segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

1964.... A LANCHA SETE!



Toda e qualquer semelhança deste relato com ESTÓRIAS DO RIBEIRA 1, postado aqui em 31/12/08 , não é mera coincidência. O ESTÓRIAS é a mãe deste, reescrito ano passado para o ARQUIVO 68.

Por volta das 8h da manhã, no porto de Registro, ouve-se o apito longo e rouco da Lancha Sete, anunciando sua saída para Iguape. Mineiro, eu já estava a postos há mais de meia hora, ansioso pela partida com destino à Escola de Emergência do Bairro da Lagoa Nova, distante por volta de 25 km de Registro, quase na divisa deste município com o de Iguape: eu, minha mala de couro e um guarda-chuva automático que teimava em abrir sempre que lhe dava na telha.
Até a Escola, eram por volta de três horas de viagem, pelas águas calmas e cor de garapa do Rio Ribeira de Iguape. As aulas do antigo curso primário iniciavam no dia 15 de fevereiro....assim, o mais provável é que o dia daquela viagem foi 13 ou 14 de fevereiro de 1964.
Havia concluído o Curso de Formação de Professores Primários pelo prestigiado Instituto de Educação Otoniel Mota, em Ribeirão Preto, e o que sabia era que queria, e muito, ser professor primário. Sim, professor primário, disso não tinha dúvidas. E não foi difícil esta opção frente a um emprego nas Casas Pernambucanas, oferecido pelo Cônego Arnaldo, e à chance de iniciar a promissora - na opinião do Sr. Sílvio, gerente da Agência do Banco Mercantil, em Ribeirão Preto - carreira de bancário, ou, mesmo, à oportunidade de ganhar, na época, um bom salário, tornando-me escriturário no antigo e, para mim, tão charmoso Umuarama Hotel, na rua São Sebastião, pertinho do Cine São Paulo, ou, ainda, de me profissionalizar, como jogador de futebol, no Comercial. Na verdade, a única dúvida que me assaltou, à época, foi entre me tornar professor primário ou continuar a carreira religiosa de monge beneditino olivetano...
Nós - meus pais, uma irmã e um irmão – havíamos mudado de Pedregulho há alguns anos, à busca de trabalho em Ribeirão Preto, onde vi meus horizontes se abrirem. Não me cansava de, fascinado, admirar – e ser repreendido pelo meu irmão: “não olhe desse jeito, vão achar que você é caipira e que nunca viu prédio” – os edifícios da Rua São Sebastião. Inesquecível a primeira vez em que, a trabalho, tive que ir até o oitavo andar de um prédio e, por medo e incompetência de lidar com o elevador, fazê-lo, tanto na subida como na descida, por suas escuras escadas.
No Otoniel Mota, havia um professor, o Dr. Divo Marino, ligadíssimo em política, que era proprietário de um jornal, o “A PALAVRA”, no qual trabalhei por mais de um ano. E se em Pedregulho tínhamos medo de falar ou ouvir as palavras comunista e maconha, no A PALAVRA ficava face a face com o Luciano Lepera, deputado comunista que não comia criancinhas e, ao contrário, tinha por elas e pelos menos favorecidos uma grande paixão... e com o Márcio, linotipista do jornal, que teimava em me iniciar em tragadas que não as do Continental.
Ribeirão Preto era, à sua moda, hoje tenho isso claro, conectada com o que acontecia no país: se em Pedregulho o cinema do Salim se restringia às sessões de quarta, sábado e à matinê de domingo, em Ribeirão eram, só no centro, quatro bons e elegantes cinemas, com sessões noturnas diárias. Havia importantes indústrias sediadas na cidade – o que favorecia um movimento operário forte e atuante - e as Faculdades de Medicina, Farmácia e Odontologia davam à cidade ares menos provincianos... Enfim, pelo menos para mim, a cidade borbulhava de oportunidades.
