terça-feira, 27 de março de 2012

AGOSTINHO E EMERENCIANA–III–A SOLIDÃO.

DSC04845

Mossoró estacou junto à porta do rancho de pesca do Domingo Franco, beira do Rio Grande, e esperou que seu dono ao apear, desta vez, tivesse o cuidado de tirar os arreios, os freios, e não esquecesse de acariciar o pescoço, alisar as crinas compridas demais, descuidadas, que andavam a precisar de corte.

Agostinho adivinhou o pedido de Mossoró e agiu de acordo: retirou os arreios, os freios e o cabresto, passou as mãos fortes no pescoço do cavalo em um carinho de agradecimento pelos acontecidos, pela companhia e disse em silêncio: ”urge cortar estas crinas, grandes demais Mossoró, vão acabar chamando morcegos para fazer mossorocas nelas. Logo que der eu corto”. Pegou água na cisterna, encheu um balde, lavou a cara, molhou o pescoço e jogou o resto no lombo do cavalo, tirando o suor; olhou para os lados e escolheu o pastinho verde de capim gordura para soltar Mossoró.

Empurrou a porta do rancho, que reclamou rangendo, e se enfiou rancho a dentro: um fogão de lenha feito da mistura da argila da margem do rio com estrume de vaca, montado em cima de um girau de guatambu; ao lado, no canto, tinha os dois giraus para dormir, forrados com esteiras de taboa bem embaixo da janelinha pequena que dá vista para o rio; no teto as telhas enegrecidas de picumã, vindos das cinzas e dos fogos necessários para fazer o café margoso, fritar os peixes pescados, as pacas caçadas e, quando tinha mulher no meio das pescarias, melhor ainda, pois tinha quem fritar o arroz e os torresmos das boas e quentes comidas para a janta ou almoço.

Boas pescarias: melhores memórias.

Viu, da janelinha, o rio com suas águas claras, espumantes em sua velocidade para chegar até o outro rio, depois a outro, até chegar ao mar: ouviu o barulho do rio, sua música e pensou: “a música do rio é mais bonita que a música do mar: tem uma variedade maior de sons, melodias inusitadas melhores de se ouvir quieto do que o ronronar repetitivo da música das águas das ondas do mar”. Conhecia o mar: tinha ido de ônibus, em uma excursão da igreja, com a mulher e os filhos ver o mar, em Santos.

Agora a solidão do rancho!

