quinta-feira, 28 de maio de 2009

Caminho da Fé, o retorno: caminhando só.


Já disse e repito: caminho por caminhar, para deter-me, sem nenhuma pressa, no agora como se não houvesse o depois. É disso o que mais gosto, o que mais aprecio em longas caminhadas: a quietude do agora sem fim, de ver a montanha lá longe e pensar que vai demorar um tempão para nela chegar, ou não chegar...
Tive um colega de faculdade, o Hélio Pedro, com quem me encontrei há alguns anos atrás. Nos encontramos em uma época em que eu estava me preparando, muito feliz, diga-se de passagem, para a aposentadoria. O encontro ocasional se deu no Centro de São Paulo e Hélio continuava todo bonitão: nenhum sinal de calvície, corpo forte de quem continuava a praticar judô, poucas rugas e, conforme me disse, já aposentado a três anos de seu emprego no Banco do Brasil.
Fomos para o Ponto Chic, no Largo do Arouche, tomar chope e conversar: afinal não nos víamos há mais de vinte anos e valia a comemoração do encontro. Assim depois dos rotineiros “como está você?”, “quantos filhos?”, “continua casado?”... arrisquei a pergunta:
- “E você, aposentado há três anos, o que anda fazendo?”
- “Nada, não estou fazendo nada. Nunca gostei de trabalhar.”
A franca resposta, dada de sopetão, naquele momento de minha vida me surpreendeu a ponto de me engasgar com o chope que estava bebendo.
E Hélio continuou:
- “Verdade...nunca gostei de trabalhar e sempre detestei aquela história de desafios...queria, para ganhar meus trocadaos, só ser Caixa no BB até que na bendita hora que entrei na Faculdade, resolveram me colocaram para trabalhar com Treinamento de Pessoal e veio esta história de desafio par cá, desafio par lá... e eu querendo sossego, me aposentar e não trabalhar. Só isso.”
Pois então: é impossível não me lembrar daquele encontro com o Hélio nestas caminhadas. Isso porque o grande desafio da caminhada é não ter desafio nenhum. É ir indo devagar, sem nenhuma pressa de chegar, admirar com todo tempo uma pequena flor, uma grande cachoeira, um pequeno riacho, uma vaca ou um bezerro, sentir o vento, ouvir o som do silêncio, responder cordialmente a um bom dia do cavaleiro que, também solitário, tira o chapéu e saúda sorridente.
Então é por isso que também é bom caminhar só; até para, depois, relembrar as diferentes reações das pessoas ao encontrar um peregrino caminhando solitário.
Nada de apologia de caminhar só e para provar o que digo até descrevo uma recomendação contida na Credencial do Peregrino: “recomenda-se não caminhar sozinho, pois todos estamos sujeitos a imprevistos”.
Mas, continuando a história, é interessante observar como as pessoas vêm o caminhante solitário, principalmente velho, penso eu. Vou contar: ainda no albergue do Caminho da Fé, enquanto fornecia meus dados para obter a credencial de peregrino a simpática atendente, curiosa, não resiste e pergunta:
- “Mas o senhor vai sóz... perdão, sozinho não porque está acompanhado de Deus e de Nossa Senhora...”
Respondo:
- “Sim, vou com Deus e com Nossa Senhora.”
Outro dia em Andradas, de manhã, saindo da pousada para pegar a estrada cruzo com uma senhora:
- “Bom dia, senhor peregrino.”
- “Bom dia.”
- “Mas o senhor está caminhando sozinho?”
Aproveito a dica da atendente do Caminho da Fé e:
- “Não minha senhora. Estou com indo com Deus...”
E ela rápida:
- “Sim o senhor vai com a proteção de Deus, de Nossa Senhora da Aparecida, do seu Anjo da Guarda, da Santa Izildinha...”
Vou parar de enumerar o nome de todos os santos que aquela senhora resolveu que me acompanhariam pelo Caminho da Fé para não encompridar ainda mais esta história; inúmeros santos que me fez pensar: “qual é o coletivo de santo? De lobo sei que é alcatéia, de anjo parece que é miríade. Há coletivo para santo? Se tem, não sei, mas provavelmente não tem porque senão eu teria aprendido e decorado no cursinho preparatório ao exame de admissão ao ginásio...”
Em Ouro Fino, também logo após sair da pousada percebi que um senhor demorava um pouco mais na manobra do seu carro para entabular conversa. Acertei:
- “Bom dia, senhor peregrino.”
- “Bom dia”, respondo.
- “Vai para Aparecida?”
- “Sim, vou.”
- “Caminha sozinho?”
- “Sim, mas vou com D...”
Não deu tempo :
- “Ta doido” e, rapidamente, manobrou o carro.
