quinta-feira, 15 de maio de 2014

A HISTÓRIA DE ARCEBIDES–XI–E FOI QUANDO A TRIBO DE CIGANOS RECEBEU SEU IGOR COM FESTAS E HONRARIAS!

DSC04710

“Vaguear pelo mundo, sem se possuir nada e sem ter necessidade de coisa alguma, a não ser do pão de todos os dias; não humilhar ninguém; percorrer a terra, tranquilamente e sem ninguém nos conhecer! ...Também eu quero viver assim.” A mãe, Maxim Gorki.

Continuo, então, ao que andava a te contar,

Foi em uma madrugada que encontramos o acampamento da tribo de Igor no pé da serra Geral: umas quatro carroças rodeando uma tenda enorme, o toldo descorado pelo sol e pelas chuvas, puído, mais ao fundo, separadas tendas menores – uma aqui e outras ali -, no meio da praça, perto da grande barraca de lona, uma fogueira ainda acesa – o fogo minguando de cansado de alumiar a escuridão para espantar a onça suçuarana que não apareceu, dois cachorros magros, costelas à mostra, ladraram forte, bravos, dentes à mostra e Igor ralhou bravo: quieto listrado, se esqueceu do dono? e foi só ouvir a voz grave de Igor que listrado e o outro cachorro, ganiram um caim! caim! longo, os rabos girando forte, os pintos não segurando a urina, se mijaram todo, e das tendas foram saindo gentes: ciganos com os olhos remelentos, mulheres com os negros cabelos despenteados, peitos desnudos, uma velha de cabelos brancos: meu filho, meu filho! e todo aquele povo acordou barulhento, a fogueira teve seu fogo reanimado com sabugos de milho, os tocos de angico se abrasearam vermelhos e soltaram chamas amarelas, o caldeirão com água para ferver colocado no centro da fogueira, sorrisos, abraços: e por onde esteve por tão longo tempo?; andei ficando preso; e te soltaram?; não: fugi da cadeia com a ajuda destes dois aqui; e foi só então que fomos – Militão e eu – notados pelo bando de ciganos.

O dia foi clareando devagarmente, dando tempo para que a tribo de ciganos se visse toda acordada e o silêncio da madrugada foi sendo quebrado – pouco de antes dava para ouvir o barulho das minhocas fazendo tuneizinhos dentro da terra - por uma crescente onda de misturados sons, uma algazarra infernal de vozes, sorrisos, gargalhadas, cantos, um rapaz pegou o violão e ponteou uma música alegre, Igor entrou em sua barraca e ficou por lá em amores com as moças que havia roubado e enquanto um velho cigano afiava a faca para matar o cordeiro, outro colocava mais tocos de angico na fogueira e o sol apareceu – plenamente - na barra do horizonte.

Uma senhora, cabelos brancos, peitos caídos, chegou até onde Militão e eu estávamos - eu um pouco desorientado, já desacostumado que andava de ouvir tanto barulho, monte de cores, gentes, alegrias – e ofereceu a cada um caneca com café quente – ralo, doce – e perguntou pelo nosso nome - me chamo Luiza, disse - , e apontou para duas tendas que ficavam debaixo de um pé de jenipapo: estão vazias, querendo descansar...Terminei de tomar o café e senti bater em todo dentro de mim uma canseira boa, o café tirou o amargo de losna que tinha na boca, um rapazinho cigano desarreava os cavalos, senti uma preguiça boa de nada fazer, fechar os olhos e dormir, um nada pensar, desculpe-me pensando que o mundo gira de qualquer jeito, tanto faz eu estar aflitamente pensando quanto lerdamente quieto, ocioso no pensar e no fazer, e deitei na tenda debaixo do pé de jatobá e dormi.

