domingo, 22 de abril de 2012

AGOSTINHO E EMERENCIANA -VI–CABOCLA !

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Agostinho entrou em casa completamente esbaforido: “Escuta Emerenciana: padrinho Juca mandou recado pelo Seu Sebastião, dono do caminhão que busca leite lá no curral dele: convidou a gente para almoçar lá no domingo, dia do aniversário de madrinha Olívia. Vamos? Em a gente indo, quando na volta, você querendo, já de lá da casa deles a gente aproveita e passa na casa de seu pai, pedir benção.”; Agostinho não encontrou na face e nos olhos da mulher o entusiasmo que tinha tomado conta dele. “Será que está arrependida de ter voltado? lamentando de levar aqui em casa, na vila, uma vida menos agitada e divertida da que tava levando como mulher da vida, na cidade grande?” pensava angustiado enquanto procurava resposta para suas dúvidas nos olhos transparentes da mulher. E enquanto aguardava a reposta: Medo, só medo: “Deus do céu: será que logo agora que eu achava que a minha vida tinha voltado para seu normal de felicidade? será que tudo vai acabar tão cedo?”
Emerenciana leu os pensamentos do companheiro, tocou sua face carinhosamente, mãos frias, molhadas d’ água do tanque onde lavava e esfregava as roupas sujas: “Não sei se vai ser bom, meu véio, tenho medo”; que agora Emerenciana deu de me chamar de meu véio, “mas medo do que? vamos de dia, logo cedo e antes do escurecer já estamos aqui de volta: tenha medo não, que não tem perigo nenhum”. E Emerenciana não sabia, naquela hora, se contava seus medos: “medo de ser chamada de puta, medo dos olhares de desprezo que via nos olhos das mulheres da vila: não tinha confiança em suas forças para saber se aguentava tanta dor de humilhações.”
Foram.
No almoço: torresmo, costelinha de porco frita, frango cozido com quiabo, arroz e macarrão vermelho de massa de tomate. Os homens, Agostinho e seu padrinho Juca, beberam um gole de pinga e conversaram animadamente: Agostinho queria comprar vacas leiteiras, um ou dois cavalos, carroça para carregar necessidades: enfim, repor o que havia vendido quando saiu da vila; encher de vida e de barulhos o seu sítio, seu trabalho.
Depois do almoço os homens foram para o curral ver as vacas; Emerenciana e Dona Olívia ficaram na cozinha para lavar os pratos, arear as panelas, passar café no coador e conversar.
Na cozinha:
“............................................................................................................................................................. e foi então, eu já com mais de cinco anos no serviço de mulher da vida, que dona Mercedes resolveu que eu iria ajudar na nova casa que havia instalado: queria eu em novos serviços e obrigações: queria eu agora assim cuidando das meninas para evitar brigas e bebedeiras entre elas, zelar pela apresentação das meninas, que ela queria com vestidos de seda e brocados, cabelos com laquê, colares e brincos, perfumes de farmácia, enfim meninas tal e qual em dia com o ambiente chique da nova casa; queria que fosse eu a primeira a receber e acomodar os homens na sala, ler em seus olhos que tipo de menina seria a melhor para ele, zelar pela limpeza do bar, da sala e dos quartinhos onde as meninas recebiam os homens, um monte de obrigações e tarefas: vez ou outra, só no caso de interesse demasiado, ir para o quartinho com algum cliente, sendo que nestes casos, o tempo do encontro urgia ser pouco e combinado de antes, para evitar brigas e discussões: muitas coisas a fazer. E Dona Mercedes chegou e disse: “Rosaura minha filha: vida de puta acaba logo: a gente se envelhece: então acho melhor você me ajudar a cuidar das meninas na nova casa e ganhar dinheiro de outro modo que não pela boceta”, e Dona Olívia corou seu rosto de vó ao ouvir boceta dito tão alto, falado ali em sua cozinha, pela boca da afilhada Emerenciana, que não teve nem mesmo teve o cuidado de por as mãos nos lábios para solerciar o som da palavra: disse abertamente, dentes a mostra. Mas escute madrinha: o pessoal todo vê e fala “das pingas que eu bebo, mas não sabe dos tombos que eu levo”, como diz o ditado: sofri demais e sofri mais ainda, penso, por saber o tanto que fazia sofrer o meu velho, meu pai, minha mãe: mas tudo foi mais forte que minhas vontades: destino será, madrinha? Castigo de Deus? E é certo os outros sofrerem quando Deus queria castigar a mim? Pode? Ou o castigo de Deus é tão cruel , madrinha, que Ele e Nossa Senhora da Aparecida castiga justamente assim: sofrer por mim, pelo que chorava minha alma e meu coração aumentado pelo sofrimento que causava aos corações dos outros que choravam por culpa dos meus pecados?”
