
Fiquei velho!
Faz tempo, que fiquei.
Certa vez, na biblioteca de uma colônia de férias, caiu-me às mãos um enorme ensaio da Simone de Beauvoir , A VELHICE, livrão pesado que compete, em grossura e número de páginas, com OS SERTÕES do nosso Euclides ou mesmo com A MONTANHA MÁGICA do Mann. Não li todo o ensaio e só posso compará-lo com as obras aqui citadas, apenas pelo volume... Mas, me recordo que uma das anotações da autora a respeito da velhice é a que sempre pensamos que a idade chega aos outros e não a nós, e naqueles dias em que lia o ensaio, pensei que aquela conclusão talvez fosse influência do companheiro Sartre: “o inferno são os outros”.
Mas chega à gente, sim!
Quero dizer, se você não morre cedo, a idade e a velhice chegam.
E cada um vai descobrindo a sua chegada de um modo.
Rubem Alves, em uma crônica, há tempos na Folha, fala de sua - agora - “implicância” em ser fotografado de perfil: a papinha ou a barbela, que nas fotos de perfil aparece abaixo do queixo, para ele, sinaliza o envelhecimento.
Um bom amigo, me disse, que se surprendeu no dia em que, no metrô, uma bonita jovem ofereceu-lhe o lugar e, depois, feliz pela prática da boa ação, olhou carinhosamente para ele com olhos de neta. Sorte, disse-me ele, a bela moça não ser “escoteira” e agradecer a boa ação diária com os dois dedinhos no alto da face dizendo em voz alta: “Sempre alerta”.
Moro em uma casa aqui na Serra da Cantareira e tive, durante alguns anos, como vizinho, um chileno educadíssimo, amante de bons vinhos, de fotografia e de uma boa prosa. Victor é o seu nome. Pois bem: ele tinha uma sobrinha, com pouquíssimo tempo de Brasil, àquela época com uns cinco ou seis anos, falante e graciosa com seu rostinho emoldurado pelos negros e lisos cabelos, parecendo uma indiazinha. Em uma tarde estava a podar plantas no jardim quando ouvi Camila, a sobrinha de Victor, aos berros em seu quintal, ao lado da piscina. Chorava alto e dolorosamente.
Depois descobri: sua tia “aproveitou”, enquanto Camila dormia, e saiu para realizar pequenas compras; ocorre que a nossa indiazinha deve ter acordado mais cedo que o normal em seu sono vespertino e se viu só na enorme casa, com um medo enorme dos tucanos que berravam no alto da paineira, medo da solidão, de não ter a tia a oferecer-lhe leite com Nescau, nem os primos para jogá-la de roupa e tudo na piscina... Assim berrava e berrava a pequena chilena!
Resumindo: me muni de uma escada, pulei o muro, fui até o quintal do vizinho e, com o apoio da mulher, “salvamos” a pequena Camila que ficou conosco até a chegada da tia. Em casa imediatamente se acalmou, ficou toda prosa, tomou leite, comeu bolo, e, a partir dali, tornou-se visita freqüente às tardes sempre pedindo bolo de chocolate, sua paixão. Mas voltando à velhice, assunto desta história: sempre que lhe perguntavam sobe o ocorrido naquela tarde, Camila dizia: “fiquei com muito medo e chorei até que um velhinho pulou o muro e veio me salvar.”
E agora de volta aos bancos azuis do metrô.
Estava indo da Sé para a República quando uma jovem ofereceu seu lugar a um senhor que, junto comigo, estava sem local para sentar.
O velho agradeceu a gentileza:
- “Obrigado, estou bem, e, também, desço na próxima” e olhando para mim: “Não quer sentar?”
- “Também, quero não. Desço na República, obrigado, não vale a pena.”
Travamos ali uma amizadezinha:
- “Quantos anos você tem?”, perguntou-me.
- “Sessenta e três”, o que dá para concluir que esta nossa historia no metrô ocorreu já há bastante, ou sendo generoso, algum tempo.