Dormi fundo, pesado e acordei com o barulho de música lá fora, senti o delicioso cheiro da carne do carneiro assada na fogueira, os ciganos cantavam, bebiam festejadamente, não cabiam em si de felicidades, dançavam, os homens com olhares para os corpos morenos das mulheres que volteavam, rodopiavam - sensualmente – ao ritmo de uma música alegre, libertadora, e aproveitei para ficar apreciando aquilo tudo de dentro da tenda, quieto, sentindo que aquele mundo não era o meu, o mundo dos gerais, das veredas, um mundo mais quieto e talvez um pouco mais triste e contido. Saí da tenda, comi carne de carneiro assada, me ofereceram e tomei goles e goles de uma forte bebida, me senti embriagado, a língua grossa dentro da boca e os ouvidos, mais sensíveis, trazendo a música para dentro da alma e os olhos fixos nos corpos das ciganas que rodopiavam em volta da fogueira, as chamas amarelo avermelhadas dos troncos de angico subindo e queimando o ar, aquecendo meu ventre, e surge uma grande necessidade de mulher, de tocar em morenos corpos, beber seios, roçar lábios, sugar salivas, sentir as ondas de dois corpos unidos, acho que o domina o homem é o que tem no meio das pernas...Voltei, cambaleando, para a tenda e tornei a dormir.

Acordei, já escuro, o gosto de losna amargo tomando outra vez conta da boca, a saliva grossa, o ar carregado e fedido dentro da barraca, saí para mijar, tudo já escuro, as estrelas dominavam o céu negro, uma estrela caiu e fiz um pedido: quero mulher, e me lembrei das moças da rua Aurora, nas noites do dia de pagamento, na sala, um sofá vermelho e a gente bebia cerveja gelada, as moças gostavam de beber cinzano, faziam amor com hora marcada, sentavam em meus joelhos e me chamavam de Bem, Benzinho, vamos logo meu bem! Voltei para a tenda e deitei, os olhos fechados para pegar novamente no sono: senti no escuro da noite um vulto clareado pela luz das estrelas que entrava na tenda e senti delicadas mãos tocando meu corpo, se enfiando abaixo da camisa, lábios grossos – carnudos - procurando os meus, os seios firmes, grandes e longas pernas tomando conta de meu corpo, as mãos pequenas ousando liberdades maiores, se enfiando calça a dentro e acariciando minhas partes, eu querendo cegamente tatear o rosto e desvendar sua beleza, e ela fugindo do meu tocar, só ela se dando ao direito de tudo fazer, as roupas atiradas ao lado dos corpos nus, quem seria? mulher casada ou moça virgem? quem seria que quietamente me dominava, mas isso de saber quem era em alguma importância? naquela tribo eu só conhecia Igor e a velha de peitos caídos que me ofereceu café, aqui seios fortes, redondos, e dava para eu escutar o seu respirar ofegante e o meu coração batendo forte, fora do compasso de tempo, batendo apressado, e o seu tum! tum! tum! chacoalhando meus ouvidos. E, silenciosamente, tal como havia entrado o corpo saiu nu da tenda em direção à fogueira, as nádegas fortes, os longos cabelos chegando às costas, e com o andar silencioso, amassando as moitinhas de capim com o peso de seus miúdos pés e foi sumindo, devagar se evaporando pela noite, não olhou para trás, lá fora a música foi diminuindo e se escutava o coaxar de um sapo e o cricri!...cri! de um grilo noturno, até que o silêncio voltou a dominar o mundo!

De madrugada Igor chegou na tenda em que dormia e vi que ele já vinha acompanhado de Militão e acordei com seu falar: temos que palestrar, Arcebides!; e os meus olhos – acomodados com a escuridão da madrugada - se recusando a obedecer a ordem de abrir, queriam continuar descansando fechados; Militão boliu sorrindo com minha preguiça: tem vergonha não? tanta preguiça que nem parece mineiro; e Igor, agachou-se, sentou em cima dos calcanhares e com sua voz grave e calma: tenho que fugir senão logo a polícia morde meu calcanhar; nós, ciganos, resolvemos que iremos para o norte, região dos Goiás, comigo sempre um ou dois dias à frente da tribo e agora vocês é que decidem se vão mais uns tempos comigo ou se querem pegar outro caminho, sozinhos; os cavalos, agora três, estão selados, prontos, vamos?

