tão natural e por consequência não nos portávamos como observadores ou ouvintes.

Orlando. disse...

Olá Tonhão,
Concordo com você. O fato de termos vivido mergulhado no silencioso universo rural nos tornava desatentos a tanta simplicidade e beleza: mais uma "desculpa" para eu efetuar minhas caminhadas.
Abração,
Orlando.