- “Mas você está bem, parece forte. Tenho sessenta e sete, fiz agora, no dia seis do mês passado.” E para seus sessenta e sete, realmente, o velho era saudável e se equilibrava firme, braços erguidos com as mãos segurando forte na alça de apoio do vagão do metrô. Assim estávamos os dois, próximos, dependurados no apoio do vagão: ambos magros, bastante calvos e as com as nossas enormes orelhas cheias de pelos abanando e ocupando razoável espaço naquele vagão do metrô. Com certeza, caso houvesse alguma jovem mulher no vagão, estaria olhando para nós como dois simpáticos e fortes vozinhos.
- “Mas o senhor está muito bem aos seus sessenta e sete”, disse.
- “Sim, estou bem, forte e cada dia mais feio. Tenho espelho lá em casa, me vejo todas as manhãs e o mesmo não me deixa mentir. Bem, desço aqui no Anhangabaú. Tchau!”
E desceu rápido, passos firmes, ombros erguidos sem nenhum sinal de corcunda no corpo magro...Feio.
Mais uma história. Foi em um almoço onde o prato principal era uma deliciosa feijoada. Entre os participantes desse almoço, um senhor, velho como eu, talvez uns dois ou três anos a mais, o que em nossa idade é zero, muito diferente de quando se tem treze anos e encontra um “menininho” de dez, que achamos insuportável em sua infantilidade. Voltando a este velho: me disse que praticava yoga, era vegetariano, não comia carne e ficou, realmente, um tempão frente a enorme panela da feijoada, catando grãos de feijão e um pouco de caldo que misturou ao arroz e couve; nada de carne, toucinho, costelinha defumada e, nem mesmo, um pedacinho de carne-seca.
Fez seu prato e sentou-se a meu lado para comer e conversar. Assunto principal: velhice. E eu tomando coca light em homenagem a diabetes e ele com sua feijoada vegetariana!
Mas era forte, saudável e um pouco falante demais o meu vizinho de mesa.
Não perguntei, mas descobri sua idade:
- “Tenho sessenta e oito anos, mas me sinto como se tivesse vinte, não vejo nenhuma diferença”, disse, iniciando a conversa enquanto, ao mesmo tempo, dirigia um olhar lascivo para a jovem e morena garçonete que ajudava nas tarefas de por a mesa.
Eu um pouco sem paciência:
- “Eu me sinto bem aos meus sessenta e cinco, mas muito diferente de quando tinha vinte anos.”, respondi.
E ele:
- “É mesmo? Por que?”.
E eu:
- “Bem...há muitas coisas que fazia aos vinte as quais não faço mais”, respondi.
E o velho falador, que não tirava o olho da garçonete morena, quase a desnudando em público:
- “Verdade? Ah, comigo não! O que você não faz agora e que fazia quando tinha vinte?”, desafiou-me enquanto continuava a desnudar a garçonete que, agora, à luta com a travessa de couve, era obrigada a curvar-se, deixando parte das belas pernas à mostra.
- “Não jogo futebol como jogava”, disse.
A conversa foi encerrada. Comemos em silêncio: eu a feijoada e minha coca light e ele, agora calado, o seu prato de arroz, caldo de feijão e couve.
E só para terminar cuidando para que esta historinha não fique tão longa como o ensaio da Simone de Beauvoir - atenção ao “tão longa”, pois longe de mim querer competir com a velha francesa em profundidade, qualidade na escrita e competência - vou contar de uma vez quando voltava de uma caminhada de dez dias pelo Caminho da Luz. Cansado da caminhada, após desembarcar na estação Rodoviária do Tietê, pegar o metrô e depois um ônibus até o ponto final, já no pé da serra, tomei um táxi para subir a Cantareira até minha casa; e foi aí, neste percurso pela estradinha da serra, que conversa vai, conversa vem: "Mas onde mesmo o senhor foi? Quantos dias andou caminhando no meio do mato? Dormiu em barraca?" . Enfim, satisfeitas as primeiras curiosidades, o taxista deu-me tempo para, por minha livre e espontânea vontade, dizer:
- “Gosto muito de caminhar, ficar só comigo mesmo por alguns dias no meio do mato. A gente, quando está envelhecendo, precisa disso.”
E o velho motorista de táxi, agilmente:
- “Envelhecendo não: já somos velhos.”