E foi assim que o silêncio e o descanso da madrugada deu-se por finado: um pouco em antes dava para escutar o cair do sereno para orvalhar as plantas, e agora, tão de repente, ainda escuro, o céu coalhado de estrelas, e já vem a brava necessidade de se tomar decisões, para onde vou? será que acompanho, mais o Militão, o cigano Igor nessa fuga sem fim, indo agora para o norte e eu querendo ir para o leste? mudo eu o meu rumo? deus do céu, careço de repouso de tanto fugir; e eu comigo mesmo ali pensando e os olhos de Igor exigindo respostas; o Militão, ali do meu lado, tomou a iniciativa de falar: qualquer paixão me diverte, até a hora que eu encontrar um circo para eu poder cantar e dançar eu sigo vocês para qualquer ponto cardeal; então vamos, falei e concordei por fora, mas comigo mesmo decidido que o que eu carecia era de um ou dois dias para eu saber tomar um rumo mais meu, de acordo com o que eu queria, só que eu não tinha certezas do que queria e tinha então que resolver um rumo a tomar, mesmo sem certezas de saber o que, realmente, eu queria.

O rapaz que tocava alegres músicas no violão chegou com três cavalos arriados; Igor tomou as rédeas do maior, um cavalo negro, montou e do alto do animal nos olhava pedindo pressa: embora antes que clareie o dia!

quarta-feira, 7 de maio de 2014

A HISTÓRIA DE ARCEBIDES–X–E FOI QUANDO O CIGANO IGOR ENCONTROU SUA TRIBO!

DSC05758

“...Ficam, portanto, os amigos avisados de que na história do Silva há uns floreios. Acho que ele procedeu com acerto: quando um cidadão escreve, estira o negócio, inventa, precisa encher o papel. Natural. Conversando, como agora, a gente só diz o que aconteceu. É o que eu faço. Na sala havia quatro jaqueiras. Apenas.” Alexandre e outros heróis, Graciliano Ramos.

Naquela noite da fuga da cadeia caminhamos, em direção a leste, dentro de um silêncio total no mundo, silêncio que vez ou outra era quebrado pelo barulho de nossos passos no arenoso terreno- tchoc! tchoc ! tchoc! - , ou pelo pio de uma coruja e nessas horas Militão fazia, sempre e intuitivamente, o sinal da cruz: fechava os olhos e com a mão direita batia na testa – em nome do pai - , depois no peito – do filho – no lado esquerdo do peito – do espírito - , no lado esquerdo do peito – santo – até a mão chegar aos lábios – amém - ; dá azar escutar coruja piar, bicho do demo, dizia ao final de sua reza e Igor: coruja é filho de deus igual a qualquer outro passarinho, deixe de pensar besteira; e eu meneava um sim com a cabeça, sinal de ter concordado com o cigano: isso mesmo Militão, pensar besteira chama desgraça.

A lua gorda, cheia, foi caindo para o oeste, querendo se esconder do nosso mundo para ir alumiar outras bandas, outras terras e gentes, e o dia foi despertando, clareando, na barra do horizonte o sol aparecia, iluminando de vermelho claras nuvens – não vai chover hoje – ; à nossa frente um capão de mato denso, fechado e Igor emendou: vamos ficar ali escondido por hoje. E os três – Igor, Militão e eu – sem as paredes da cela da cadeia a nos cercar, deitamos no chão, debaixo de um pé de jatobá – frondosa árvore – e descansamos nossos corpos, cada um sonhando o que queria: eu querendo com o leste, Igor sonhando em encontrar sua tribo e Militão sonhando seu sonho de cantar no circo... Acordamos protegidos pela sombra do pé de jatobá, sol a pino: deve ter córrego por aqui, escuta o barulho?, falou Igor e Militão colocou a mão em concha no ouvido, enrugou a testa: sim, tem, o barulho vem de lá; e enquanto seguíamos Militão na procura do córrego, passamos por um pasto verde, bonito e Igor: tem cavalo por aqui, sinto o cheiro; e eu cheirei o ar, respirei mais fundo, senti cheiro de araticum maduro, senti também o cheiro meio azedo de pequi e foi então que me dei conta que ouvia bem o rumor das águas do córrego, mas não escutava barulho de patas de cavalo de que falava Igor, nem sentia seu cheiro e caminhei pensando naquela incompetência minha e foi ai que vi uma matinha verde, comprida, que seguia feito um mandarová, cobrindo do sol o córrego de águas frias, claras; não me lembro agora se vi ou se sonhei aquele pedregoso córrego: um córrego com muitas gambevas nadando em seu fundo, na correnteza borbulhante das águas, escondidas no meio das negras pedras e senti fome, me deu grandes vontade de comer lambari ou gambeva fritos, crocantes, vestidos de farinha de milho, bateu saudade de entrar em um bar e beber cerveja gelada, olhar o passar de uma moça bonita, ver seus lábios carnudos, inventar suas pernas roliças e tocar seus seios firmes, parecidos com pequenos mamões; mas isso lá são horas de pensar besteiras e mudei o pensamento dentro de minha cabeça, ordenei aos miolos que se entretecem com outras coisas mais reais.

