sábado, 13 de abril de 2013

O MORRO CABEÇA DO PADRE - VII - NOVA ORDEM NOS PASSAMENTOS!

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Carlos chegou em tempo para a missa do sétimo dia da morte de sua mãe Antônia. Seis meses longe e, para mim, chegou mais bonito, mais crescido, fiapinhos de bigode acima dos lábios finos e delicados. Bom menino, bom filho, pensava, emocionado, ao vê-lo, paramentado, ajudando Frei Agostinho na missa em celebração à alma da mãe: permaneceu - durante a cerimônia - contrito, elegante nos gestos, cerimonioso no olhar triste, com ar de um que de desesperançoso. Respondia - em latim - aos introibus ad altare Dei com segurança, a voz mudando pulando de aguda de menino para grave de rapazinho: vez ou outra lágrimas corriam em seu rosto bonito, os olhos e a boca da mãe, um pouco parecido comigo na testa grandona e nos cabelos negros, ondulados; ao ver suas lágrimas eu chorava quieto, por dentro.

Como havia terminado o primeiro semestre no Seminário teria um mês para ficar em Venda Nova e ai se deu o seguinte: Frei Agostinho resolveu, depois de falar comigo, em oferecer um período de folga para o sacristão Nenê que carecia ir até Cajuru, em São Paulo, visitar sua mãe doente e em seu lugar ficar Carlos como sacristão: ajudar nas missas e nas rezas, abrir a igreja e fazer soar o sino avisando das cerimônias, ajudar nos batizados dos anjinhos – aprendeu a escrever as certidões de batismo, deixando apenas o vazio para a assinatura do Frei Agostinho - e outras coisas a mais, sempre com o consentimento do padre e, quando informado de suas obrigações, sentiu-se importante o menino ou rapaz Carlos, meu filho.

Outra coisa: te contei dos saraus literários que o Doutor André fazia no Bar Central dos quais participava, inicialmente, o Dimas, eu e o Senhor Álvaro. Pois bem: o Seu Álvaro, depois dos acontecidos com sua mulher Esmeralda e frei Marcos, sumiu, virou pó tal qual um urutau; com a doença de Antônia, meu comparecimento ficou prejudicado por dois motivos: primeiro, não julgava certo deixá-la sozinha em casa, doentinha, dá de que podia carecer de minha ajuda e também por sentir uma culpa que me perseguia: eu tão sadio, forte, falando de livros e ela lá caída, cada dia mais fraca, ainda bem que nada lhe doía, ela me dizia: morte das melhores esta que vou morrer; não fale assim não minha mulher, eu respondia, mas enfim, eu mais faltava do que ia aos saraus até que uma noite, no mesmo dia em que fez uma visita a Antônia, o Doutor André chegou em casa com o Dimas: em sua mão uma capanga com três cervejas enroladas em jornal para não perder o gelo. Os saraus passaram a ser no alpendre de casa: deixávamos a porta da sala aberta para que Antônia pudesse ouvir e, muitas vezes, na ponta do pé - silêncio absoluto – eu ia até o quarto onde ela descansava e a via com os olhos atentos, acesos e um brilho de felicidade no rosto magro, branco, sem o vermelho que enfeitava suas faces. Agora morreu!

