domingo, 13 de janeiro de 2013

O MORRO CABEÇA DO PADRE IV–TIBIM E A CACHOEIRA MAL ASSOMBRADA.

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Na manhã de domingo, um dia depois que passamos - Antônia e eu - em banhos e amores na Cachoeira Mal Assombrada, resolvemos de ir até a tapera do Tibim à busca das mudas de rosa vermelha e de crista de galo para montar um jardim bem exatamente no local onde aconteceu o primeiro ato de amor entre nós, logo ali na beira da estrada, onde ficamos abraçados sobre o chenile arrancado do banco da charrete que aliviava nossos corpos nervosos dos ramos secos e ásperos de capim.

Na porta da tapera, Tibim nos recebeu e foi obrigando a gente a entrar: queria oferecer o café coado na hora e broas de milho enfeitadas com perfumadas sementinhas de erva-doce. E acomodados em um cepo, beira do fogão, ficamos a beber café, a comer broas e a conversar. A tapera ficou toda imersa no perfume do café quente que escorria coador abaixo e Tibim foi pegar a sua flauta de bambu no quartinho onde dormia, sinal que queria falar de música: pediu que Antônia assobiasse, ou cantasse em “boca chiusa”, canções que ela havia aprendido na escola de música. E o silêncio foi quebrado pela bonita boca de Antônia, de onde - parece que se transformando em um cantador canário da terra ou um pintassilgo - vazava assobios e lás lás lás em diferentes tonalidades, alturas e sensibilidades compondo uma sonora melodia, bonita e sensível que Tibim guardou em sua memória musical e, sozinho, repetiu emocionado, olhos fechados, dedos rápidos e ágeis na flauta de bambu.

E foi lindo por demais o som da flauta de bambu quebrando o silêncio daqueles cerrados. Aplaudimos e comovida Antônia não se fez por menos e cantou com sua doce voz, agora em duo, acompanhada pela flauta de Tibim:

“Oh, céus! Um precipício,

um escândalo, uma desordem

evitemos por caridade!

Oh, céus! Um precipício

por certo aqui nascerá.

Oh, céus! Um precipício

um escândalo,

Uma desordem evitemos,

por caridade!

Juizo! Juizo”.

E eu - mundo inexistente - céus e sonhos, a ouvir!

Ao término da canção, Antônia deu um pequeno passo para trás e maliciosamente, dengosa por demais, segurou a barra da saia como as pequenas e delicadas mãos e abaixou o dorso -que dava para eu ver seus seios pequenos que despontavam dentro da blusa - agradecendo as palmas que eu, não resistindo, continuava intuitiva e descontroladamente a bater, e logo depois, ainda sob meus loucos e emocionados aplausos, delicadamente, tomou as mãos de Tibim e orientou-o para que, junto com ela, repetisse o gesto de agradecimento. E eu aplaudindo e aplaudindo! Bela música, manhã de sol: a música humanizando mais nossos corações, nossas almas.

Despertos de tão doces sentires - embalados por uma diáfana aura de felicidade que nos fazia sentir com força o suficiente para tudo domar e submeter o mundo, a natureza e os humanos à alegria e à beleza da música - fomos para o jardim à busca das mudas; orientado pelo negro, Antônia escolheu uma muda de rosa vermelha, e Tibim orgulhoso e atento, orientou-me em como retirar pequenas mudas e tomou em suas mãos uma enorme flor de crista de galo e pediu que eu a levasse com todo o cuidado – estava cheia de pequenas sementes, me disse – e ele, por conta, com uma pequena enxada, recolheu batatas de dália amarela, e duas ou três mudas da verde losna. E com as mãos ocupadas com as mudas, uma lata cheia d’água e a pequena enxada fomos montar o jardim de nosso amor.

Cerimoniosamente Tibim iniciou a limpeza do terreno, arrancando os agrestes capins, e tão logo deu esta tarefa por terminada, transfigurou-se, tornou-se sublime, hierático, olhos fechados, em transe, e de dentro de seu peito, subindo e atravessando a garganta, emergiu uma ancestral voz :

Arrumbobô! Arrumbobô, Oxumaré!