Faz tempo, que fiquei.
Certa vez, na biblioteca de uma colônia de férias, caiu-me às mãos um enorme ensaio da Simone de Beauvoir , A VELHICE, livrão pesado que compete, em grossura e número de páginas, com OS SERTÕES do nosso Euclides ou mesmo com A MONTANHA MÁGICA do Mann. Não li todo o ensaio e só posso compará-lo com as obras aqui citadas, apenas pelo volume... Mas, me recordo que uma das anotações da autora a respeito da velhice é a que sempre pensamos que a idade chega aos outros e não a nós, e naqueles dias em que lia o ensaio, pensei que aquela conclusão talvez fosse influência do companheiro Sartre: “o inferno são os outros”.
Mas chega à gente, sim!
Quero dizer, se você não morre cedo, a idade e a velhice chegam.
E cada um vai descobrindo a sua chegada de um modo.
Rubem Alves, em uma crônica, há tempos na Folha, fala de sua - agora - “implicância” em ser fotografado de perfil: a papinha ou a barbela, que nas fotos de perfil aparece abaixo do queixo, para ele, sinaliza o envelhecimento.
Um bom amigo, me disse, que se surprendeu no dia em que, no metrô, uma bonita jovem ofereceu-lhe o lugar e, depois, feliz pela prática da boa ação, olhou carinhosamente para ele com olhos de neta. Sorte, disse-me ele, a bela moça não ser “escoteira” e agradecer a boa ação diária com os dois dedinhos no alto da face dizendo em voz alta: “Sempre alerta”.
Moro em uma casa aqui na Serra da Cantareira e tive, durante alguns anos, como vizinho, um chileno educadíssimo, amante de bons vinhos, de fotografia e de uma boa prosa. Victor é o seu nome. Pois bem: ele tinha uma sobrinha, com pouquíssimo tempo de Brasil, àquela época com uns cinco ou seis anos, falante e graciosa com seu rostinho emoldurado pelos negros e lisos cabelos, parecendo uma indiazinha. Em uma tarde estava a podar plantas no jardim quando ouvi Camila, a sobrinha de Victor, aos berros em seu quintal, ao lado da piscina. Chorava alto e dolorosamente.
Depois descobri: sua tia “aproveitou”, enquanto Camila dormia, e saiu para realizar pequenas compras; ocorre que a nossa indiazinha deve ter acordado mais cedo que o normal em seu sono vespertino e se viu só na enorme casa, com um medo enorme dos tucanos que berravam no alto da paineira, medo da solidão, de não ter a tia a oferecer-lhe leite com Nescau, nem os primos para jogá-la de roupa e tudo na piscina... Assim berrava e berrava a pequena chilena!
Resumindo: me muni de uma escada, pulei o muro, fui até o quintal do vizinho e, com o apoio da mulher, “salvamos” a pequena Camila que ficou conosco até a chegada da tia. Em casa imediatamente se acalmou, ficou toda prosa, tomou leite, comeu bolo, e, a partir dali, tornou-se visita freqüente às tardes sempre pedindo bolo de chocolate, sua paixão. Mas voltando à velhice, assunto desta história: sempre que lhe perguntavam sobe o ocorrido naquela tarde, Camila dizia: “fiquei com muito medo e chorei até que um velhinho pulou o muro e veio me salvar.”
E agora de volta aos bancos azuis do metrô.
Estava indo da Sé para a República quando uma jovem ofereceu seu lugar a um senhor que, junto comigo, estava sem local para sentar.
O velho agradeceu a gentileza:
- “Obrigado, estou bem, e, também, desço na próxima” e olhando para mim: “Não quer sentar?”
- “Também, quero não. Desço na República, obrigado, não vale a pena.”
Travamos ali uma amizadezinha:
- “Quantos anos você tem?”, perguntou-me.
- “Sessenta e três”, o que dá para concluir que esta nossa historia no metrô ocorreu já há bastante, ou sendo generoso, algum tempo.