No curral:
“................................................................................................................................................e foi então, que um dia, enquanto eu lidava em meu trabalho na Refinaria, que o Tito chegou, Tito, eu explico para o senhor, era o encarregado de todos nós na refinaria, tipo de um fiscal aqui nas roças, mandão e bravo; e Tito me disse que o pessoal do escritório queria falar comigo e que eu me dirigisse no dia de amanhã no escritório em vez de comparecer na refinaria para o trabalho. E eu fui: o escritório era bonito, os telefones tocavam sempre, tinha a dona Zuleide, que era a secretária do Engenheiro Doutor Mancini, que me olhava com olhos de desejo, eu sei que me desejava, mas eu não sei se desejava ela ou não, acho que sim, mas nunca quis saber de intimidades: não queria saber de enrosco com mulher casada, fazer sofrer os outros: meus pecados eu mesmo pago, mas devo dizer, padrinho: era bonita a dona Zuleide, sabe daquelas mulheres de peitos grandes quase fugindo da blusa apertada, a saia justa, preta, dando forma na bunda grande e redonda; mas estou mudando de assunto: no escritório o Engenheiro Doutor Mancini me disse que queria que eu fosse para Belém operar uma moto niveladora nova, comprada agora do exterior, necessária para construir uma barragem. Aceitei: e eu ia viajar de avio, nas alturas até Belém. De noite, no dormitório dos peões eu contei com muito cuidado para Oberaldo que eu iria para Belém: contei com cuidado de pena: logo eu que não lia a Bíblia tinha sido escolhido para ir trabalhar em Belém e não ele, o Oberaldo, crente, que, com certeza trabalharia com mais gosto nas terras onde nasceu Cristo, ou morreu Cristo, não sei, mas Oberaldo sabe se Cristo nasceu em Belém o morreu em Belém, e não seria ele que ia poder ver o localzinho onde José fez o bercinho do Menino, forrou com capins, e a Virgem com os olhos meio tristes, ao lado, olhos no Filho: mãe nunca desvia os olhos dos filhos, eu sei disso, é assim que eu vi nos presépios em tempos de Natal, que é quando o Menino nasceu. “
Na cozinha:
“Ariar as panelas é um serviço que gosto: esfregar forte a bucha com bastante sabão e areia fina deixando as panelas e os caldeirões limpos, brilhantes, até fazer doer nos olhos o brilho deles quando bate o sol. Mas, Madrinha, tenho que falar, tenho que contar: uma felicidade grande enche todo meu corpo quando vejo seus olhos: parece que seus olhos não me enxergam como puta, é isso mesmo? “É, assim é: você é puta agora?”, “não: agora não sou puta”, “e então: meu olhos enxergam você no que você é: Emerenciana”. E aquelas palavras encheram todo o meu ser, o ser Emerenciana, de felicidade. Vi que podia então, novamente, ser enxergada como Emerenciana. Sabe madrinha eu até que me acostumei em me erguer dos tombos para levantar das caídas: e isso exige uma força muito grande que se tem que ter e que cansa tudo: corpo e coração, causa um cansaço muitas vezes maior que o cansaço de capinar café, mais cansaço até, posso dizer a senhora, que é minha madrinha, que o cansaço de tirar as roupas e, pelada, e abrir as pernas para os homens a troco de ganhar dinheiros. Mas, agora, neste momento exato, enquanto lavo aqui estas colheres e estes garfos, o que importa é que sinto agora, ao ser enxergada pelos seus olhos como Emerenciana: é uma felicidade muito grande, madrinha; o que estou sentindo, felicidade tanta, que enche meus olhos de lágrimas, aquelas lágrimas boas de se derramar, deixar rolar rosto abaixo até dar para recolher e beber: quentes lágrimas molhando as securas da alma.”
No curral:
“E quando contei, com todo cuidado, já disse, para Oberaldo de minha ida para Belém ele leu lá na Bíblia dele algumas coisas que contavam de Agar, concubina de Abraão, mãe de Ismael. Dia seguinte, obedecendo às ordens do Engenheiro Doutor Mancini , peguei dois ônibus e fui parar na Avenida Ana Costa, em Santos, para os exames que teria que fazer no Instituto de Saúde do Trabalhador: lá tiraram sangue do meu dedo e o médico gordo, rosto de criança, olhos azuis e fala mansa, depois dos exames realizados, me disse: “o exame de Machado Guerreiro deu positivo”, eu não sabia o que era Machado Guerreiro, e ele me perguntou onde eu havia nascido e eu respondi e ele perguntou se eu tinha morado em casa de pau a pique e eu falei que sim e ele me disse que o barbeiro havia me picado. “Doença de Chagas: o coração cresce, fica grande, enorme e preguiçoso de trabalhar o seu trabalho de esparramar sangue em todo o corpo”, e que não tem remédio para a doença de Chagas, causada pela picada do barbeiro. “Morre logo da doença?”e ele disse que não: que tinha medido meu coração, suas batidas, que eu estava bem, mas que tinha a doença e que ele não ia poder assinar o meu Atestado de Saúde, que o governo exigia da empreiteira para fazer os serviços da barragem de Belém, e que o governo faz isso pensando na saúde do trabalhador, para o bem do trabalhador e que o barbeiro havia me picado. No escritório, depois, dona Zuleide chorou: o médico do Instituto da Saúde do Trabalhador, aquele dos olhos azuis dentro de um rosto gordo, telefonou e contou dos resultados e ela recebeu ordens e orientações do Doutor Engenheiro Mancini: me despedir do emprego. Dona Zuleide chorava baixinho, me deu um pouco de raiva daquele choro, mas fiquei quieto e assinei um monte de papéis e recebi o envelope com os dinheiros da minha conta: o envelope pardo, com a marca da empresa, estava gordo, inchado de dinheiros: dinheiro do mês de agora, partes dos dinheiros do décimo terceiro salário, indenizações...muitas contas e dinheiros: tudo muito bem contabilizado nos escrito a máquina que Dona Zuleide sabia bater tão bem e rápido. Peguei minhas roupas no alojamento, meu radinho de pilha novo que havia comprado e fui para a Zona em Piassaguera: antes passei na obra e falei para o Oberaldo que por causa de uma picada do barbeiro eu não ia mais para Belém e que ele deveria falar logo com o Tito e se oferecer para ir em meu lugar e que lá em Belém ele ia poder ler a sua Bíblia nos lugares por onde Cristo tinha vivido. E fui para a Zona em Piassaguera. E foi lá na putaria de Piassaguera, na casa de dona Marta, que de noite veio cantar uma dupla e eu arrisquei de pedir: queria cantar Cabocla e o da viola aceitou e me perguntou o tom e eu disse que queria o mais diminuto dos tons e ele se assustou, e perguntou se era medo do alcance da voz e eu respondi que não: alcançar eu alcançava mesmo em Sol, mas eu queria melancolia! E cantei: “Cabocla , como é triste o meu viver, sem esquecer, um só momento seu amor, tu me deixaste por um outro da cidade e a maior infelicidade é o desprezo a quem quer bem”. Cantei e chorei! Passado o cantar de Cabocla vi as putas chorando de me ver chorar e Alfredo, que era o que tocava violão e era o dono da dupla, me ofereceu lugar de cantor.”