Uma tarde, estava no escritório da máquina de beneficiar café quando ouvi o dém...dém, dém do sino da igreja: aquela batida do sino com um dém – e um segundo de espaço silencioso entre os outros dois dém-dém pertinho, encostados um no outro era toque de passamento: alguém tinha morrido e o cortejo fúnebre iria correr a cidade até o cemitério que ficava logo atrás do campo de futebol, perto de uma das casas das putas da cidade. Ao ouvir aquele toque de sino as mulheres já se preparavam para fechar as janelas da casa quando o caixão passasse e os homens para tirar o chapéu da cabeça e colocá-lo atrás do corpo, colado na bunda, escondendo o cigarro que não queriam apagar mas que era pecado fumar quando o defunto passava. Quem morreu? Não fui eu. Mas quem foi que morreu? Se fosse defunto com posses teria caixão envernizado, enfeitado com debruns dourados; agora se o passamento fosse de anjinho aí o caixão era todo branquinho e se fosse indigente, morto na Santa Casa, o corpo era enrolado em uma toalha branca e, meio torto, enfiado na carroça da prefeitura, arriada ao burro preto, que de manha carrega o lixo da cidade e leva para perto do ponteleão onde o lixeiro joga tudo, faz uma fogueira, joga gasolina e mete fogo, queima tudo; agora se o passante fosse pobre, sem recursos, o corpo vinha meio emborcado, duro e curvado, em uma rede improvisada de lençol ou pano de colher café, este melhor por ser mais forte e resistente, aguenta defuntos mais pesados, apesar de que a maioria dos defuntos serem de pouco peso, mais ossos e peles, o pano preso em uma vara de guatambu, um homem segurando a vara na frente, apoiado no ombro e outro segurando atrás: e o corpo do defunto obedecendo ao ritmo dos carregadores, chacoalhando para cima e para baixo, devagar ou depressa, sempre ritmado aos passos lentos dos contritos e orgulhosos carregadores, quando um cansa, passa a vara de guatambu para outro e se este é o da frente muda um pouco o ritmo, mais depressa o mais devagar, varia de acordo com a pressa ou não de quem carrega o corpo, porque quem segue tem que ir atrás e pronto, velho ou doente tem que apressar ou não o passo, se bestar fica para trás e o corpo enrolado no lençol chega antes no cemitério e lá , quando o coveiro vê que o morto é carente de recursos, faz logo a cova, enterra rápido, sem tempo de jogar flor no corpo do morto, e as pazadas de terra enterram depressa o defunto, tempo só para um sinal da cruz , sem tempo para ave-marias ou pai nossos rezados pela a alma do passante.

O sino aquele dia: dém...dém, dém, sob o sol ardente, a praça e as ruas vazias de gente, todo mundo escondido dentro de casa fugindo do quentume do sol. Quem morreu? Eu não fui, quem será então?

Seu Tinoco sabia: quem morreu foi puta Joviana: de tuberculose, doença sem cura; os tuberculosos ricos iam para Campos de Jordão, passavam frios e voltavam para morrer aqui em Venda Nova, onde era mais quente e mais perto da família; se usava queimar tudo o que pertencia ao morto de tuberculose: as roupas, o colchão e os pratos e garfos e canecas que o doente usava para comer e beber separadamente dos da família eram jogados na fogueira: todo mundo morto de medo da tuberculose. Bacilo de Koch bandido dizia o doutor André: pega fácil e mata mesmo!

E foi a puta Joviana que morreu de tuberculose e meu filho Carlos tocando o sino? Corri para a igreja. Puta defunta não passa pela igreja; foi assim com as outras putas que morreram – a Dasdores e a Iracema - e era assim, assim era; e a puta Joviana viria enrolada no colchão, as pontas amarradas na vara de guatambu, Santista segurando a vara na frente e Chicuta atrás e a defunta Joviana pequena, magrinha de nascença e pela doença, pesando quase nada, fácil de carregar e o sino dém...dém-dém e eu correndo para mandar Carlos parar de tocar o sino, corpo de puta não passa pela igreja, não tem perdão, igual a quem que suicida: direto pro fogo do inferno, pecado mortal. Corri e corri os sete quarteirões que separavam o escritório da igreja. Cheguei esbaforido para mandar Carlos parar de bater o sino, fechar a porta da igreja, ir para casa – foi puta que morreu , meu filho, e então, por a morta ser puta, não tem o corpo benzido na igreja, não te ensinaram isso no seminário ainda? pare de tocar o sino, feche a porta da igreja e depois peça desculpas a dom Agostinho.