Igor continuava a buscar de onde vinha o cheiro dos cavalos, o nariz comprimia tanto o ar que puxava para dentro, e vi quando seus olhos brilharam de contentamento: estão ali, por aqueles lados, tem mais de um cavalo, falou baixo ao mesmo tempo em que meteu dois dedos na boca, prendeu a língua e soltou um assobio agudo: fiii! fiii! , e falando mais com o coração do que com a boca: vem! vem!, vem! foi andando devagar, cuidadosos passos, sem nenhum barulho, foi saindo da beira do córrego, caminhando a passos surdos de quietos, os olhos atentos e Militão cochichou no meu ouvido: nossa, e não é que o cigano é danado de mágico, achou os cavalos; e no pasto verde, mato baixo, os dois cavalos vieram vindo – obedientes – em direção ao cigano: vem! vem! vem!, que esticava as mãos em direção aos animais, vem! vem! e tanto Militão como eu ali parados, admirados da arte do cigano, vem! vem! e vimos quando ele acariciou o focinho do cavalo branco de crinas longas, olhar meigo: vem! vem! abraçou o animal pelo pescoço e chamou o outro cavalo, na verdade uma égua zanha: vem! vem!... e olhou suplicante para que nos aproximássemos – chega aqui vocês dois, depressa – e obedecemos ao que o cigano ordenava e Igor disse: vamos montar e fugir nestes cavalos; e eu: em pelo?; sim, por enquanto tem que ser assim, você monta na égua zanha; e eu?, perguntou Militão: você vai na garupa do branco comigo...Tudo isso acontecendo sem antes ter sido pensado, nada combinado e Igor montou o cavalo branco, puxou Militão que se ajeitou na garupa e – sem freio ou cabresto - guiava o sentido do caminho que queria roçando com as mãos as orelhas e focinho do cavalo branco, com os calcanhares – delicado - cingia os flancos do animal, perto do sexo, para imprimir a velocidade que desejava e sempre, a todo momento, acariciava o pescoço do animal: bom! amigo! trote nessa boa marcha picadeira para doer menos nossas bundas, estamos em pelo cavalinho amigo...o céu azul, nenhuma nuvem branca para a gente brincar de inventar com que bicho ela se assemelhava, os cavalos marchando, Militão grudado na cintura do cigano e eu agarrado nas crinas da égua zanha, o vento acariciava o rosto e eu gostando daquela aventura de seguir o mágico cigano em seu cavalo branco.