O café passava no coador: a água fervendo de quente soltava uma fumacinha de cheiro perfumoso e forte, amargo e doce, se pode ser assim amargo e doce ao mesmo tempo; e aquela fumacinha de cheiro inundou de perfume primeiro a cozinha, não se contentou e chegou no quintal e logo depois fugiu e chegou no curral atiçando as vontades de beber café em Agostinho e seu Juca. Da cozinha Dona Olívia gritou: “café passado, vem beber que senão acaba, vem logo”. E, todos, cada um segurando sua canequinha de alumínio, foram para a varanda e arrodearam a mesinha onde estava a bandeja, coberta com a toalhinha branca, bordada e o bule fumegante de café. Momento por demais hierático, pensou Emerenciana , que brincou de passar esse seu pensamento que estava no seu coração, pelo ar, e o ar carregou aquele santo pensamento que chegou nos corações de Agostinho e de Seu Juca e de Dona Olívia: e tudo se transformou em um momento sagrado de silêncio, de ventos quietos que balançavam tão devagarzinho, sem barulho, as folhagens do coqueiro de buriti e as folhas do pé de abacate, até o cachorro quieto, sem latir, tudo e todos a respeitar aquela cerimônia sem padre que acontecia tão musicalmente na varanda e parecia querer fugir dali e se esparramar por toda a fazenda, por todo o mundo e chegar em Belém.
Na varanda:
“Continuando: eu fiquei contente com o trabalho de cantor nas casas das putas; Alfredo queria viajar mais, conhecer lugares, cidades, novas ruas de putarias e só bastava eu cantar: comprei em uma banca de jornal em Santos um livrinho com os sucessos do Waldique Soriano e decorei todas aquelas letras e Alfredo me ensinava outras...minhas mãos foram perdendo os calos, ficando lisinhas, parecendo mão de mulher rica, mão de professor: agora eu era cantor” . “E eu seguia minha vida de cuidar das meninas, dar ordem na casa, em sua limpeza, não deixar brigas, escolher a melhor menina para cada homem que chegava a procura de serviços de amor. Luzia estudava e estudava bem: ia para o Ginásio: mocinha já, bonita; lia histórias para mim e dizia saber o porquê eu não podia ajudar ela nas lições de casa: matérias difíceis demais para mim: até francês ela estudava, imagine!” “E sabe padrinho, que Luzia riu e riu de mim quando disse que por modi da mordida do barbeiro que fazia meu oração crescer, eu tinha sido proibido de ir para Belém trabalhar e que por isso não tinha conhecido o lugar onde Cristo nasceu e ela disse: “Pai o mundo tem cinco continentes, eu aprendi em Geografia, e o Belém do Nosso Senhor Jesus Cristo não fica aqui no continente americano, mas no continente asiático” e eu não entendi bem nada daquilo, mas ela também me disse que contou para todas as amigas que no dia seguinte eu iria buscá-la na saída do Ginásio, ela não diz buscar ela que é errado, e que todas iriam poder comprovar o que sempre dizia: que o seu pai era o mais bonito de todos; e então e eu vesti meu terno de linho para ir buscar Luzia no ginásio e ela me abraçou e falava alto para as outras meninas, todas vestidas com saia azul e blusa branca, algumas com boina na cabeça, todas lindas como Luzia: “não falei que ele é bonito: parece artista de rádio de tão bonito, ele canta” e eu chorei lágrimas secas e pensava que era melhor mesmo foi o barbeiro ter me picado e o meu coração, ficar crescendo e crescendo, grandão de tamanho e que ia se encher de tanto amor.” “E, numa noite, eu estava me arrumando em meu quartinho quando ouvi uma voz que cantava no salão. Meu corpo adivinhou tudo e eu sai do quarto só de calcinha e soutien, sapato de salto alto e fui até a cortina de veludo que separava os quartinhos do salão e aquela voz, que eu conhecia, cantava, repletando o salão todo de música de amor. E eu abri na separação da cortina de veludo uma brechinha para meus olhos enxergarem o salão e então eu VI: era ELE. Me tonteei, caí e acordei no quarto, em cima da cama com as meninas que me vestindo e eu pedi um outro vestido, vermelho, com brocados e bordados, decote mostrando o rego dos peitos.” “Eu não via nada atrás da cortina vermelha de veludo, não via o buraquinho por onde ela me via, mas eu sabia que ELA estava ali e então cantei mais alto, o mais lindo o que podia: “Cabocla como é triste o meu viver”.