Cheguei à praça: a porta da igreja com suas duas folhas azuis abertas, deixando o sol entrar iluminando tudo: o altar mor, os bancos de madeira escura, o São José e seu burrinho com Maria e o Menino; tudo, tudo recebendo a claridade e o calor do sol que inundava Venda Nova naquela tarde de julho. O céu de um azul infinito, claro, sem uma nuvem, aqui e ali um pontinho negro que era um urubu voando longe. Entrei igreja e a dentro, sem tempo de fazer o sinal da cruz, e vi meio ao corredor a mesa de metal, rodeada de quatro velas enormes derramando cera nos candelabros de prata; os quatro candelabros de prata, rococós, aritmeticamente colocados em cada canto da mesa, e Carlos, paramentado com uma batina preta, ajeitava a toalha branca sobre a mesa de metal e Frei Agostinho, paramentado de roxo, breviário à mão, olhos fechados, orando, naqueles momentos em que parecia um boi no pasto: quieto, buscando o infinito, ruminando as desgraças do mundo. Entrei falando alto: Foi a puta Joviana que morreu; Joviana foi ao encontro de Deus, seu Pai, respondeu Frei Agostinho e vi os olhos de Carlos brilhar um brilho de felicidade, de contentamento!

Na igreja, com o sol entrando pela porta aberta, estávamos os três quando Joviana chegou enrolada em um lençol branco, encardido, com uns retalhos costurados para tampar buracos e puídos, lençol velho, com certeza; Frei Agostinho orientou Santista e Chicuta para que fossem delicados e colocassem o corpo de Joviana com a cabeça voltada pro lado do altar mor, ajeitava a toalha branca que cobria a mesa de metal, veio um ventinho que entrava pela porta aberta da igreja que balançava o lume das velas- mas sem força para apagar - e as velas, brilhando o que podiam, sabendo do impossível que era aluminar corredor e a mesa e o corpo de Joviana de tanto que já estavam alumiados pelo sol. O corpo, pequeno, magro, escuro, meio torto, emborcado foi ajeitado em cima da mesa, Frei Agostinho querendo ajeitar as mãos da defunta sobre o peito, mas as mãos e os braços duros não obedeciam ao padre e ele desistiu e colocou um terço sobre o peito de Joviana e iniciou as rezas de encomendação do corpo. Enquanto rezava surge do nada, do vazio uma mosca verde, varejeira, e zunia suas asas, voava e voava e ora pousava no rosto, no nariz ou mesmo na boca da defunta e Carlos espantava com as mãos, desgraçada de mosca, eu pensava, não respeita defunto pobre, mas no enterro do pai do prefeito ela também zunia em cima do caixão com debruns de ouro, mas não conseguia pousar no rosto do defunto porque tinha um tule que protegia...E o cheiro de defunto se misturava ao cheiro das velas queimando e só faltava misturar com o cheiro das rosas que tinham no caixão do pai do prefeito e aqui, agora, no passamento de Joviana flor nenhuma. Pela porta aberta da igreja entraram, para ver a cerimônia, o Seu Tonico e a Cidona: E foi então, depois das rezas de encomendar o corpo que Frei Agostinho untou com óleo o rosto e as mãos da defunta e ordenou a Carlos que subisse ao coro para tocar o sino. Todos fizemos o sinal da cruz, Santista e Chicuta pegaram a vara de guatambu, engataram as pontas do lençol e saíram – cerimoniosos, passos lentos, ouvindo um réquiem que o vento tocava – carregando o pequeno e magro corpo da defunta puta Joviana.