E para que também louvássemos soletrou, sílaba por sílaba, orientando nossa saudação:

Arrumbobô! Arrumbobô, Oxumaré! , repetimos, respeitosamente, saudando acompanhando o negro que se assemelhava a um rei, tão nobre e compenetrado de sua fé estava Tibim.

E rezando preces fizemos nosso jardim: rosa vermelha, crista de galo vermelha, dália amarela e losna verde: são as cores de Oxumaré, orixá do arco-íris, protetor da cachoeira Mal Assombrada, disse Tibim que começou a nos contar:

“A queda d’água da” cachoeira Mal Assombrada, onde ontem vocês passaram o dia a fazer amor e a banhar-se, forma – desconfio que não tiveram tempo para observar, ocupados que estavam com as lidas do amor - todas as manhãs de sol um colorido e maravilhoso arco-íris, e foi por isso que saudamos Oxumaré, orixá do arco-íris. E tem mais: atrás da queda das águas que formam a enorme cachoeira há uma escura caverna que foi, isso já faz certo tempo, foi meu pai que me contou, esconderijo de negros feridos, alforriados alguns que fugiam dos chicotes e das espingardas dos brancos escravistas, seus áulicos feitores e policiais do Império. Chegavam com o lombo ferido pelas bacalhoadas, braga nos pés: não eram gentes, eram peças e a caverna escura, protegidos pelas barulhentas águas da cachoeira, transformava-se em um porto seguro de negros fugidios. Quilombo da Cachoeira de Oxumaré!

E aí é que entra meu pai na história. Meu pai, nego Isidoro, preto luzidio como um tição de fogo apagado, pai de mais de dez filhos, tinha o dom e a paciência de procurar e achar ovos em ninhos de pássaros. Assim, em nosso quintal, misturavam-se galinhas, galos e galinhas d’angola com seriemas, codornas, jacutingas, frangos d’água, nambus; o quintal se tornava uma verdadeira orgia de aves: muito barulho e brigas entre tantos diferentes que se tornavam mistura para o almoço nos domingos e dias santos de guarda. E então, pai achou, e trouxe para casa três ovos de um ninho de urubu que foram colocados no mesmo jacá onde chocava a uma galinha índia de penas arrepiadas pelo seu estado de choco e também pela raça: brava galinha. Os ovos de urubu, com outro tempo de choca, resolveram antecipar a ninhada em dois dias e três urubuzinhos nasceram antes dos irmãos pintinhos. Nestes dois dias, a galinha esperando o nascimento de seus outros filhos, meu que pai tornou-se a mãe dos urubuzinhos: para cuidar completamente deixou de trabalhar nestes dias, até que os pintinhos nasceram e ele pode deixar os filhotinhos de urubu, brancos e feios, aos cuidados e sobre a proteção da galinha índia e seus oito filhinhos amarelinhos: piu piu piu... có có có: arrodeada da ninhada ciscava com os pés matos e as pedras e indicava com o bico forte as comidinhas cabíveis nos pequenos bicos e cobria e acomodava - protetora - toda a ninhada de filhotes - brancos e amarelos, não importava, eram seus filhos - sob suas asas quando o gavião surgia, qué qué qué qué , ameaçador no céu, pouco acima da moita de bambus. Alvoroço no quintal! Alertado pelos graves gorjeios da galinha índia e pelo silêncio dos pintinhos, corria em socorro o galo que assustava o gavião com suas asas e suas esporas e também corria meu pai com a espingardinha de chumbo atirando e xingando: filho da puta , gavião desgraçado e ao mesmo tempo gritava chamava e estumava os cachorros: pega Remela, pega Vinagre, pega seus merdas, para que prestam vocês? só servem para comer? vamos pega! pega! E minha mãe da cozinha berrava: xô gavião xôoo! E o gavião se assustava com tanto barulho e, conformado, saia a buscar outras comidas em locais mais calados, menos protegidos e tão logo não mais se ouvia o qué qué qué do gavião a galinha, vendo-se livre do perigo, se punha novamente a ciscar e a chamar seus pintinhos e os urubuzinhos para comer: có có có có có! e tudo voltava aos normais dos cotidianos: brigas e barulhos no quintal mas sem perigo de morte.