Atrás da montanha que juntava a fazenda ao Rio Grande e a vila do Baguaçu apareciam nuvens negras, daquelas totais de tão carregadas de chuva: Março, mês de São José, das grandes chuvas, enchentes, raios e trovões: “Vai chover e logo. Vamosimbora enquanto é tempo.”
E o silêncio religioso que tinha tomado conta da furna que envolve a fazenda do seu Juca foi quebrado: “Bênção Padrinho.” “Benção madrinha” “Deus abençoe Emerenciana” “Deus abençoe Agostinho” !
Os cavalos trotearam rumo da vila.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

AGOSTINHO E EMERENCIANA – V – O DESTINO

2009 Caminho da fé 102
- “Pois então Oberaldo, eu só posso te contar que voltei do rancho de pesca do Domingo Franco, acho que fiquei lá uns dois ou três dias, sem saber o que fazer da vida; a casa vazia de Emerenciana, de minha filha e de Romeu me asssutava, desacostumado que estava da solidão de amor. Mas o pior era de noite: e olhe que não era só por medo de dormir sozinho: era o medo - na verdade, a certerza - de dormir sabendo que não poderia, a qualquer hora, nos escuros da noite, virar um braço e encontrar um corpo e sentir sua quentura, em poder descansar as pernas sobre a anca macia e quente, que eram meus costumes, meus vícios: me acostumei demais em noites assim, me viciei nestas gostosuras e, de repente quando nem consigo lembrar o nome de minha filha, e nas noites solitárias de amor, os braços encontrando o vazio do colchão frio e as pernas com caimbras doloridas, reclamando da ausência do costumeiro apoio das ancas de Emerenciana. Isso é de uma tristeza de fazer perder a alegria de viver, capaz de fazer parar de sonhar com o dia que vai amanhecer ou com as noites que vão chegar escuras, o céu estrelado. O que fazer, Oberaldo? Não estou te cansando com este meu contar palavreado? Afinal das contas Oberaldo, sei que você é crente, mas não se formou padre para se acostumar às confissões de pecados, de assuntos e de glórias. Se quiser eu paro, apago a luz e a gente dorme, que amanhã o dia vai ser duro de trabalho.”
- “Que isso Agostinho? Conte: estou sem sono e descansado.”
- “Tá bom: já que cê diz que não atrapalho, eu continuo a palestrar. E eu fui, Oberaldo, sempre empurrado pelo destino, a viver a vida eu viveria após ali em diante. Estou agora aqui,  junto d'ocê, neste dormitório de peões que constroem as refinarias: noites e dias com cheiro de gasolina e de óleo esparramados pelo céu; dia e noite esta catinga de óleo e de fumaças que saem, escuras e gordurosas, das pesadas máquinas que vivem a furar buracos nos chãos; catinga de fumaça misturada com o cheiro azedo e amargo dos brejos de mar, que chamam aqui de mangues, com seus carangueijos de patas azzuis, olhos para fora, saindo dos barros dos brejos do mar. Cubatão. E foi assim o começo: estava voltando, montado em Mossoró, da casa de Dona Terezinha, onde fui ver meu filho Romeu e envergonhado de fazer perguntas – onde já se viu esqueccer o nome da filha – fui entabulando uma conversa com Romeu até chegar ao que queria: “Luzia me batia às vezes, mas tenho saudades dela, pai” e, desde aquela hora, aquele momento, eu fiquei querendo escrever o nome Luzia em meu cérebro, em minha cabeça, porque o meu coração sempre foi de amores, enormes amores e fraco em guardar nomes; nomes se guarda na cabeça, igual aos nomes dos rios e das cidades que agora conheço, Oberaldo e eu não queria nunca mais esquecer o nome de minha filha e então repetia: Luzia, Luzia, Luzia e Romeu e também Romeu, Romeu e Romeu, de medo de ocupando a cabeça com o nome de um esquecer o do outro; mas então, continuando, quando na volta para casa, repetindo os nomes Luzia e Romeu, Romeu e Luzia, mudei o caminho da estrada e, a galope, com as rédeas tensas e Mossoró pedindo mais velocidades, cortei caminho pela invernada do sítio do Chico Baltazar e o capim jaraguá encobria um buraco de tatu: Mossoró, galopando e pedindo mais velocidades, com tantos espaços e possibilidades, esccolheu um e enfiou fundo a pata dianteira logo naquele buraco de tatu escondido pelo capim jaraguá e caiu, parando de sopetão o galope; fortemente: me atirou longe, entortou-se em seu corpo pesado e tombou quebrando a espinha; tudo tão de repente: agora, naquela hora, Mossoró imóvel, espinha quebrada, me olhava com olhos dolorosos, obnubilados, pedindo ajuda para uma morte rápida, tanta dor e eu, com o punhal, cortei a veia do pescoço ele ficou ali, morto. Morto com os