E depois foi a maior falação na cidade: uns contra, outros a favor! Puta agora, quando morre, passa pela Igreja? Acho errado, o certo era com Frei Marcos. E a falação piorou e te conto porque, e foi pelo seguinte: Frei Agostinho, não contente apenas em benzer o corpo das eternas pecadoras, na missa de domingo, quando subiu ao púlpito se esqueceu um pouco de falar sobre o pequeno menino de Jesus no colo de sua Mãe, acariciado, rostinho rosado e falou que Joviana teve, durante toda sua vida o seu corpo desrespeitado pelos homens e que em sua morte, pelo menos, merecia respeito, e todos ficaram quietos, até porque na Igreja, hora da missa, não se pode falar, e também por ser muita novidade o que ouviam - necessário de pensar muito antes de concluir – de Frei Agostinho em sua prédica naquele domingo, tanto na missa das seis - mais dos pobres – quanto na missa das nove – mais frequentada pelos ricos, mulheres com tailleurs, homens em seus ternos de linho, ou de casimira inglesa, porque julho é mês de frio. E antes de descer do púlpito, como para que dizer que não era apenas um desejo seu, mas antes ensinamento da Igreja, abriu a Bíblia com capa de couro preta e leu:

“Meu filho, derrama lágrimas sobre um morto

e chora como um homem que sofreu cruelmente.

Sepulta o seu corpo segundo o costume,

e não descuides de sua sepultura.

Chora-o amargamente durante um dia, por causa da opinião pública

e depois consola-te de tua tristeza,

toma luto segundo o merecimento da pessoa,

um dia ou dois, para evitar as más palavras.”

sábado, 6 de abril de 2013

O MORRO CABEÇA DO PADRE: VI - O POR DO SOL NO CHAPADÃO!

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Frei Agostinho: minúsculo em sua fortaleza, os olhos grandes - indecisos entre cinza e azul claro, variando, tal qual um camaleão, conforme a claridade - , cabelos lisos, rala barba – sempre bem feita –, a boca delicada, os lábios finos e os dentes perfeitos calcados no rosto de pele clara, quase transparente, davam ao padre um que de inocência e firmeza, doçura e amargura, delicadeza e segurança, mas acima de tudo o rosto inspirava bondade e mansidão. Quando quieto, lendo seu breviário, lembrava um pouco um boi manso no pasto, ruminando pensamentos, os olhos perdidos na imensidão do mundo, alheios às dificuldades que a vida de padre exigia do moço de trinta e poucos anos. Quando no púlpito a fala mansa querendo mais dizer do menino de Jesus protegido no colo da mãe Maria do que do Jesus pregado na cruz, sangrento, chagásico. Venda Nova adotou o pequeno padre como filho. Tanto assim que depressinha, pouco tempo depois de sua chegada, já não mais se falava nas esquinas e nos bancos do jardim da praça - voz baixa, olhos e ouvidos atentos vigiando se ninguém escutava - dos sins e dos nãos da saída apressada do Frei Marcos. Nem mais se lembram. Para onde foi? Verdade mesmo que voltou para sua terra, na Espanha da Europa?

Seu Álvaro deixou de morar em sua casa na cidade; mudou-se para sua fazenda, isolou-se. Pouco aparecia em Venda Nova e quando vinha, ficava às sombras, semelhante a um urutau, passarinho difícil de se ver, de enxergar; se trancava no escritório do banco em tratativas de negócio com o turco Nagib, assinava e recebia promissórias, duplicatas, dinheiro muito; saia do banco e passava na máquina de beneficiar café e ali, depois do copo d´água que pegava na bilha, regateava, choramingava prejuízos até conseguir o que queria que era negociar a safra completa, vender os grãos no pé, calculando as sacas por alqueire plantado pois era assim que se sentia garantido; nada a perder caso geasse forte e queimasse as frutas e além do mais a colheita, a secagem, o ensacamento e o transporte dos grãos deixava de ficar por sua conta e responsabilidade. Hábil, calmo, educado, todos concordavam: Seu Álvaro continuava a negociar bem o café produzido nos morros pedregosos de suas propriedades. E Esmeralda, sua esposa? Sumiu de vez: nem mesmo para a missa do galo comparecia; se dizia que os dois dormiam em camas e em quartos separados, os corpos longemente desunidos, não perdoada pelos pecados cometidos, o marido mudo e calado, ensimesmado, triste; a única pessoa com quem lhe era permitido conversar era com a preta Luzia: cozinheira, lavadeira, de boa alma e boca fechada! E por isso mesmo, pela boca fechada de Luzia, mais se supunha e devaneava do que se sabia, mesmo, dos fatos que aconteciam na fazenda.