Dois urubuzinhos morreram, ou a cobra comeu, mas um, o Dito, cresceu tendo como mãe a galinha índia e meu pai. Se assemelhava, o Dito, até a um cachorro de meu pai, contava minha mãe, eu era ainda bem pequeno e não me lembro direito: onde ia meu pai, até mesmo cumprir suas necessidades atrás da moita de bananeira, lá ia o Dito junto: ora nos ombros, ora correndo e voando atrás do meu velho. Negro os dois: meu pai já com os cabelos pichainhos embranquecendo com o tempo vivido e o negro Dito com aquela cara de urubu coberta de enrugada pele, parecendo com aqueles cavaleiros antigos dos tempos de Artur da Távola Redonda que se vê nos livros de história. Bico recurvado, olhos por demais de enxergantes, voo quase tão silencioso como o das corujas, aliás segundo meu pai o voo do Dito só perdia, em silêncio, para o voo das corujas, estes que de tão silenciosos são impossíveis de serem escutados até pelos ouvidos demais de espertos dos ratos d’água e dos preás do brejo: e estes, pobrezinhos, quando menos esperam já estão nas garras e no bico da coruja, servindo de almoço ou de janta, dependendo da hora, se é de manhã ou de tarde. Mas o voo do Dito para ouvidos humanos era como o voo da coruja para o ouvido dos ratos d’água e dos preás do brejo: inaudível.

E o Quilombo da Cachoeira de Oxumaré reunia, naqueles tempos, mais de trinta negros e a noticia do quilombo correu mundo: se contava, sendo falso ou verdadeiro, de feitiços e magias que realizavam nas noites de sexta-feira, de orgias com negras buscadas, com consentimento próprio, nas vilas e fazendas para servir aos apetites sexuais dos escravos, elas que já tinham muito servido, querendo ou não, aos apetites dos bancos patrões; e se falava, também, de que preparavam, os negros, uma revolução de libertação e a volta para suas origens, onde mesmo aqueles que não eram reis e rainhas eram gente, não peças como eram chamados aqui, mesmo os que tinham sido rei em suas tribos na África mãe. Meu pai visitava o quilombo, levava comida, milho verde e teve vez que levou um tacho com pamonhas feitas por minha mãe e duas vizinhas: era janeiro, dia de Santo Reis e houve festa no Quilombo: canções, rezas, bebedeiras.

Foi quando correu a notícia, o vento que trazia, de que o Império mandaria polícia para arrasar o quilombo. Verdade? Pai não sabia se sim ou se não. Melhor precaver-se. Meu pai pensou e pensou. Todo o quilombo temeroso do destino a pensar. Pai resolveu sair dos pensares para a ação de luta, de defesa. E assim resolveu meu Pai caçar, beira do brejo, centenas de vagalumes; saiu de noitinha, assim que o sol se escondeu atrás do Morro do Chapéu, para a beira do brejo com um tição que balançava no ar, fazendo faíscas e cantava : vagalum tém tém, vagalum tém tém, seu pai tá aqui, sua mãe também! Vagalum tem tem... e assim, caçou e encheu uma latinha vazia de vagalumes, mais de cem, contou com os dedos depois. Dia seguinte iniciou, meu pai, uma operação delicada: amarrava, um por um, dando espaço de meio palmo entre cada um dos vagalumes, em uma linha de costura de minha mãe: metros e mais metros de linha com os pequenos vagalumes amarrados com um nó entre a cabecinha e o tronco. E já naquela mesma noite amarrou a linha delicadamente - para não dificultar o voo - nas asas e nos pés do Dito e iniciou o treino de fazer o urubu voar de noite. Urubu voa de dia, quem gosta de voar de noite é coruja: assim é a natureza. E Dito todo alumiado, parece que bordado de vagalumes! Vamos Dito, vamos, por Oxumaré, vamos Dito! Dito resistia, no início, às duas novidades em sua vida: “de onde já se viu voar de noite e, ainda mais, fantasiado de luzinhas de vagalumes; será que Isidoro está me estranhando, malucou o preto velho?” pensava Dito, mas meu pai era bom no ofício de domar bichos e Dito aprendeu não só a voar nos escuros da noite, mas voar todo alumiado por vagalumes, se assemelhando a um altar iluminado de lampadazinhas.

