sábado, 21 de fevereiro de 2015

A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO – IV – FOI QUANDO NENZÃO RESOLVEU DEIXAR A VIDA DE VAQUEIRO E FOI JUNTO A ESTEVO PARA CANUDOS!

2009 Bahia 153ret

E foi passada aquela manhã com a gente – Estevo e eu - comendo a carne da onça suçuarana com farinha e rapadura e bebendo cachaça: quando se findou uma garrafa, Estevo catou nas mãos a verde garrafa vazia, olhou para o céu e atirou com força para onde estava a morta cabeça e os fedidos intestinos da onça, um urubu já rondando em baixo voo o que restava de comida, a cabeça morta da onça agora negra, preta de vespas, marimbondos assustando os calangos com tanto zunir, e Estevo atirou forte a garrafa vazia para junto da cabeça da onça – Oxenti, vida mais dura de boa – e catou no bornal outra garrafa verde, cachaça, arrancou a tampa com os dentes e o cheiro da pinga invadiu o sertão, enfiou miolos adentro, inundou o corpo, a língua inchou, ficou molengona para falar, contar histórias, cresceu dentro da boca: mais um gole?; só mais um, estou tonto de bêbado; as pernas bambeando, o sol queimava os olhos, um torpor de preguiça tomou conta do corpo, melhor deitar, esticar o corpo no girau, barriga cheia... Dormi e acordei quase no fim do dia: a boca ressecada, uma sede dos infernos, o Estevo – esticado - roncava no outro girau, perto da janela da tapera, e o que me deu, quando acordei, foi vergonha de mim mesmo, onde já se viu homem com minha idade ficar bebendo cachaça em dia que não é dia de feira, de vaquejada nem de domingo, isso é coisa de vagabundos e sou vaqueiro, honrado vaqueiro, mas vou deixar a vida, já decidi e não é por causa da força da pinga na minha cabeça, não é por causa da tontura da cachaça, em antes de ficar bêbado já havia decidido e continuo firme: deixo, e logo, a vida de vaqueiro, vida com tanto isolamento que a língua acaba se esquecendo de como é que se fala, tanto desuso, ninguém com quem parlamentar e reclamar do sol quente, das vacas que estão a morrer de sede e de fome, contar os de bom e os de ruim e ter alguém para assistir – junto, dividindo a tristeza - no pasto as vacas e bois e borregos carregando suas peles em riba dos ossos da cacunda caatinga afora, bichos, filhos de deus, sem força para viver, quero isso mais não, decidi.

E a noite chegou com o céu estrelava devagar, nuvem alguma para agradar a esperança de chuva; nada de chuva, pura secura: uma semana em antes tinha feito – a noitinha, logo ao fim do dia - a simpatia e a reza das sete pedras de sal; conhece, não?; explico a simpatia das pedras de sal, é assim tal como procedi: tão logo o sol se escondeu no horizonte, fiz o nome do pai e escolhi sete pedras de sal grosso para esparramar no quintal, a alma com esperança, fé e muito cuidado com a simpatia, que eu queria por demais que desse certo, e orando, olhos no céu estrelado, esparramei as sete pedrinhas de sal, porque era sete o número de meses que faltavam para chegar a dezembro, deixei as pedras rodeando em volta da imagem de Santa Luzia no quintal e fui dormir esperançoso da resposta da santa e mesmo depois de deitado no girau, dormindo, continuei – toda vez que acordava de noite - pedindo a Santa que encharcasse – com suas lágrimas - as pedras de sal para eu descobrir – vendo as pedras molhadas, derretidas com as lágrimas da santa - os meses em que o sertão teria chuvas e a Santa atendeu a meu chamado, apareceu no meu quintal e chorou um choro triste, mas um choro sem lágrimas, incapaz de encharcar nem mesmo uma pedra de sal, o mês que seria de chuva, nada, todas as pedras de sal secas, secas, esturricadas, vai ter chuva este ano não, nenhuma esperança, e se iniciou ali minha decisão: vou m'imbora!