E o tempo continuava a correr devagar em Venda Nova. Poucas novidades, obrigando as pessoas a buscar devaneios, a inventar o disse que disse, a olhar desconfiado, ouvidos atentos aos passos lentos nas calçadas. Nosso filho, Carlos, coroinha, rezava a missa em latim – afirmava que entendia o que recitava – tirou o diploma de grupo e, orientado por Dom Agostinho, foi para o seminário em Guaxupé: estudar para ser padre.

Antônia, no primeiro fim de semana sem o filho em casa, quis ir até a Cachoeira Mal Assombrada. Passamos na casa do Tibim que ofereceu almoço: galinha de cabidela e taioba: música em sua flauta alegrando os corações e Antônia cantou bastante, já fugindo da saudade futura do filho.

Nossa vida? Assim: Antônia dando aula de manhã para as crianças e em duas tardes ia para a igreja onde, com Frei Agostinho ao harmonium, ensaiava o Te Deum com o coro das filhas de Maria. Meu trabalho no escritório da máquina de beneficiar café bem aprendido, dava para fazer rápido: tratava os negócios de dinheiro no banco do Nagib, fazia o livro caixa, as cobranças, as duplicatas e as promissórias: sobrava tempo, muito mesmo, para ler. Lia o Estado de São Paulo – recortava e montava uma pasta com a cotação do café na Europa e em Nova Iorque para conhecimento do seu Tó – os livros emprestados pelo Doutor André e também comprava os livros da coleção Clube do Livro. O Clube do Livro era uma edição popular de clássicos da literatura e que tinha na contracapa, dentro de um pequeno mapa do Brasil, o versinho de Castro Alves: “Oh bendito quem semeia, livros, livros á mão cheia, o livro caindo n’alma...” não me lembro bem, mas continuava: “é germe que faz a palma, é chuva que faz o mar”, não sei, agora, se era assim mesmo, o vero que vinha dentro de um mapa do Brasil, bonito aquilo!

Às tardes de sábado - livres sempre - íamos, Antônia e eu, apreciar o por do sol no Chapadão. Do alto se via montanhas e montanhas lá embaixo, o rio parecendo uma placa retorcida e espelhosa ao meio as pedras negras e do arvoredo verde imenso; a branca torre da igreja e os telhados da cidade se enegrecendo, às nossas costas, o sol se escondendo. Logo acima das montanhas que marcavam a linha do horizonte nuvens formavam desenhos os mais variados e a gente brincava de adivinhar qual era o bicho – ou anjo - formado pelas nuvens: olha aquela ali: um cachorro? É mesmo, veja os seus os olhos ali, a boca – tem até os dentes, veja - , a cauda, e o tempo passando; a aura prateada que se formava atrás das nuvens como a aura de Nossa Senhora e do Menino Jesus que tinha na igreja – ia perdendo a claridade, a sua intensidade e o sol, enorme bola vermelha ia devagar se escondendo enfiando-se no meio do morro da Onça, onde tinha a cachoeira dos Francos, com seu poço bom de peixe – bagres e mandis - e de nadar. Quando escurecia e a gente voltava para casa, mãos dadas - o povo falando daquela mania besta de andar de mãos dadas, coisa de grã-fino, de paulista da capital, e a gente gostando tanto e tanto do calor da mão um do outro, do suorzinho que escorria de mão em mão, e às vezes eu não aguentava levava aos lábios e ela ria bonito - , quietos ou falando das formas das nuvens, das saudades, eu contava de livros e ela de canções: amores.