olhos abertos? Era assim mesmo que cavalo morria? Esperei que todo o sangue escorresse do pecoço para fechar seus olhos com meus dedos: não queria que Mossoró, morto, com os olhos abertos, enxergasse os urubus negros, que, com certeza, logo surgiriam no céu, voando e voando mais baixo em busca de carne. E eu não sabia, mas cavalo, mesmo morto, não fecha os olhos – será que fecham para dormir?, eu não sei, mas sei que catei o pelego feito de pele de carneiro e coloquei em cima dos olhos de Mossoró, escondendo seus olhos mortos dos urubus que logo chegariam, sempre aos bandos, nunca um só ou dois, com seus voos silenciosos. E fui a pé para casa. Na vila soube da novidade: o Governo ia fazer um comício frente da igreja para contar da estrada que ia construir: uma estrada que ira rasgar os chãos e com seus rasgões e pontes nos rios e nos corgos ia juntar a vila até a cidade maior e depois de lá, como um rio, desaguar numa estrada chegando até outra cidade ainda maior, e aí, como discursava em voz grossa o governador “os frutos do trabalho desse meu querido povo aqui da vila do Baguaçu, povo tão ordeiro e patriótico, povo de cristandades, de sentimentos puros tão generosamente cristãos, que os frutos do trabalho deste meu povo, que nunca esqueço e para quem vivo e para quem eu ofereço meu trabalho honesto, que o fruto do trabalho deste meu povo possa chegar cada vez mais longe, até a capital de nosso Estado,e os cafés, aqui colhidos com estas mãos calejadas de tanto trabalho, chegar aos portos para deliciar as manhãs dos europeues. Cidadãos do Baguaçu: é a estrada que junto vamos contruir que vai devolver dividendos e riquezas, que é o que o meu governo quer, e que por isso eu estou aqui agora chorando e me perdoem as lágrimas tão sinceras” e eu não entendia o que ele dizia , mas, de prático, acabou o comício e toda a vila ficou ciente que iam precisar de gente para fazer a estrada. E eu fiquei bravo comigo por causa de que, por preguiça e cuidados, quase perdi o comício: muita gente reunida, foguetes de alegria, alto falante aumentando as vozes dos discursadores e eu querendo silêncios, sossegos, isolações com as minhas dores. Mas fui e o governador disse que para construir a estrada careciam de homens fortes para trabalhar de sol a sol ganhando salário e naquela noite já dormi arresolvido: acordei dia seguinte e passei às providências: arrendei as terrras com a roça de feijão, arroz e milho, vendi as safras que seriam colhidas mais as oito vacas leiteiras e seus cinco bezerrinhos, vendi tudo, Mossoró não: eu não vendi porque morreu e eu não sei se teria coragem de vender, tem horas que penso que sim, que venderia o Mossoró junto com as vacas e os bezerrinhos e tem horas que acho que não, que não teria coragem de pegar dinheiro por ele e que o melhor seria dar para quem dele gostassse e que cuidasse dele em sua velhice.”
- “É eu penso que o melhor teria sido não vender o Mossoró”, Oberaldo falou baixinho, mais com ele mesmo do que com Agostinho, falou mais para dizer que ouvia a conversa, que não dormia ali ao lado, na cama do alojamento dos operários.
Mas tão logo que falou dava para ouvir o seu ronco. Dorme: é melhor: falo e me escuto. Penso na vida: não altos pensamentos que não tenho competências para alturas de pensar, mas penso e falo baixinho, comigo mesmo, estou sem sono. Engraçado este Oberaldo: um crente no meio desta peãozada aqui, agora, nesta construção de refinarias de petróleo, de usinas de ferro: não bebe, não fuma, quando não está trabalhando, dirigindo a enorme máquina niveladora, está a ler a Biblia: capa de couro, os meios marcados com uma fita vermelha, suja em suas pontas pelo uso de seus dedos suados. Reza e trabalha Oberaldo: inté aos sábados, mais ainda perto do fim do mês que é quando pegamos envelopes recheados de dinheiros de nossos salários, e assinamos o reecibo de que recebemos, mesmo nestes dias de perto do fim de mês, bastange dinheiro, Oberaldo não quer saber de farra, nada de querer ir na zona das mulheres que fica aqui perto, em Piassaguera. Eu vou: me acostumei de ir. Nos começos eu ria achando engraçado o modo do pessol dizer: “vamos em Piassaguera molhar o pescoço do ganso”, vou mas não gosto de beber: adespois que uso os serviços das mulheres, pago o que devo e enquanto espero os outros, quando demoram mais, fico na sala que tem uma rádio vitrola RCA e peço para colocarem discos bonitos para eu escutar. Gosto!