A noite estava querendo chegar quando do alto de um morro deu para enxergar, lá embaixo, um amontoado de casas, uma pequena vila – Ituaçu -: pouco mais que uma ou duas ruelas de chão batido, arrodeadas de pequenas casas – uniformemente caiadas de branco e azul, uma ou outra desobedecendo à ordem imposta pelos costumes de então tingida de forte cor de rosa - , as casas grudadas uma na outra, uma cruz grande de madeira quase no final da principal ruela, junto a uma igreja branca, com duas torres, uma delas vazada para caber o sino de bronze, um pouco mais abaixo o posto de saúde e uma escola. Igor desviou o olhar da vila, vista do alto do morro e me encarou, firmando seus olhos nos meus, pedindo atenção: pois agora você e eu descemos o morro e vamos para a vila, enquanto o Militão fica aqui tomando conta dos cavalos, carecemos de arrumar dois arreios, baixeiros e cabrestos para selar estes animais e continuar nossa fuga; mas como faremos isso?; só chegando lá para a gente ver o que pode ser feito. Chegamos os dois na principal rua da vila com suas casas emendadas uma às outras – parede meia - , cachorros esticados dormindo na calçada coberta de largas pedras arenosas, em uma casa de janela azul um vaso de flores, um jumento come o que sobrou de moitas de grama na rua sem calçamento; acima das janelas de uma casa branca, escrito com letras góticas, desenhadas em marrom escuro, lê-se: Selaria São José, de Alcides Mancini & Irmãos, a porta da casa aberta e Igor foi entrando: oi de casa, boa tarde, venho em paz; entramos sala adentro, um forte cheiro de couro, a sala repleta de arreios esparramados pelas cadeiras, pendurados em ganchos, pelas paredes cabrestos, baixeiros, pelegos de lã de carneiro, esporas, estribos; do fundo da sala, em voz grossa, vem a resposta: boa tarde, em que posso servir os amigos que veem em paz? quase mesmo tempo, em voz baixa: vá pra dentro Emerenciana; e uma mulher alta, forte, com a enorme barriga sustentando filho prestes a nascer, sai da sala, andando devagar, os passos com os pés arrastando o chão, pesada, andando com as pernas abertas como caminham as grávidas no final dos oito meses e o cigano Igor: para quando é esperado o filho, meu bom senhor?; pra próxima lua; pois o meu não vai esperar a virada da lua, é coisa para amanha ou depois, as dores do parto já estão vindo quase de hora em hora e é por isso que estou aqui, preciso de selar dois cavalos, nossa carroça enguiçou, os aros da roda quebraram e tenho necessidade de levar a mulher para o acampamento ainda hoje; que tipo de arreio o senhor precisa? Igor olha pela sala, tantos arreios, aponta primeiro para um cutiano enfeitado com estrelas de prata e depois para outro arreio comum, cabeça larga e falou: quero aquele cutiano para mim e este outro aqui para minha mulher; por quanto o senhor me vende os dois arreios acompanhados, cada qual, de cabrestos, freios, baixeiros e pelo menos um pelego de lã de carneiro para amaciar a bunda de minha mulher, pobre coitada, sofrendo com as dores do parto? pago o senhor em dinheiro vivo; o homem coçou a cabeça, tirou um lápis de trás da orelha, rabiscou umas contas em um pedaço de jornal velho, fez preço que Igor aceitou sem regatear, meteu a mão na algibeira e enquanto contava o dinheiro ia colocando as notas, uma em cima da outra, no balcão, cuidando de colocar as notas de maior valor por cima; vamos, me ajude a carregar a tralha Arcebides, tenho pressa; eu ainda parado, assustado com a coragem mentirosa do cigano, a pilha de dinheiro sobre o balcão, o dono da selaria separando baixeiros, cabrestos, freios e o pelego de lã, ia juntando e enfiando em um saco de aniagem; Igor pegou um arreio – o cutiano – olhou para o dono da selaria e disse : confere o dinheiro, meu senhor, temos pressa de ir embora, quero levar a mulher para parir, não passa dessa noite; e o homem concentrado em enfiar – com minha ajuda - os cabrestos, os freios, os baixeiros no saco de aniagem: tá certo, vi o senhor contar o dinheiro nota por nota, não carece de conferir, e vou orar para que nossa senhora do bom parto zele pelo nascimento de seu filho, que venha cheio de saúde; vai zelar, senhor, a nossa senhora do bom parto, vai zelar pelo parto de nossas mulheres que vão trazer filhos para alegrar nossas vidas, respondeu Igor que enquanto falava foi se ajeitando de frente para a mesa, perto da pilha de notas de dinheiro, olhou para o dono da selaria, percebeu que ele estava de cabeça baixa enfiando os baixeiros no saco, rápido, recolheu as três das últimas notas do monte de dinheiro, enfiou no bolso, sorriu e disse: então boa tarde amigo, que deus proteja; boa tarde e boa viagem, eu aqui espero que venha um filho homem desta vez, já tenho quatro mulheres em casa e quero agora filho homem para continuar o meu negócio com arreios; nossa senhora do bom parto te dará o filho homem, adeus; adeus.