Em um início de tarde estava descansando e comendo frutas secas sob uma pequena ponte. Mochila fora das costas, botas e meias retiradas para descansar e molhar os pés na água fria, o que queria era saborear as frutas secas compradas no Mercado Municipal, tomar água potável do pequeno riacho, ver a água passar... Estava lá me ensismemando quando chega, pedalando uma bicicleta, um senhor com mais ou menos a minha idade, penso eu.
- “Boa tarde, peregrino, descansando?”
- “Sim...molhando os pés na água fria; quer uma fruta?”
- “Não obrigado, quero não” e desceu de sua bicicleta, querendo dizer com o gesto, que mais que fruta o que queria era prosa.
- “O senhor mora por aqui?” perguntei.
- “Moro na Barra, o senhor já passou por lá. Cuido de um cafezal e de umas cabeças de boi e agora se mal lhe pergunto o senhor está só?”
A preguiça me faz dar a resposta de praxe:
- “Não, estou com Deus...”
- “Cruz credo, peregrino. Perigoso, muito perigoso. Ladrões, bandidos e malfeitores andam rondando por aqui. Precisa cuidado.”
Não estava a fim de continuar aquele assunto mas percebi, pelo entusiasmo do velho mineiro, que ou se falava de bandidos ou não haveria conversa.
Então me permitam uma outra digressão, tipo abre os parênteses: Já disse que moro em local privilegiado, em um condomínio na Serra da Cantareira, meio a árvores, montanhas e que caminho quase que diariamente por suas longas e silenciosas ruas, desprovidas de trânsito mas algumas devidamente providas de cachorros; alguns destes cachorros são vira-latas, outro nem tanto, mas, em comum, todos latindo e ameaçando os caminhantes, imaginando, penso eu, que estão a cumprir seu dever de proteger a casa de seus donos. Para me proteger, ou proteger o medo atávico que tenho de cachorros resolvi comprar um cajado de alumínio, todo modernoso que virou motivo de curiosidade dos caseiros do condomínio.
Um dia um deles me pergunta:
- “Verdade que este seu cajado dá choque?”
- “Choque não dá mas solta veneno por esta ponta. A droga está contida dento do canal de alumínio. É importado este cajado.” Uma pequena ressalva para justificar tamanha mentira: há nesta casa dois enormes cães de guarda que, furiosamente, latem, latem e rosnam ameaçadores aos que passam. Pois bem: depois desta mentira o inofensivo cajado de alumínio fez história e passou a ser respeitado pelos cachorros do condomínio. Uma ressalva: para longas caminhads prefiro o longo e forte cajado feito de bambu. Fecham-se os parênteses.
Então respondo ao velho mineiro:
- “Não tenho medo. Estou com meu cajado milagroso.”
- “Milagroso? Como assim? Que milagre é que ele faz?”
- “Solta fogo pelas pontas quando qualquer ser impuro tenta me agredir. Estou com Deus e meu milagroso cajado, nada tenho a temer”, disse procurando empostar bem a voz, como aprendi no Mosteiro de São Bento.
- “Verdade?”
- “Sim...o senhor quer testemunhar a força de Deus, aqui, agora? Quer sentir o calor do fogo divino?”
- “Não senhor, quero não” respondeu o velho mineiro e imediatamente levantou-se, fez rapidamente um sinal da cruz, colocou de volta o chapéu na cabeça e retornou à sua bicicleta após tocar, respeitosamente e um pouco temeroso, o cajado de bambu, colocá-lo perto dos lábios, beijá-lo e completar: “que Deus Nosso Senhor o proteja nessa sua peregrinação meu senhor. Reze por nós lá em Aparecida”.
- "Rezarei."
E lá se foi embora pedalando a sua bicicleta o velho mineiro.
Fiquei mais um pouco ali, com os pés na água fria do riacho...Descansei mais um pouco antes de colocar as meias e as botas, ajeitar as coisas na mochila, colocá-la às costas, tomar meu cajado milagroso e partir....só.

2 comentários:

Morales disse...

Orlando...suas histórias ficam cada vez mais encantadoras. Desta vez em certo trecho fez me lembrar da bela canção do Almir Sater - Tocando em frente - que diz em seu refrão:

"Ando devagar porque já tive pressa
Levo esse sorriso porque já chorei demais
Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe
Só levo a certeza de que muito pouco eu sei
Eu nada sei"

abraço

Orlando disse...

Olá Tonhão,
Muito bonito este refrão do Tocando em Frente. Fico contente pela historinha ter levado você a lembrar de letra/música tão sensível.
Abração,
Orlando.