O movimento estudantil, muito ligado à Igreja, era forte. Havia grupos de teatro, grupos de estudo do método Paulo Freire, recitávamos, em coral, o “UM DIA NA VIDA DE BRASILINO” e, no auditório da PRA-7, ouvimos Vinicius de Moraes declamar – ao lado de uma garrafa de whisky – o seu belíssimo Operário em Construção.
Fui para Registro atuar como professor primário, com a perspectiva de que à escola cabia preparar as crianças para se beneficiarem de uma sociedade mais justa e digna, que, com certeza, estávamos construindo. Era o sonho!
Lá pelas onze horas, sob um sol forte e calor imenso, o contra-mestre da Lancha Sete me avisa que o próximo porto era o da Escola da Lagoa Nova, onde eu deveria descer. Parte a lancha e eu permaneço parado, com a mala no chão, indeciso entre vislumbrar sua partida ou me aproximar da escolinha, a vinte metros do rio...Ainda parado, mala e guarda-chuva no chão, quando, do nada, surge um japonesinho:
- “É o professor?”
- “Sim.”
- “A chave da escola.”
Como do nada havia surgido, da mesma forma, o menino se evaporou no meio do bananal.
Entrei na escola, que seria também a minha casa: sala, cozinha com fogão de lenha, um quartinho minúsculo e, claro, a sala de aula propriamente dita. À frente da escola, o Rio Ribeira, aos fundos e à direita, um bananal e, à sua esquerda, um brejo enorme, chamado pelos locais de pantano – paroxítona - e não pântano - proparoxítona -, como eu queria.
Meia hora depois, surge, outra vez, o japonesinho:
- “Pai mandou chamar para almoçar.”
Fomos. Andamos por um "carreirão" do bananal por uns quinze minutos e chegamos à casa do senhor Seishum, onde almoço e acerto que seria lá que passaria a ter minhas refeições. Educado, o meu hospedeiro me disse que, naquela semana inicial, pediria à mulher que fizesse o jantar mais cedo, para que eu não tivesse que voltar no escuro: “até se acostumar...depois acostuma.”
Mário, o japonesinho, veio me chamar para o jantar. Voltei com dia ainda claro e com um litro de querosene para acender a lamparina.
Será que vou ter medo de dormir aqui, tão só?
Dia seguinte, logo de manhã, avisadas não se sabe por quem, surgem as crianças pela estradinha que cortava o bananal: vinham descalças, desconfiadas, com suas sandálias havaianas entre os dedos das mãos - chegando no “porto” frente à escola, lavavam seus pés e se calçavam; pelo rio, de canoa, remando vagarosamente, vinham outras crianças, lá dos lados da Guaviruva.
Iniciei minha vida de professor primário naquela manhã.
Meu radinho de pilha sintonizava, mal e porcamente, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Na noite de primeiro de abril, entre chiados, roncos e misturas de estações, tomo conhecimento da Revolução.
Rádios da “legalidade” se uniam, confusamente, naqueles ermos do Vale do Ribeira, com as ondas das partidárias da revolução, aumentando a confusão: o que, realmente, estava acontecendo?
Providencio pilhas novas com um dos filhos do Senhor Seishum, mas o problema era o impotente radinho e não as pilhas, descubro.
No dia 15 de abril, aconteceria a reunião mensal dos professores. Numa sexta-feira, a Lancha Sete me leva a Registro, para a reunião, que ocorreria no sábado. Chego no fim do dia em Registro e vou, desconfiado, à caça de notícias. O fato de ser completamente desconhecido na cidade, em um momento em que prevalecia um clima de desconfiança e “cagüetagem”, dificultou esta minha tarefa.
À noite, na pensão, um enorme rádio de pilha - potente e perfeitamente sintonizado com rádios de São Paulo - confirmou: todas as esperanças dos últimos anos haviam se acabado, todos os movimentos e grupos com os quais comungava, partilhava idéias, sonhos e princípios haviam sido derrotados...

Um comentário:

Luciano Faustino disse...

Olha a lancha sete.

http://my.opera.com/perfeito/albums/show.dml?id=904595

muito legal a história, até mais!!