Deitei no girau pensando naquela falta de esperança, esmiolando as misérias da seca e da fome e da impossibilidade de sonhar melhor futuro, e acho que dormi assim, um sono de muita tristeza até me acordar com o Estevo que, madrugada escura, se levantou estalando os paus do girau, fazendo barulho, abrindo a boca com dois enormes dentes de ouro: AIIIIIIIIHHHIIAA e UHHHHHHHS, sentou na beira do girau, se benzeu com o sinal da cruz, levantou de vez e saiu tapera afora para desaguar; levantei-me e ficamos os dois – no terreiro da tapera – amigos, desaguando mijo de urina em cima da esturricada terra, o céu negro cheio de estrelas, uma estrela caiu, fiz figa com os dedos da mão direita: ‘dia, Nenzão!; ‘dia Estevo, pensa em ir hoje mesmo embora?; ah, sim, careço, e o compadre tá igual a eu com a cabeça doendo tanta pinga?; não gostei de ser recordado da bebedeira, queria esquecer aquilo, me envergonhava e Estevo: voum'bora hoje ou amanhã meu compadre, fico no aguardo do sal e do sol curtir o couro da suçuarana para mode fazer um colete; e Estevo continuou a parlamentar, mais sozinho do que comigo, não conferindo pedidos, consultas mas contando de decisão já tomada: levo daqui, das rezes que o compadre toma conta, o tanto que a gente achar que consegue andar viva por mais uns dez dias, vou devagar, em marcha lenta do cavalo, aproveitando as madrugadas e as tardinhas, senão o gado não aguenta e morre antes de chegar para matar a fome do pessoal de Canudos, careço de chegar o quanto antes; pensei, memoriei um pouco e disse: assim, nessas condições, do jeito que o amigo quer, acho que vai encontrar umas doze ou treze, melhor doze porque treze dá azar; e o resto?; o que sobra por aqui?, pura espelunca, vai morrer tudo, sozinhas...

No quintal da tapera, esticado com firmes troncos de berimba, banhado de sal, o couro da suçuarana secava, sem feder carniça, esticado, lembrando uma bandeira do divino colorida de amarelo com olhos negros, aqueles olhos tudo olhando, vigiando, nenhum vento, o sol dominando o mundo, abrasador, um ou outro calango com coragem de caçar suas comidas e a sombra do umbuzeiro servindo de descanso para tanto desconforto de calor; Estevo quebrou o silêncio, com sua voz grossa: carece de a gente acertar a viagem de ida para Canudos; respondi mais com pensamentos, tantas palavras necessárias: por causa de mim, tem que se mudar o roteiro, necessito de escrever e deixar bilhete no papel, escrito, para o patrão informando minha decisão de deixar a vida de vaqueiro, contar no bilhete de quantas vacas e quantos bois tinham ficado sozinhos aqui neste fim de mundo, que estava indo embora levando as vacas marcadas com o FJ e as que aqui ficaram logo morreriam, seca nunca vista igual, acabou o mandacaru, não sobrou palma, pura secura amarelada, e que eu agradecia sua confiança e que não queria mais viver a vida de vaqueiro e terminava o bilhete com bonitas palavras, tipo assim cordialmente vaqueiro Nenzão; e partimos, com doze rezes, Estevo em cavalo selado com arreio ornado de douradas estrelas, garrucha de dois canos no ombro, bornal de couro de cabrito e eu montado em uma jumenta, a pelo, nas costas – pendurado – trouxa de duas camisas, uma alpercata comprada na feira de Mocambo, as pernas apertando a barriga da jumenta, enormes orelhas: s’imbora conhecer novas gentes, religiosas pessoas, rezadeiras, enxergar o Conselheiro com estes olhos que um dia a terra irá comer... dentro de mim: esperança!

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO – III – FUGA DO SILÊNCIO!