A primeira queda de Antônia - o joelho direito dobrado, sem força - se deu na frente da igreja, em uma tarde quando ia ensaiar o coro com as Filhas de Maria. Ninguém, nem mesmo ela, deu importância: joelho mole, caiu, levantou, limpou a roupa e foi para o harmonium ensaiar o Tantum Ergum a duas vozes. Semana depois caiu duas vezes: na escola, dando aula, e em casa, de noite indo para o quarto. Normal? Sim: acho que é a idade que chega e dobra meus joelhos, dizia e eu aceitava. Mas as quedas se tornaram constantes: seis meses depois veio a necessidade de usar muletas, feitas caprichosamente - sob medida para o corpo pequeno de Antônia – pelo marceneiro italiano Francisconi.

Procuramos consulta com o Dr. André: examinou, apalpou, pensativo fez mil perguntas e por fim: não dá para ter certeza, mas pode ser uma doença neurológica; vou estudar melhor, consultar outros médicos e assim que eu tiver alguma noticia eu chamo de volta. Acha que é grave, Dr. André? perguntei ansioso e ele: não posso afirmar antes de estudar melhor, vamos aguardar um pouco. Força, minha filha, não há de ser nada, vamos cuidar muito bem disso, falou finalmente à porta, despedindo-se de Antônia.

Na semana da consulta, no sábado, logo de manhã, Antônia resolveu que iríamos passar o dia na Cachoeira Mal Assombrada. Ajeitei a charrete e fomos. Como sempre passamos pela tapera do Tibim, que convidou para o almoço: galinha de cabidela e mandioca é o suficiente? Claro que sim, respondemos. Não houve flauta nem cantorias naquele dia: Tibim jogou os búzios para ler o futuro. Abriu a pequena janela de sua cabana, se concentrou – iyalorixá -, saudou respeitoso, os orixás, fez um círculo com os guias sobre uma toalha branca, acendeu uma vela e colocou ao lado um copo com água limpa da cachoeira; os búzios tinham passado a noite no sereno tomando a força da lua. Cerrou os olhos e concentrou-se para dar início às consultas com as divindades fazendo perguntas - queria saber o que os médicos não conseguiam definir. “Mal dos nervos!”. “Com cura ou sem cura?, perguntou o iyalorixá, “Sem cura”, responderam os orixás aos dezesseis búzios jogados sobre a toalha imaculadamente branca. Um pesado clima dominou a tapera de Tibim lembrando os momentos que precedem as grandes tempestades – chuvas de São José – devastadoras, carregadas de raios, matando vacas e gentes, carregando nas enxurradas paus velhos, árvores, bichos, bezerros, carneiros: corpos e ouvidos tensos aguardando o raio, as enxurradas, o vento cortante.

Em nova consulta com o Doutor André sugeriu que fôssemos – ele, eu e Antônia – até a Escola de Medicina de Ribeirão onde ele tinha um professor amigo e que, respondendo a sua carta, se dispôs a, junto comigo e mais dois colegas, examinar Antônia. Pouca coisa não é, pensei. Seu Álvaro emprestou o carro e fomos logo na semana seguinte e os médicos concluíram Antônia padecia de uma doença neurológica chamada ELA – esclerose lateral amiotrófica – , doença que faz com que o doente perca os movimentos, a capacidade de deglutir e de respirar, mantendo, no entanto, a lucidez enquanto vai perdendo progressivamente a força muscular. Doutor André resolveu ficar em Ribeirão e voltamos Antônia e eu choferando o Ford azul do Seu Álvaro e aquela necessidade de estar atento às marchas do carro, às curvas da estrada impediram conversas, sentimentos, solidariedades: quietos, calados, o carro pela estrada de chão, a nuvem de poeira inundando o céu azul de julho, frio cortante, janelas do carro fechadas, diminuindo o ronco do motor. Chegamos já noite: deitamos e não dormimos: ainda escuro levantei, passei um café no coador e levei o bule cheio para o nosso quarto. Tomamos devagar. O café reanimou: Será uma boa morte, sem dor, mas sem caduquice, disse Antônia. Estou aqui, junto de você, meu amor, respondi e nos abraçamos forte, calorosos e choramos.