E então foi que chegou a noite em que os soldados do Império e junto deles capangas de fazendeiros da região apareceram na região do Quilombo da Cachoeira de Oxumaré. Era noite de lua nova, escuro, breu, quando os soldados terminaram de montar o acampamento, se preparavam para descansar para o ataque do dia seguinte quando foram surpreendidos por uma luz no céu que voava em torno do acampamento, silenciosamente, enquanto da floresta ouviam sons de tambores – eram os negros que cantavam e dançavam - : OXUMARÉ, OXUMARÉ! Fogos de foguetes comprados para as festas de junho ecoaram no ar: BUM! TCHIBUM!, e suas luzes se misturavam com as luzes dos vagalumes carregados por Dito e mais ainda: pedras redondas, duras e cocos de macaúba despencavam no acampamento por estilingues e bodoques e Dito continuava seu voo agora dando rasantes na cabeça dos soldados que, temerosos, amedrontados, imaginando ser praga e feitiço, fugiam apavorados e desordenadamente, deixando as barracas de lona, um e outro, mais medrosos deixando até o fuzil. Até o chefe de todos, um Coronel fugiu: pernas para que se tem?

E a noite continuou cheia de festas e danças: no escuro da noite, beira da cachoeira, agora chamada Mal Assombrada, se escutava tambores e vozes:

ARRUMBOBÔ, OXUMARÉ!

LÔGUM, LÔGUM EDÉ!

Pai dançou, cantou e dançou. Mãe retirou, das asas do Dito, a linha com os vagalumes, desatou nozinho por nozinho e levou de volta as luzinhas para beira do brejo. No lago do brejo barulho de sapos e como num espelho as luzes dos vagalumes. Bonito de se ver.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O MORRO CABEÇA DE PADRE - III - O CURSO NOTURNO.

2009 Caminho da fé 101

Nem bem se passaram duas semanas da chegada da professora o seu Tó me chama: Março está nos seus inícios e Antônia vai formar uma turma de adultos para ensinar a ler e a escrever; vai ser curso noturno e já vou adiantando que os daqui da fazenda que não dominam a escrita, tem que ir, todos! Descansou um pouco a fala e coçou os bigodes, sinal de que naquele assunto não admitiria contestação, todo autoridade, e continuou: E você, Juvêncio: sabe ler? Sabe escrever? Sabe as contas de mais, de menos, de vezes? Não seu Tó: nem mesmo o “O” com o fundo de uma garrafa eu sei desenhar e contas só sei fazer as de mais e as de menos quando cabem nos dedos das mãos; não sei ler os números, mas sei contar, respondi. E ele: Melhor assim, aprende as leituras, a fazer as contas no papel e aproveita para levar Antônia para a vila de noite, porque mesmo de dia, quando ela vai ensinar os pequenos, vai na companhia da Zilda; perigos, sempre existem, todos os cuidados são poucos nos dias de hoje, mais ainda com moça bonita da cidade!

De antes daquela conversa eu não sabia se queria aprender a ler, nunca tinha tido este tipo de vontade ou necessidade, mas confesso que depois da palestra com o seu Tó fiquei entusiasmado, vislumbrando as possibilidades de poder decifrar as charadas e os reclames dos almanaques, escrever cartas, ler livros.