- “Mas você está bem, parece forte. Tenho sessenta e sete, fiz agora, no dia seis do mês passado.” E para seus sessenta e sete, realmente, o velho era saudável e se equilibrava firme, braços erguidos com as mãos segurando forte na alça de apoio do vagão do metrô. Assim estávamos os dois, próximos, dependurados no apoio do vagão: ambos magros, bastante calvos e as com as nossas enormes orelhas cheias de pelos abanando e ocupando razoável espaço naquele vagão do metrô. Com certeza, caso houvesse alguma jovem mulher no vagão, estaria olhando para nós como dois simpáticos e fortes vozinhos.
- “Mas o senhor está muito bem aos seus sessenta e sete”, disse.
- “Sim, estou bem, forte e cada dia mais feio. Tenho espelho lá em casa, me vejo todas as manhãs e o mesmo não me deixa mentir. Bem, desço aqui no Anhangabaú. Tchau!”
E desceu rápido, passos firmes, ombros erguidos sem nenhum sinal de corcunda no corpo magro...Feio.
Mais uma história. Foi em um almoço onde o prato principal era uma deliciosa feijoada. Entre os participantes desse almoço, um senhor, velho como eu, talvez uns dois ou três anos a mais, o que em nossa idade é zero, muito diferente de quando se tem treze anos e encontra um “menininho” de dez, que achamos insuportável em sua infantilidade. Voltando a este velho: me disse que praticava yoga, era vegetariano, não comia carne e ficou, realmente, um tempão frente a enorme panela da feijoada, catando grãos de feijão e um pouco de caldo que misturou ao arroz e couve; nada de carne, toucinho, costelinha defumada e, nem mesmo, um pedacinho de carne-seca.
Fez seu prato e sentou-se a meu lado para comer e conversar. Assunto principal: velhice. E eu tomando coca light em homenagem a diabetes e ele com sua feijoada vegetariana!
Mas era forte, saudável e um pouco falante demais o meu vizinho de mesa.
Não perguntei, mas descobri sua idade:
- “Tenho sessenta e oito anos, mas me sinto como se tivesse vinte, não vejo nenhuma diferença”, disse, iniciando a conversa enquanto, ao mesmo tempo, dirigia um olhar lascivo para a jovem e morena garçonete que ajudava nas tarefas de por a mesa.
Eu um pouco sem paciência:
- “Eu me sinto bem aos meus sessenta e cinco, mas muito diferente de quando tinha vinte anos.”, respondi.
E ele:
- “É mesmo? Por que?”.
E eu:
- “Bem...há muitas coisas que fazia aos vinte as quais não faço mais”, respondi.
E o velho falador, que não tirava o olho da garçonete morena, quase a desnudando em público:
- “Verdade? Ah, comigo não! O que você não faz agora e que fazia quando tinha vinte?”, desafiou-me enquanto continuava a desnudar a garçonete que, agora, à luta com a travessa de couve, era obrigada a curvar-se, deixando parte das belas pernas à mostra.
- “Não jogo futebol como jogava”, disse.
A conversa foi encerrada. Comemos em silêncio: eu a feijoada e minha coca light e ele, agora calado, o seu prato de arroz, caldo de feijão e couve.
E só para terminar cuidando para que esta historinha não fique tão longa como o ensaio da Simone de Beauvoir - atenção ao “tão longa”, pois longe de mim querer competir com a velha francesa em profundidade, qualidade na escrita e competência - vou contar de uma vez quando voltava de uma caminhada de dez dias pelo Caminho da Luz. Cansado da caminhada, após desembarcar na estação Rodoviária do Tietê, pegar o metrô e depois um ônibus até o ponto final, já no pé da serra, tomei um táxi para subir a Cantareira até minha casa; e foi aí, neste percurso pela estradinha da serra, que conversa vai, conversa vem: "Mas onde mesmo o senhor foi? Quantos dias andou caminhando no meio do mato? Dormiu em barraca?" . Enfim, satisfeitas as primeiras curiosidades, o taxista deu-me tempo para, por minha livre e espontânea vontade, dizer:
- “Gosto muito de caminhar, ficar só comigo mesmo por alguns dias no meio do mato. A gente, quando está envelhecendo, precisa disso.”
E o velho motorista de táxi, agilmente:
- “Envelhecendo não: já somos velhos.”