“Melhor fingir que sou um cachorro sarnento e me por a lamber as feridas. Ver Emerenciana, de volta, vai ser difícil. Sei o porquê ela fugiu com sua trouxa de roupas, levando a menina, logo a menina: porque não levou o Romeu e deixou, para eu ver mais vezes, a menina?”. E logo, arrependeu-se do pensado: “Deus do céu, perdão, sei que é pecado gostar mais de um filho que de outro, não posso ser assim. Mas o motivo de sua fuga, de seu sumiço, depois que andei desconfiado e peguei Emerenciana como o Luís Celeiro, isso eu sei: é uma fuga causada pela minha fama de destemido valentão. Mas aqui, comigo mesmo, não é de agora que sei: é uma fama não verdadeira, que valentão, de verdade, não sou, nunca fui. Fama mais fruto do acaso, me alembro, foi assim: em um dia santo, dia de São José, depois da missa rezada pelo padre que veio da cidade, teve um festival de futebol na vila e eu, com um ou dois amigos, torcendo e torcendo para a taça ficar para o nosso time, o time da Fazenda Olho D’ Água, que ganhava de pouco do Baguaçu. Nisso, com a gente simplesmente ali assistindo o jogo e torcendo, chega junto de nós o filho mais velho da Ganga e berra alto, para todos ouvirem, que queria mesmo saber que se se encontrava por ali homem, homem macho mesmo, com coragem para torcer e dar vivas ao time da Fazenda Olho D’Água, sabendo que ele era nascido e criado em Baguaçu. Provocação pura e eu gritei: “Viva a Fazenda Olho D’ Água” e Marruco, que é o nome apelido do filho mais velho do Ganga, olhou feio para o meu lado: vi que tinha os olhos esbugalhados e vermelhos de pinga e falou que se eu fosse homem repetia e eu repeti: “Viva a Fazenda Olho D’ Água” e ele avançou como um touro bravo para cima de mim. Mostrei força: quando dei por mim estava em riba daquele homem chamado Marruco, minhas duas mãos na goela do maldito, minhas pernas segurando seus braços, e eu, com minhas mãos na goela do touro forçava para esmagar o pescoço duro, ossento, para tampar e não deixar o ar passar do seu nariz para dentro de seu corpo e ele morrer afogado de falta de ar; mas, tudo sem pensar, como disse pouco antes, e quando vi, estava desembainhando o punhal que tinha nas costas, segurando forte com a mão direita no alto, gritando: “te mato seu filho da puta”. Estava com minha mão levantada no ar preparada para descer forte com o punhal e atravessar sua garganta e eu vi que seus olhos, amarelados de medo da morte, olhavam meus olhos, que não sei que cor estava, mas não tinha cor de ódio, porque eu não tinha, naquela hora, ódio nenhum. Sou homem de pouco odiar. E foi ai, comigo sem ódio, mas querendo matar, que senti uma mão forte agarrando meu braço e me arrastando de cima do Marruco: a briga terminou assim, rápida, sem mortes maiores: e eu, depois dela, além da fama de cantador em bailes, de domador de potros, passei a ter a fama de valentão, com coragem de matar gentes, filho de Deus. Por isso sei que Emerenciana fugiu para longe: medo de morrer com meu punhal encravado na garganta cortando a veia grossa do pescoço que é o que eu tencionava de fazer com o Marruco, mas não fiz. E mesmo as depois de muitos anos de casados, com todos os segredos e intimidades trocados nos escuros das noites, ela, Emerenciana, me achava valentão. E continuou a achar, não enxergando minhas covardias e medos, mesmo depois de uma noite, quando morreu Dona Zezé, pobre mulher de um vaqueiro da fazenda do Biba, e eu tive, por amizade com seu marido, de ajudar a carregar o corpo frio da defunta em um pano de colher café, pois dinheiro comprar caixão não tinha, e senti, enquanto carregava o corpo pesado, a cabeça dura e fria da defunta me cutucando, raspado as minhas costas e principalmente quando o caminho era descida, eu carregava na frente, vinha mais peso ainda e a defunta encostava a cabeça por perto da minha bunda; e naquela noite, quando, por medo, eu encostei meu corpo no de Emerenciana ela, acordando do sono, meio dormindo e meio acordada me disse “hoje não , benzinho, estou sangrando”, pensando que eu queria outras coisa e não fugir do medo da defunta, medo de mortos. Disse a ela que tinha medo de defunto e ela respondeu: “bobagem, benzinho: morto tá morto; dorme, temos que capinar o cafezal do tira-prosa amanhã” e benzinho era como ela gostava de me tratar até quando, não sei quando começou, vi que seus olhos, quando olhados pelos meus, furtivamente se desviavam, desviavam, fugiam, me entristecendo por demais por conhecer e saber de seus olhos por demais de claros, transparentes em suas verdades, agora fugidios de mim, por quê? O que será que houve, meu Deus? Mas, ódio não sinto. E, aqui entre nós, penso enquanto lambo minhas sarnas, eu digo que nem mesmo do filho da puta do Luís Celeiro eu tenho ódio. Sei que o desgraçado é fraco perto de minhas forças, mas não quero nem mesmo dar nele uma surra, até de medo de começando a bater, a surrar seu rosto, a quebrar seus dentes com um murro meu, ver seu sangue correr boca afora e eu, desesperado, sem pensar direito, matar. E, matando aquele desgraçado do Luís Celeiro, matando sem muito pensar, sem ódio, mas matando, tenho que matar Emerenciana e sei que, sem ela, não me sobra porque viver: só a morte.”

Tantos pensamentos na solidão do rancho de pesca de tantas conversas, alegrias, cantorias.