Vai ser bom saber ler, pensava, enquanto tocava firme o Brioso, conduzindo a charrete, que balançava macia e gostosamente pela estrada pedregosa em direção à vila, mais precisamente a rumo da casa paroquial que era onde ia se dar o aprendizado dos adultos iletrados, em um total de quinze ou dezesseis: homens casados, rapazes moços, moças bonitas, mulheres já mães. Obedientes ao horário todos vinham chegando e a dois ou em grupos maiores conversavam para quebrar o silêncio da vergonha de não conhecer os segredos das letras e dos números. Todos cordialmente recebidos na porta da casa paroquial pela professora de quem ganhavam um sorriso, uma Boa Noite e também uma capanga de algodão que tinha dentro um caderno brochura, um lápis, uma borracha e um apontador de lápis, e até hoje me lembro do meu: era azul, bonito.

E a gente entrava na sala carregando, desajeitadamente, as capangas nas mãos, se sentindo como que se fosse criança do Grupo Escolar, e obedecendo a uma ordem qualquer todos se sentando quietos por demais nas de cadeiras arrumadas na casa paroquial alumiada por um lampião de gás. E Antônia sorrindo um sorriso bonito, repetiu os Boas Noites, os Bem Vindos e começou a aula, falando - sei lá de onde tirou o começo da conversa – e perguntando do tatu; um aluno mais corajoso atendeu a pergunta: tatu é bom de comer; uma moça bonita, mais atrevida: acho bonitinho, e um outro, senhor pai de filhos, bigodes cobrindo os lábios: cacei dois ontem...e aquele bando de adultos iletrados foi se animando com o assunto, comentando das raças: tem o tatu-bola, o tatu-galinha, o tatupeba, credo este gosta de comer carniças de defuntos; e se passou a conversação sobre as moradas do tatu, de sua toca: buraco de tatu, fundo, cheio de curvas para evitar cobras e outros intrusos, o tatu só sai da toca de noite, medroso de morrer... E todos, penso agora que como eu, ansiosos para aprender: uns, certamente, querendo mais aprender para escrever cartas e bilhetes, outros já queriam ler livros, outros entender os escritos no Almanaque que o dono da Farmácia Santa Izildinha oferecia a todos os que sabiam decifrar as letras. E a conversação continuava: casa de tatu é sempre buraco, já as casas dos homens algumas são taperas, tem outras mais bem construídas de tijolo e cimento, umas de pau a pique, diferentes entre elas, as casas dos homens, dependendo das posses do construtor, mas todas - ainda as mais desiguais das casas - diferentes das locas ou buracos dos bichos tatus. E foi então que, ainda no meio da animada conversação, a lousa negra começou a ganhar desenhos com o giz branco, feitos pelas mãos pequenas e espertas de Antônia: desenhava as letras na lousa negra e nós, deslumbrados, decifrando e aprendendo a juntar o ta com o tu para virar tatu, te com o ta e virar teta, dois tu formando o tutu...bola, bota, lata, late, tela, bebe, tabela, bobo...Montão de palavras!

E então as noites, depois do dia de trabalho, se iniciavam com as aulas na casa paroquial. Enquanto um falava o outro ouvia, sempre! E o giz branco, letra bonita, continuava a desenhar: ma com to vira mato, com ta vira mata...labuta, luta, talo, lobo, loba. E por ser eu que levava de charrete a professora Antônia para ensinar me sentia mais dono que os outros e por conta me dei a tarefa de acender e apagar o lampião a gás, fechar as janelas da casa paroquial e, claro, orgulhoso, levar Antônia de volta para a fazenda. Deixava Antônia na casa da sede, do seu Tó, esperava ela entrar e só depois disso desarreava a charrete, soltava o Brioso no pasto e ia dormir pensando na professora: nos inícios pensava mais seus dedinhos segurando o giz branco enchendo a lousa preta de palavras, de encantos, de números, de sonhos; depois os pensamentos foram se aprofundando, se encorajando e pegaram a querer segurar suas mãos, a tocar seus cabelos ondulados, a sentir seus perfumes até chegar o sono e sonhar: sonhei que me casava com ela e já naquela manhã, depois da noite de tão sonhado sonho, criei coragem dentro de mim e resolvi: vou namorar e casar com a professora, tenho que.