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Mosquitos, vespas, marimbondos - em bando – semelhante a uma nuvem, zumbiam em volta do defunto corpo da onça suçuarana, de olhos meio abertos, mortos, sem brilho, da boca escorria bolotas negras de sangue que misturavam com os vivos mosquitos que zuniam impingindo no silêncio da caatinga estranha música, não se podendo classificar de feia – assustadora, sim, com certeza -, sem ritmo, música que não dava vontade de sacudir o corpo e sapatear as alpercatas até levantar poeira nos secos terreiros, rodar feliz; na noite que antecedeu aquela manhã, pouco dormi: o sono não vinha, o Estevo roncando no girau, um calor brabo, os ventos – iguais aos córregos e rios - secaram, não assopravam para aliviar um pouco, ao menos, o calor que melava o corpo, os peitos suados, o pescoço molhado, deu sede, me levantei para beber água e iniciei um pensar: como pode conseguir - o Estevo – de se vestir com roupas novas, de ter o arreio bordado com estrelas prateadas, de usar esporas de prata enfeitando o grosso e negro calcanhar? como pode ele conseguir isso tudo? o colete de couro de cabra trabalhado em cores, mostrando que foi comprado? e o homem, vi bem ontem, carregava boas armas: nada de espingarda de um cano só de carregar pela boca, carregava, isso sim, no ombro, em cima do colete de couro de cabra, um cinturão recheado de cartuchos, cartucheira de dois canos – alemã - de nome estranho, facão brilhante preso na cintura e na parte traseira do corpo se escondia o punhal com cabo de madrepérola, colorido, o aço do punhal com mais de palmo, pontudo, deve ter sangrado diferentes corações; mas, como será que Estevo conseguiu tudo isso? e, por minha conta, por minha livre e espontânea vontade desacreditei que não foi seguindo rezas do conselheiro que Estevo apresentava tantas posses, tantos bens: só reza não constrói belezas assim, isso só pode ser de invasões e saques, e naquela manhã, ainda escuro, me benzi por medo das ofensas que havia conseguido pensar: devo estar variando a cabeça de tanto calor, muita sede, e voltei deitar no girau, tentar dormir um pouco, corpo cansado, suado. Manhãzinha, a barra clara do dia ainda sem ousar de aparecer no horizonte, tudo escuro, levantei para acender o fogo, coar café e o barulho do fogo pipocando nos gravetos, esparramando amarelas estrelinhas na boca do fogão e a claridade amarela do fogo se juntou com a barra clara do dia que agora vencia o horizonte, subia céu acima e entrava pela janela de perto do fogão, e o fogo e a barra do dia clareou a tapera, fez o dia chegar e a luz bateu nos olhos do Estevo que acordou, virou de lado no girau escondendo os olhos, mas nada adiantou: a barra do dia encheu a tapera de claridade e Estevo, vencido, espreguiçou forte, soltou da garganta forte AHHHHHHUHHHHHHH! ‘dia Nenzão!; ‘dia Estevo, água fervendo mode coar café, tem farinha, rapadura; e Estevo girou o corpo no girau, acordou de vez: café com rapadura e carne de onça é o que careço para este dia de hoje; Estevo levantou do girau, se benzeu com o sinal da cruz e arrastou para fora do chão da tapera o corpo morto da onça, espantando com as mãos em barulhentos tapas os mosquitos, as muriçocas, as vespas, e até negras mangavas e enormes venenosos marimbondos – daqueles amarelos de ferrão - todos ali zumbindo e se matando na procura do melhor lugar para beber o sangue seco da suçuarana e o Estevo - xingando palavrões - arrastou a onça para fora da tapera, se estancou debaixo do pé de umbus, desaguou o mijo e arrancou um galho do umbuzeiro que usou para espantar tantos insetos e começou, com afiada faca, a esquartejar a onça suçuarana morta, o corpo endurecido pela morte, a faca afiada guiada pelas grossas mãos de Estevo separando o couro amarelo desenhado de manchas negras da carne vermelha, os mosquitos e vespas e marimbondos infernando o trabalho e Estevo decepou – forte golpe de facão a cabeça da onça - e atirou longe, para ainda depois da sombra do pé de umbu e a cabeça da onça voou até perder a força e rolou pelo meio da caatinga, cabeça redonda da onça, os dentes de fora, parece que sorrindo triste embaixo do mandacaru, e o Estevo berrou alto xingando para os mosquitos, marimbondos e vespas: aproveitem seus diabos do inferno: cabeça de onça é o de comer de mosquitos e marimbondos, deixem eu aqui em paz; e continuou o delicado trabalho de esquartejar – pacientemente, sempre xingando, mas com muita ciência - o corpo da morta onça, e jogou longe, para perto da cabeça, o bucho e as tripas.

A caatinga fedia!

Carne de onça é dura e adocicada, açucarada não sei se pela falta de costume de comer aquela espécie de carne, nunca tinha ainda usado de fazer, ou se é mesmo doce – por sua natureza a carne de onça -, que a gente comia junto com a farinha de aipim e rapadura e o café amargo, e depois - quando a garganta já seca de tanta farinha – Estevo tirou da capanga uma garrafa verde, pinga e a pinga se misturava na garganta com a farinha e a carne da onça e a rapadura fazendo um gosto muito dos bons e apercebi que matava a fome do de comer, me empanzinava, a barriga cheia e foi me invadindo um estado de felicidade de conversar, de estar falando e de ficar escutando a voz do Estevo e foi então que resolvi naquela hora: vou-me embora deste sertão, largar nos de agora a vida de vaqueiro, viver com gentes e vozes: tudo aquilo pensado e decidido nos intervalos das conversas com Estevo, ele não desconfiado do que estava a decidir, e se for só mode as pingas que bebi, me sentia tonto, era desacostumado a beber tanto assim, pernas bambas, a língua enchendo a boca de grossa, e Estevo me contando das gentes reunidas, de joelhos, orando de manhã e a tardezinha pela monarquia - orapronobis, virgo fidelis, quirieleison – as beatas, magras e enrugadas, feias com cabeças cobertas de negros véus, terços de contas nas mãos, orando com fé e me contou mais ainda do magro e santo conselheiro, das rezas e das ladainhas e das brigas e das lutas e das guerras para defender – sob as ordens do conselheiro - a monarquia dos republicanos federais armados até de canhão, e falou das necessidades de invadir povoados para arranjar comida e armas e da satisfação do corpo com moças virgens encontradas em invadidos e distantes povoados...

Resolvi que ia embora!