“Não sei o que fazer! Sei que sofro da doença dela: do seu amor; pode ser pecado mais amor e falta dela que dos filhos e que Deus do céu, por isso, me perdoe. Não posso, jeito nenhum, matar Emerenciana: ela não devia ter medo de mim, não devia ter fugido com a minha menina, deixando Romeu, eu e Mossoró ao Deus dará, desprotegidos de seu cheiro, de suas bravezas.

Logo chegará a noite escura e o Mossoró, coitado, sozinho pastando capim gordura no pastinho perto do rio; preciso cortar sua crina. Logo que der faço isso: quando? Não sei direito nem o que faço agora, já resolvido que matar não vou.” E a noite chegou escura, sem lua e “acho bom sair um pouco do rancho, ir a beira do rio, ouvir as águas, ver se de repente, em sua música, encontro uma solução; e ouço as águas, agora, chumbosas e negras, descoloridas pela escuridão da noite, mas velozes indo deste para o outro rio, depois estas mesmas águas que agora passam aqui, vão para outro rio ainda maior até chegar no mar e lá se misturar com a água salgada e perder sua vida de água não salgada: será que é a mesma água? A água que aqui é sem sal, doce como se diz nos livros, e que chega lá em Santos, no mar, se junta a outras águas maiores, salgadas: será que perde o seu doce? Continua doce meio ao mundão das grandes águas salgadas do mar? Doce mesmo, como se diz nos livros, não é: para ser doce tinha que se que por açúcar para tomar e acalmar as raivas: quanta besteira minha, tanto problemas e eu ficar pensando se a água doce que passa aqui agora fica salgada lá no mar de Santos, se é a mesma água: mas de pensar eu gosto, me distraio e esqueço de tantas agruras, tanta dor. Sofro da doença Emerenciana.

O céu negro, pingado de estrelas pequeninhas, sem calor e quentura: não pode ser que o sol seja uma estrela de tanta luz, tanto calor e claridade: as estrelas são mais beleza de se pensar, de enfeite, sem utilidades práticas de aquecer.

E desde há mais de uma hora que não consigo lembrar o nome de minha filha menina: castigo de Deus? Não perceberam que em meus pensamentos que tenho pensado, sempre chamo a menina de menina, minha menina! e vejo seu sorriso, seus cabelos corridos nos ombros, seus olhos negros como os da mãe, a não oferecer segredos; quero lembrar seu nome e gritar por ela, não chamar de menina, mas, Deus do céu, não lembro seu nome: mais um castigo, por quê? Melhor ir dormir, esquecer um pouco de tanto pensar: morrer a morte fingida do sono.”

As costelas estendidas sobre a esteira de taboa na cama sentem a dureza dos paus de guatambus que teimam em atritar com os ossos das costelas das costas magras de Agostinho, mas, ele dorme.

domingo, 18 de março de 2012

AGOSTINHO E EMERENCIANA:–II–A TRAIÇÃO


Mossoró parou rente à porteira fechada. E assim pensava o velho alazão: “esta viagem foi a primeira que em nenhum momento senti a mão forte a dominar-me com a rédea, a exigir de mim o andar elegante, pescoço curvado, não senti sua mania em me fazer sir do trote e pisotear, ligeiro, a macia marcha picada; também não senti suas carícias no pescoço e os assobios a me orientar os caminhos, as paradas e os galopes. Viajei tempo todo com as rédeas soltas, balançando em cima do meu pescoço, tudo deixado por minha conta: vez ou outra, como se pra dizer que ainda estava vivo, cutucava minhas virilhas com as esporas, exigindo pressas, velocidades.”