Ficou meu amigo o Oberaldo. Nos começos ele me deixava aperreado, quando abria seu livro da Bíblia, fechava os olhos e ficava a dizer que tinha lá escritos que contavam de Moisés, o Patriarca, que quando falava com Jeová, lhe cresciam cornos na testa, acima dos olhos, e eu pensava que ele advinhava meus passados, que queria bolir comigo, atasanar meus sofrimentos e minhas vergonhas, até que um dia, resolvi tudo contar, confiante em sua amizade e ele continuou a falar desta história dos cornos na testa de Moisés, penso que para me consolar das saudades da vida sem Emerenciana. Não sei direito! Logo depois de amanhã teremos férias do traballho e decido que vou repetir o que tenho feito: pego o ônibus, e no posto onde ele para para refeições e lanches, meio a estrada, compro mais um caminhãozinho de madeira para Romeu e mais uma boneca para Luzia; Romeu desobedece a avó e brinca e quebra e suja seus caminhõezinhos: transporta chuchus e ovos do ninho da galinha para a cozinha, ameixas amarelas do pé de amora, jambolões do pé de jambolão que tem na beira do córrego: e com isso suja e envelhece seus caminhões e a avó fica brava mas ele não liga sabendo que final do ano ganha outro novo, colorido, maior do que o que tinha; agora as bonecas que compro para a Luzia, não: estão ali, novas, imechidas, cobertas ainda pelo papel celolfone que se desbota do sol. Quatro grandes bonecas com seus olhos abertos, quietas, novas, descoloridas pelo tempo; todas as quatro bonecas colocadas uma ao lado da outra, na prateleira do quarto de Dona Terezinha, se assemelhando a um oratório de santinhas, misturadas com as imagens de Nossa Senhora da Apareecida e de Santa Izildinbha, que ficam pequenas perto das bonecas de Luzia: enormes mais ainda as duas últimas e a última que comprei e que a vendedora na loja me explicou, que tem pilhas e tem um lugarzinho no peito que quando aperta ela fala “mamãe” em uma voz rouca, e também fecha os ohos quando se põe deitada para dormir. Esta de agora que compro no posto a caminho da vila já é a quinta e, Luzia,um dia, talvez, dê nome a todas elas, e vai fazer o bartizado delas, e neste dia do batizado, fazer limonada com limão galego com muito açúcar e por um pouqinho de bicarbonto para parecer soda limonbada que é assim que as crianças gostam: tudo doce, doce, borbulhante!
Do ônibus vejo, pela janela que descubro da corftina de pano azul, as vacas paradas que parecem correndo no sentido contrário ao que estou indo, e também as árvores que balançam suas folhas pela força do vento que o ônibus deixa no ar: lá longe, na frente, bem à frente o morro do Baguaçu: logo chego!

quinta-feira, 5 de abril de 2012

AGOSTINHO E EMERENCIANA - IV–ROSAURA

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- “Bom dia Rosaura.”
Rosaura respondeu:
- “...m’dia Odócio. Já acordado assim tão de madrugada? Tá escuro ainda.”, se esquecendo que para o cego Odócio é sempre escuro em sua cegueira de nascença: “coitado: que pena dá pensar que o pobre nunca pode ver, com os olhos, a claridade das manhãs e o lusco-fusco dos entardeceres, as pessoas, as flores, nada. Só escuta, sente os cheiros e, como ele gosta de dizer, enxergar com os olhos de dentro a ponto de dar medo; enxergar não os rostos e os de fora das pessoas, mas adivinhar e ver os de dentro.” E enxerga mesmo: tanto assim que eu mesma, que agora tanto aprecio o cego Odócio, quase um pai ou um tio que nunca tive, por muitas e muitas vezes, no começo de nosso conhecimento que virou amizade, desconfiava: “esse cego enxerga com os olhos: finge mais é para pedir esmola”, de tanto que ele sabia das coisas.
Cego Odócio, gordo, com papas moles balançando debaixo do queixo, peitos que parecem de mulher, tão grandes, rosto redondo - tal e qual uma lua cheia - com poucos fios de barba; e o rosto sempre descascando, e soltando casquinhas de pele amarelas e secas que caem , como caspa dos cabelos, nos peitos, sobre a camisa de flanela que sempre está a vestir: sempre com a mesma camisa xadrez, seja nos dezembros quentes de Natal cheio de bolinhas vermelhas e amarelas, brilhantes, enfeitando as árvores, ou para os que preferem, os dezembros dos presépios repletos de santinhos, carneirinhos, o bercinho do nenê Jesus com o chãozinho de areia e musgos e o espelho fingindo ser lago, seja nos junhos frios das festas de São João, de tantos foguetes que de tão bombásticos ferem os ouvidos dos cachorros que, assustados, procuram esconder-se debaixo das camas, das mesas, uivando fino de dor ou de medo, ou dos dois, quem vai saber. Cego Odócio, com sua camisa de flanela xadrez, sabe: desvia e nunca cai nos buracos do quintal, não erra a porta de sua casa-quarto que é a número dez - a minha , que eu alugo por mês e onde vivo com Luzia, é a número doze, um pouco mais ao fundo da casa quarto alugada por cego Odócio - desta linha reta de quase infinitas casas que se pudesse ser vista de longe seria muito igual aos trens da Mogiana; não os trens de passageiro, mas aqueles de carga: vagões e vagões, infinitos, iguais, com a janelinha pequena, correndo devagar em cima dos trilhos de ferro, passando na estação e a gente toda da vila, nas janelas das casas, nos bancos do jardim ou na estação, todos nós, curiosos , olhando e vendo sua chegada e seu partir, apreciando o aparecer e o sumir, pela força do vento, da nuvem de fumaça branca que manchava o céu azul, parecendo desenhar no céu uma nuvenzinha comprida, uma cobra branca no céu azul, feita pela locomotiva em seu fungar, sacolejando cansada e fungando e eu pensava: “meu destino é partir”.