Saímos da selaria com um arreio nas costas e cada um segurando uma ponta do saco de aniagem com os acessórios, dividindo o seu peso; e eu nervoso me vi apressando o passo, um frio nas espinhas de medo de o italiano descobrir o roubo das notas, e Igor percebendo, com sua sempre voz calma: devagar, não tenha medo porque o seleiro, com certeza, deve estar agora contando para sua mulher a boa notícia que o cigano lhe deu de que ela terá um filho homem, na crença geral de que todos os ciganos são adivinhos....

Minha cabeça rodeava confusa e chegamos, os dois, suados, cansados, no alto do morro e Igor, imediatamente, se pôs a selar os cavalos: acariciava o pescoço dos animais, cobria os lombos dos cavalos com os baixeiros comprados, jogava o arreio em cima e de tão forte que apertava a barrigueira que a barriga dos cavalos pareciam se dividir em duas e os cavalos soltavam barulhentos ventos, uma catinga danada e Igor continuava a acariciar as ancas gordas dos animais: bom, muito bom, agora a caminhada vai render mais, bom...e assim que selou os dois animais falou, calmo, como sempre, muito embora sem admitir contestação - o cigano se sentia chefe e fazia uso deste poder - : melhor a gente pegar logo a estrada, aproveitar a escuridão da noite que está chegando e sumir pra longe daqui.

Montou em seu cavalo branco, com uma mão ajudou Militão a subir na garupa e sem olhar para trás cutucou o flanco do animal que saiu marchando - a macia marcha picada, estradeira – o focinho chegado ao peito pela força do freio de boca esticado e eu montei na égua zanha e segui Igor, que ia à frente, e no silêncio da noite ninguém trocava palavras. Eu, comigo mesmo, discutia com meus miolos: o que estava me injuriando era de a mulher gorda de filho e seu marido terem sido roubados? mas os cavalos que andávamos também tinham sido roubados, o que me injuriava então?, continuei trotando, seguindo o cigano, sem decidir o que me injuriava, o que me entristecia, deve ser o cair da noite, isso passa; vez ou outra Militão cantava baixo uma canção lamentosa e seguimos trotando por duas noites, descansando o corpo e os cavalos durante o dia, fugindo agora rumo ao norte, e teve muitos instantes que os cuidados do cigano Igor tinha para comigo e com Militão, me levava a acreditar na bondade dos homens, fugia de meus pensamentos a possibilidade de malvadeza, e aquilo me dava uma felicidade boa, uma alegria de achar que valia a pena viver, mas ocorria também de em muitos instantes eu me entristecer pelo conhecimento das vilanias humanas.

Uma manhã, após a terceira ou quarta noite toda trotando, encontramos abrigo em uma choupana abandonada e cada um procurou um canto para descansar, isso depois de desarrear os cavalos, puxar água com um balde de uma cisterna funda , beber e dar aos cavalos, e foi nesse dia que Igor me convidou para conversar, os dois deitados no chão, com sono e cansados e ele iniciou a palestra: você, por acaso, já viu uma tribo de ciganos?; sim, já vi; pois então fica mais fácil você entender nossos procedimentos: nós ciganos, não plantamos, não colhemos, não temos raízes, vivemos a vagar mundo a fora, e então como arranjamos para comer e beber? o que fazemos se não plantamos e nem criamos? é assim que vivemos: vendemos tachos de cobre, lemos as mãos em troca de algum miúdo de dinheiro, roubamos cavalos e mulas e éguas, mascaramos os animais roubados e vez ou outra chegamos a vendê-los de quem roubamos...é assim que somos.

Militão não escutou a conversa: dormia no canto da cabana abandonada, o sol se punha forte atravessando com seus raios os buracos das velhas e tortas telhas de barro; Igor virou o rosto para o lado da parede de pau a pique, cobriu o rosto com o chapéu e logo se ouvia o seu ronco forte; cansado, dormi logo. Duas noites depois encontramos a tribo de Igor acampada às margens do rio Preto, nos pés da Serra Geral, divisa da Bahia com Goiás.