E assim, Mossoró galopou toda aquela manhã só, dono de seu destino. Compreendendo a dor silenciosa do cavaleiro, resolveu, por conta própria fazer todo o caminho a galope, na pressa de chegar. E então quando já chegava ao destino final viu a porteira fechada e nenhum movimento das rédeas ordenando que diminuísse a marcha; “será que ele, tanta pressa, quer que eu salte a porteira”, pensava Mossoró e concluía, penoso, que com a sua idade de agora, seria impossível, e por isso, em alguns instantes, ficou temeroso da espora nas virilhas a exigir o salto que sabia incapaz. E a porteira chegava e chegava, se aproximava, e foi se encostando tanto que Mossoró resolveu então, por conta frear: para isso teve que reunir todas suas forças e, levantando poeira das patas, interromper, de supetão, o galope; conseguiu parar a tempo e, então, delicadamente, foi ajeitando seu corpo em paralelo com a porteira de modo a facilitar a operação de abri-la.

Foi então que Mossoró sentiu movimento e vida em cima do arreio: a porteira rangeu reclamando a mudança de posição. Entraram curral à dentro, com Mossoró extasiado, a boca espumando de tal modo que encobria os freios de metal enfiado entre os dentes, o corpo que, de tão molhado de suor, parecia a quem olhasse de repente, que de tão brilhante, estava saindo de um mergulho no rio; manchas brancas de sal marcavam o pescoço e as ancas e, nas virilhas, o sinal das esporas: o único conversar do cavaleiro naquela penosa viagem.

Agora, naqueles dias, Mossoró mostrava, através dos pelos brancos espalhados no focinho e no pescoço, os sinais da idade, diferente daquele animal de sete anos antes, que carregou, enevoado de felicidade, o casal de fugidos à busca da realização do amor; hoje, desgovernado, carregava um só corpo que, de tanta infelicidade e tristeza pesava por dois; Mossoró sabia que tristeza pode parecer que não tem peso, mas pesa, e muito.

Agostinho curvou-se de lado em cima dos arreios e abriu a pesada porteira do curral feita de taboas largas de aroeira, berrando o nome do padrinho enquanto apeava do cavalo que deixou solto, arreado, sem o cuidado de tirar o freio, o arreio, dar de beber, de acarinhar o pescoço, as crinas, de agradecer: mudo, morto de gestos.

Dona Olívia, madrinha, mulher do seu padrinho Juca, sabia quem chegava e veio atendê-lo; tinha percebido, olhando pela varanda da sala, o galope do alazão descendo o morro do Taquari, e quando viu que o cavalo, galopando forte, volteou às direitas deixando a estradinha da fazenda Boa Vista e tomou o rumo e sua casa encheu-se de alegria; gostava do rapaz pelas suas alegrias, pela sua boniteza e agora pelos dois filhos: Luzia a filha mais velha, agora com seus seis anos e Romeu, o menino mais novo, gordo e sorridente em seus três aninhos: os netos que não tinha.

- “Boas meu filho..” e assustou-se com os olhos esbugalhados, vermelhos e lacrimosos do afilhado. “Mas o que houve? Santo Deus. Que foi? Que desgraça de notícia me traz?” pensando em morte ou doença grave.

- “Madrinha, cadê o padrinho? É assunto para homens.”, falou enquanto tentava domar o corpo dos soluços que teimavam em sair do peito, dos urros entalados na garganta, melhor ainda, entalados no fundo do estômago, igual a um soco, uma bolada.

- “ Madrinha, quero morrer, preciso morrer. Cadê o padrinho, meu Deus do céu.”

Dona Olívia, pasma com a dor do afilhado, primeiramente se perdeu com ideias e rezas, mas logo pôs ordem na cabeça. Gritou para a cozinha mandando fazer um chá de erva cidreira com bastante açúcar, pegou o afilhado pelas mãos e o levou para o alpendre da casa. De lá gritou pelo marido: “Juca...Jucáaa!. Agostinho está aqui. Vem logo.”

- ““ Mas, Agostinho, filho de Deus, me conte: o que foi?”, tendo, no entanto, dentro de si imaginado a resposta: “coisa da Emerenciana, que deve ter aprontado, tenho certeza.”

- “Emerenciana, madrinha: peguei ela, a desgraçada, agarrada com o Luís Celeiro . Deus do céu: não acredito no que vi. Quero matar e morrer.”