- “Já tem café coado. Quer? Pegue lá, porta tá aberta.”
- “Quero sim, mas , primeiro vou ver Luzia.” , e saiu procurando, na bolsa de ráfia com flores azuis, a chave da casa quarto número doze, deixando no ar o forte perfume de rosa; mania sua: sempre nas madrugadas ao sair da casa das putas, onde trabalhava, se banhava e enchia de leite de rosas no rosto, no meio dos peitos, nos braços e sentia-se, assim, banhada de leite de rosas, como quando se confessava: as ave-marias e o padre nosso que o padre recomendava e o leite de rosas perfumoso deixava Rosaura leve, pura e livre para novos pecados, novos suores.
E Rosaura voltou para junto do cego Odócio, que continuava sentado no banquinho de madeira, debaixo do pé de mangueira do quintal. Era madrugada ainda: das canecas cheias vinha o cheiro doce amargo do café de coador que cego Odócio, como ninguém, sabia coar: forte, grosso, cheirando roças, pastos, poeiras, terra molhada pelos pingos da chuva e inocentes infâncias. “Como é bonita minha filha, Odócio. Sabe que olho, olho e nunca enjoo de olhar; nem parece a mãe, Odócio, é tudo o pai: o rosto, a boca rosada, os dentes brancos, separados, grandes”; “mas os olhos são seus Rosaura: olhos da mãe, que não mostram inverdades, falsidades e contam tudo dos sentimentos, da alma, do miolo do coração; Rosaura eu sou cego, mas enxergo: os olhos da menina são os seus.” E foi falando assim que cego Odócio, ao mesmo tempo em que de uma golada bebeu o resto da caneca de café, já frio, levantou-se ágil em sua gordura cega e foi para a sua casa quarto buscar mais; queria mais café quente e cheiroso para saborear junto com a conversa e os perfumes da amiga puta.
Com mais café quente o quintal das casinhas quartos enfileiradas como vagões de trem perfumou-se todo, o cheiro subindo mangueira a fora, cobrindo os telhados, embalando os sonos dos que dormiam. “Me alembro como se fosse hoje, Rosaura: me vem na cabeça bem a hora que chegou aqui a procura de alugar casa quarto para morar, querendo esconder do senhorio sua profissão de puta: “sou enfermeira, cuido de idosos de noite” – disse, e eu desconfiando de tudo, mas querendo fazer amizades, ajudei e adiantei, para o senhorio, o endereço do Lar dos Velhinhos da Sociedade São Vicente . Tudo coisa do destino Rosaura: agora te ajudo nos cuidados com a menina Luzia, que logo vira moça, vai ver: moça e bonita como a mãe.”
E só depois Rosaura, com você sabendo que eu sabia, me contou, da própria boca me contou tudo - tudo sei de sua vida - “desde quando Agostinho, desconfiado, pegou você meio do cafezal do Sílvio Teixeira, embaixo das sombras de um pé de café, gemendo, agarrada - como uma lagartixa no coqueiro- ao Luís Celeiro que também gemia, calças arriadas até embaixo, você com a saia levantada, a calcinha pendurada tremulando como uma pequena bandeira na forquilha do pé de café, pernas grossas e fortes à mostra: “Filhos da Puta eu mato os dois, seus desgraçados” e você correu para um lado, rumo à casa da Fia Mineira, onde tinha deixado Luzia, que sabia de seus namoros, e Luís , calças arriadas, que ele puxava para cima enquanto corria para os lados da mina d’ água. Não foi mesmo assim? Se alembra Rosaura?”
“Foi sim cego Odócio, igual ao que está relembrando: sem tirar nem por. Corri, feito doida, até a casa da Fia Mineira e ali fiquei agarrada com a Luzia debaixo da cama. Não sei quanto tempo fiquei lá , abaixada, agarrada a Luiza, que às vezes chorava, mas fiquei embaixo da cama, medrosa da morte, até que chegou meu pai, tudo querendo saber e eu contei: “vai acabar sendo fichada, minha filha. Levo Romeu comigo e que Deus te abençoe e guarde. Sua vida corre perigo!”, falava e olhava em meus olhos que cruzavam com os seus e os quatro olhos percebiam que jeito outro não tinha a não ser fugir e fugir. Fia Mineira conhecia Décio, que tinha um aerouilis bordô, o mais lindo da vila, de verdade o único aerouilis da vila, os outros dois automóveis que tinha a mais na vila eram um Ford bigode de aluguel do Bepe e uma baratinha do Seu Tó; e Fia Mineira ajeitou tudo para mim: peguei rabeira no aeroulis do Décio da vila até a cidade. De lá, uma cidade grande, mas não muito, peguei ônibus e cheguei aqui, nesta cidade maior ainda, que tem até arranha-céus que eu nunca antes tinha visto e, como eu nunca tinha imaginado, tem duas ruas só com casas de putas: só de putas, com as luzinhas verdes ou amarelas sempre acesas nos alpendres, convidando os homens a entrar .