Antônia mais esperta tudo já tinha adivinhado. Voltando uma noite da casa paroquial: Como soube de meu amor? Como? Oras bolas Juvêncio, vendo o volume no meio de suas pernas. O que? Seu bobo: ouvindo seu coração e vendo o volume subir no meio das suas pernas quando me vê, sou cega eu?, por acaso acha que sou?

Assustei-me em demasia: coragem por demais nos dizeres de Antônia.

Outra noite, a seguinte depois daquela primeira conversa, voltando da casa paroquial, depois da aula, assim que passou a casa do negro Tibim, Antônia assobiou forte “Pssiiu!” e o cavalo Brioso obedeceu suas ordens, a charrete parou e eu senti o calor de seus lábios: Me beije, mandou. Obedeci: beijei. Beijamos. Salivas e calores, ondas que fugiam de um corpo atravessando o outro, línguas se misturando, quentes, salivas, furiosas ondas, mãos buscando corpos: tudo escuro, silêncio imemorial: sinfonia de amores, ruídos de beijos e de roçares de corpos. Nem a lua a nos vigiar. Vamos descer da charrete, disse ela. Mas Antônia, não somos casados. Quantos anos você tem, eu tenho mais de vinte? Falei: eu tenho vinte e três. Ela: podemos, então, vamos. Não, vamos embora. Rápido me desembaracei de tantos desejos, de tantos invisíveis laços que nos amarravam, nos entrelaçavam, nos colavam com fúria, calor e resolvi depressa: toquei a charrete.

Dia seguinte procurei pelo negro benzedor. Carecia de falar, de contar de abrir o coração. Tibim é um preto de cabelos brancos de tanta velhice. Muitos dizem que o velho tem pauta com o diabo, que não morre de arma banca e que não deixa a febre amarela entrar no seu corpo magro, ombros largos, dentes perfeitos. Benze e lê as linhas das mãos, mais das moças que querem casar. Sabe ouvir e pode-se nele confiar, como se confia em um pai. Tem a voz aflautada, cheia de ais e de uis, um dente de ouro na boca e, pela solitária vida, muito de mal se diz do negro Tibim. Encontro o velho negro molhando as plantas de seu misturado jardim de flores: E o que é que foi minino Venâncio? Contei um pouco, meio pelas metades do que ocorrido na noite passada, ali mesmo perto de sua casa. Vergonha, tinha, disse. Mas do que essa vergonha minino? Vergonha é fracassar na hora, o pinto arregaçar mole de medo de tantas belezas. E eu: Medo da mulher querer e saber tanto, Tibim; acha isso certo? Não são excessos tanta fúria nos abraços, nos beijos e no falar, sem nenhum pudor, que enxerga o volume crescer no meio das minhas pernas? E por acaso ela contou mentira? Seu pinto não subiu com os beijos, com as vontades? Sorte sua minino : com a idade, e falo por mim, só a cabeça de cima funciona e a debaixo, a que ela vê subindo no meio das suas pernas, não obedece mais as ordens e as fantasias: deve ser coisa de Deus, que quer assim, senão o que se teria era uma imensidão de filhos pelo mundo, bocas demais para comer em um mundo de tão pouca comida: velhos já avô de netos crescidos fazendo filhos e mais filhos.

E eu não conseguia me entender: excesso de fortes desavenças dentro de mim: querer, por demais desejar junto com um sentimento de desconfiança, de medo da coragem dos atos e das palavras de Antônia. Nunca, até então, nem mesmo ouvira, nas rodas de rapazes, contar de mulher assim. Nem mesmos nas histórias que os homens mais velhos e com posses de dinheiro contam das folias que fazem na rua das putas eu ouvi coisas assim.

Na charrete noite seguinte, eu acabrunhado, e Antônia decidindo por mim, falou: Então o que você quer? Uma mulher fria, obediente, poedeira de filhos? Não sou. Te quero e muito, inteiro e não escondo o desejo que tenho por você, por seus beijos, por suas mãos em meu corpo e pelas minhas mão tocando todas as partes do seu corpo que a vontade der. E eu: mas isso é certo? E ela: Se é certo ou errado eu não sei, e nem quero saber: o que sei é que assim eu sou e de mim eu não fujo.