Constança, gorda e doce negra benzedeira, além de ajudar na casa de manhã fazia o almoço e à noite puxava os rosários das novenas para a cura de Antônia. Junto à imagem de São Lázaro, o copo com água e azeite a luzinha tremulava, pedindo socorros, ajudas alumiando o quarto escuro: na cama, Antônia a tudo olhava, os olhos interrogativos, respondia às ave-marias cheia de graça com as santa-marias mãe da misericórdia, mas já não mais cantava para fora nos intervalos do rosário: ave, ave, ave maria...Tibim nos visitava, sempre, aos sábados. Em um final de sábado, resolvemos - Antônia me respondeu com o olhar – voltar ao chapadão para ver o por do sol, o fim do dia. Preparei o cavalo, montei e encostei o cavalo perto da pedra do alpendre, Tibim pegou Antônia no colo e me ajudou a ajeitá-la à minha frente no arreio; com um lençol amarrou o corpo magro de Antônia ao meu corpo, unindo-nos com o branco lençol: pegou o cavalo pela rédea e puxou até o chapadão. Lá ajudou na descida de Antônia e, respeitosamente, nos deixou: antes de escurecer eu volto. Sentei e ajeitei Antônia entre minhas pernas, suas costas apoiadas em meu peito, sua cabeça junto a esse osso que a gente tem e que junta as costelas e ficamos a ver o sol se esconder. As nuvens formavam figuras de anjos, tinha um que tocava - bochecha inchada – uma corneta e o som da música invadiu o céu, o chapadão. O vento agitava as nuvens e o anjo obedecia ao vento e a corneta solfejava novos acordes e era o Te Deum que invadia o mundo. Senti, no osso externo, a cabeça leve de Antônia ir ganhando força, pesando mais, querendo se enfiar dentro de mim, fria agora: minha mão direita procurou seu peito esquerdo: seu coração não mais batia.

Tibim voltou à cidade e junto com Dom Agostinha trouxe uma improvida maca de madeira: forramos a maca com o lençol, cobrindo a fria madeira com o quente do branco lençol e carregamos Antônia, já fria, para casa. Rezas, choros, clamores: Antônia pequenina, olhos cerrados, dentes um pouco a mostra, parecia querendo sorrir, o cheiro das velas queimando e das rosas que cobriam o caixão se misturavam ao perfume do café que Constança passava no coador e os visitantes, quietos, calados - alguns com os olhos marejados - tomavam e acompanhavam – rezando - o terço que, agora, era puxado por Dom Agostinho. Pai nosso que estais no céu ...findado o rosário e seus mistérios gozosos – era dia de sábado - Dom Agostinho abriu seu breviário, dia 22 de julho, dia de Maria Madalena e leu em bonita voz:

“Durante a noite, no meu leito

busquei o meu amado;

procurei-o sem encontra-lo.

Vou levantar-me e percorrer a cidade

as ruas e as praças

em busca daquele que meu coração ama

procurei-o sem encontra-lo.

Os guardas encontraram-me

quando faziam a sua ronda na cidade.

“Viste acaso aquele que meu coração ama?”

Mal passara por eles

encontrei aquele que meu coração ama.

Segurei-o e não o largarei

antes que o tenha introduzido na casa de minha mãe,

no quarto daquela que me concebeu.

Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém

Pelas gazelas e corças do campo,

não desperteis nem perturbeis o amor...até que ele o queira”