E fui direto da rodoviária para uma pensão Central, também uma recomendação da Fia Mineira, e lá me preparei para ir até a casa da Mercedes, na Rua José Bonifácio: me apresentei de pernas raspadas – puta com perna cabeluda não pode, conforme conselho de Fia Mineira, mas confesso, cego Odócio, que Agostinho gostava e acho que ainda gosta de mim assim mesmo, como Deus me fez –; mas procurei a casa de Dona Mercedes com as pernas raspadas com gilete, cheirosa de perfume Alfazema , que comprei um vidrinho, cabelos lavados, pele do rosto brilhando de tanto sabonete que usei. Estava bonita e limpa quando cheguei na casa da dona Mercedes que gostou de mim, achando que eu podia ser puta de sua casa e me levou até a delegacia e foi ai que entendi o que meu pai tinha dito: “vai acabar sendo fichada ,minha filha”; quando disse aquilo ele adivinhava: era a ficha de puta que o delegado de gravata azul preenchia querendo saber meu nome, o ano do meu nascimento, se tinha filhos e tudo o mais, e eu mentindo e mentindo: menti na idade, e menti, doendo dentro de mim, porque dona Mercedes ordenou para eu falar que não tinha filhos e eu tinha e tenho a Luzia e Romeu: filhos meus com Agostinho, de quem eu tanto gosto e por quem, se precisar, até minha vida por qualquer um destes três eu dou. Mas menti: na ficha de puta não aparecia meus filhos e meu nome mudou de Emerenciana para Rosaura, outra exigência de Dona Mercedes: ela dizia que Emerenciana é nome de avó e que homem nenhum quer foder com avó, ninguém gosta de foder com velha, enquanto que Rosaura é nome bonito, mais em uso hoje em dia, moderno, mais fácil de dizer que Emerenciana, e os homens vão gostar mais de foder com Rosaura do que foder com Emerenciana. E agora, Odócio, até gosto de Rosaura: me acostumei.”
E da delegacia me mandaram para o exame médico. Uma fila de mulheres sentadas nas cadeiras esperavam o médico, um velho que não parava de fumar e tinha os dedos sujos de nicotina que quando chegou minha vez me examinou, viu que eu não tinha doença venérea, garatujou em um papel da Secretaria da Saúde umas letras difíceis para mim entender que ele grudou na ficha que o delegado havia me dado; mandou que eu mandasse entrar na sala , para exame, uma outra mulher, já puta experiente, que vinha para os exames anuais obrigatórios e não se despediu de mim, e eu voltei para a casa de dona Mercedes, e naquela noite mesma me iniciei na profissão de puta. Foge de minha compreensão pensamentos altos, difíceis, cego Odócio e, então para mim, vida de puta é isso: é a vida de se ganhar dinheiros em troca de dar amor às solitárias e insônicas noites de homens: todos os tipos de homens: casados, solteiros, velhos , moços, fortes, fracos, homens doentes de doenças nos pintos e até padres sem suas batinas, mas com aquele paninho branco arrodeando o pescoço e os riscos no meio dos cabelos, que não deixam esconder a profissão santa de padre . “E tem homens que gostam” de beijos e outros que tem nojo de nossas bocas e querem tudo rápido, querem mesmo é aliviar logo o corpo dos seus desejos deixando dentro de nós, as putas, suas porras que não encontrarão onde germinar, porque puta, cego Odócio, não tem filhos com homens que buscam seus corpos, sua buceta: terminada a seção dos prazeres a puta corre e lava logo tudo e tudo e mija, mesmo sem vontade, quase sem urina na bexiga, para limpar as partes de dentro das porras dos homens. E os homens são diferentes também Odócio, nos modos de pagar pelos serviços: alguns deixam os pagamentos, calados, quietos, meio tristes, em cima do criado mudo enfiando o dinheiro todo contado direitinho, notas bem dobradas, enfiadas debaixo da toalhinha rendada do abajur, e estes vem sempre já com o dinheiro combinado separado em seu valor certo, bem contado; já tem outros que se vestem com mais calma, com menos pressa e só depois de vestidos é que procuram nos bolsos e contam em nossa frente o dinheiro embolado, molhado de suor de suas pernas; uns outros pagam com sobra, com dinheiro a mais do que o combinado e, passando as mãos nos queixo ou dando um tapa carinhoso de fraco na nossa bunda dizem que “tem um pouco a mais, fica ai guardado com você e a gente desconta na próxima foda”, e alguns outros, não, exigem que querem o troco na hora e temos que sair , antes mesmo de lavar bem a boceta, até o salão e pedir trocos para a Dona Mercedes. Mas sabe Odócio que tem uma violeira, do Mato Grosso, que vez ou outra toca aqui na casa da Mercedes, que conta que o lugar que mais aprecia de tocar é na casa das putas, das mulheres da vida, como ela diz: “tão sempre sorrindo, sua profissão exige sorriso, alegrias em servir”.
“As putas e os garçons acostumam -se ao sorriso de suas profissões” pensou conclusivo cego Odócio.
“Deve ser isso mesmo” pensou baixinho Rosaura, adivinhando ela os pensamentos do cego e levantou-se do banquinho a procura da cama da casa quarto que alugava: estava cansada.
Cego Odócio ficou só no quintal, café já bebido, caneca vazia, sentado no banquinho de madeira aguardando o clarear do dia que esperava fosse bom em sua vida de cego pedidor de esmolas.