Naquela noite, voltando da casa paroquial, assim que Brioso passou a casa do Tibim, lua nova, noite escura, céu estrelado, forramos o chão da estrada com o colchinil que cobria o banco da charrete e todos os exageros que tínhamos dentro dos nossos dois corpos e de nossas duas almas foram sendo, calma e ferozmente satisfeitos.

Vamos juntar? Antônia disse logo que se acomodou no banco da charrete a caminho de casa. Eu corajoso: Antônia, meu amor, não me assuste em toda conversa e encontro: não quer casar comigo? E ela: quero sim casar, mas não quero esperar. Melhor a gente se juntar logo. E onde a gente vai morar? falei querendo ganhar tempo e por a cabeça em ordem. E ela: do lado do curral, a casa do retireiro está vazia, desocupada. No sábado, não tem aula: vamos tomar banho na cachoeira Mal Assombrada e quando a gente voltar eu falo com o seu Tó, disse ela.

Dia seguinte ao nosso amor na estrada, de manhã, quando Antônia foi dar aula na vila para os pequenos, vi que levava nas mãos uma rosa vermelha. Depois dos acontecidos sentia necessidade de falar com o negro Tibim, ouvir dele suas ideias, aclarar meus pensamentos. À beira da estrada, no amassado capim onde forramos o colchinil, nossa cama – uma rosa vermelha. Fui até o jardim da casa do Tibim e colhi no pé de crista de galo e cacho mais vermelho, quase vinho de tão brilhante e trouxe em minhas mãos para junto da rosa vermelha. Primeiro coloquei ao lado da rosa, olhei do alto e não gostei do meu arranjo; limpei um matinho, fiz como seus raminhos um colchão e coloquei a rosa em cima do cacho de crista de galo e aí gostei do arranjo de flores que parecia nós dois abraçados, vermelhos, brilhantes.

Estava ainda por lá com meus pensamentos e minhas flores quando chega Tibim: Acho mesmo que vocês deviam era plantar um pé de rosa e um pé de crista de galo aqui: eu molho e cuido para vocês, meu minino e minha mininha Antônia, quer?

Cachoeira Mal Assombrada tem um feio nome, de causar medo; da casa do Tibim até ela se gasta mais de hora e meia caminhando pela mata escura, em trilhas úmidas de folhas e úmidas. Antônia tudo decidindo: Vamos sair logo de manhã, comemos o almoço de farofa por lá e voltamos antes do sol cair atrás do morro do Chapéu.

Fomos.

Quando, naquele sábado de manhã, passamos em frente a casa de Tibim Antônia cantarolava baixinho uma melodia bonita. Tibim ouviu e pediu para que ela repetisse a melodia.

Voltamos da Cachoeira, como Antônia havia decidido, antes do sol se por. Tibim nos aguardava no jardim de sua tapera. Ofereceu café e trouxe de dentro sua flauta de bambu: Toco e você canta, vamos?

Faceira Antônia iniciou, baixinho, voz de soprano, a melodia. Tibim, esperto, acompanhou e aumentou o tom e se ouviu em todo o Morro do Chapéu de Padre:

“ Jovenzinhas que estais enamoradas,

não deixeis passar a idade!

Se no peito vos arde o coração,

aqui está o remédio! Ai!

Que prazer, que prazer será.”

Linda demais professora Antônia, sua voz e a melodia, disse Tibim emocionado. E ela: É o canto de Zerlina de uma ópera chamada Don Giovanni. Sabe que estudei canto enquanto fazia o curso de professora e se não gostasse tanto de ser professora eu ia ser cantora. Vamos embora Juvêncio?

Fomos e encontramos o seu Tó frente a casa: onde estavam? E ela: Passamos o dia na Cachoeira Mal Assombrada. E parece que eu ouvi música, cantos e flautas? E ela: Sim, ouviu! Era eu que cantava acompanhada pela doce flauta do Tibim. E, seu Tó, o que eu queria agora falar é sobre a casa desocupada do retireiro que está vazia. E ele: Pinte ela com cal Juvêncio antes de se mudar.