Dona Olívia, sentindo desgraça maior no ar mandou chamar, às pressas, o vaqueiro Jaime e ordenou que o mesmo fosse já , agora, a todo galope, chamar o Seu Ângelo, pai de Emerenciana aqui na fazenda. Voltou com o chá e ofereceu a caneca cheia do doce chá de erva cidreira ao afilhado, que desorientado ora chorava , ora punha os olhos no infinito e abria os lábios em um sorriso irônico, triste, cheio de infelicidade, tão desconhecida até tão pouco tempo.

Segurava as mãos do afilhado, acariciando-as, tentando dessa forma consolar e diminuir um pouco a dor quando chegou o marido Juca.

- “ E aí, meu rapaz. O que foi?”, perguntou para se fazer notar junto ao afilhado e a mulher. Na verdade, havia se encontrado com o vaqueiro Jaime no caminho, ouvido dele as ordens da mulher e tudo adivinhou. Desfez as ordens dadas: “mande o Seu Ângelo para a vila buscar a filha Emerenciana, e logo, sem tempo a perder se quer mesmo evitar desgraça maior.”

E os três: Agostinho, Dona Olívia e seu Juca quietos e mudos na varanda da casa. Não havia o que se falar tanta a dor no peito do afilhado que não cabendo mais em um só lugar foi se esparramando no ar, tomando conta de todos os peitos daquela casa, agora tão silenciosa; os passarinhos presos nas gaiolas, os galos no terreiro, o papagaio ensinado: tudo quieto, quieto! Se ouvia, longe, o balançar das folhas do buriti, dizendo que o vento corria por lá.

E os sucessivos acontecimentos foram assim:

O pai de Emerenciana, tentou e tentou carregá-la de volta para casa, mas não teve sucesso na empreitada: Emerenciana agarrou-se à filha Luzia, a uma trouxa de roupas e decidiu que iria sumir por uns tempos, tempo que não sabia qual e lugar que não sabia onde. O que sabia era, apenas, que que “carecia de sumir, mode a ninguém conhecido ver minha cara, pois se alguém , depois do acontecido me ver, o certo é a morte de tristeza e de vergonha”.

O pai de Emerenciana, Seu Ângelo, vendo tudo aquilo, misturou sentimentos de tristeza, raiva e vergonha: nunca pensava que o que tinha acontecido aconteceria; mas aconteceu, concluiu, e pegou Romeu, tão inocente em sua pequena idade , que, não entendendo nada do que acontecia, não tinha o coraçãozinho triste e, de verdade, sorria ao saber que iria ver a avó Terezinha, beber leite no curral e correr atrás das galinhas.

Agostinho não atendeu ao convite do padrinho e da madrinha para ficar por ali uns dois dias até por a cabeça em ordem. Deu água a Mossoró e pegou estrada: “a cada um já basta o próprio desgosto” ; se assemelhava, no lombo do Mossoró, a um Zumbi: via e não via, pensava e não pensava, chorava e sorria... Mossoró sentindo-se desgovernado, dono dos dois destinos, resolveu mudar de rumo: na encruzilhada fugiu do caminho da vila e galopou para as direitas em direção às beiras do Rio Grande, lugar de grandes boas memórias: pescarias, noites aquecidas com pinga e fogueira com a sanfona do Ganga quebrando o silêncio da beira do rio e inundando os ares daquele mundão sem fim com melodias alegres, de amor.

terça-feira, 6 de março de 2012

AGOSTINHO E EMERENCIANA: –I– A FUGA

DSC04624

- “Conte uma história de amor compadre. Sabe daquelas que falam de um amor forte, maior que as dores que ele, muitas das vezes, arrasta consigo. Vai mais uma branquinha?”

- “Quero mais um gole só para esquentar a goela e dar coragem à cabeça de relembrar memórias que o tempo teima em turvar, se parecendo com o Morro do Chapéu que, nestes dias de neblina, fica todo encoberto, não se deixando de ver, mesmo com a gente sabendo que o morro inteiro ainda está lá com seus coqueiros, seus jequitibás floridos de azul, suas pedras negras e sua cachoeira, que mesmo nestes tempos de seca, teima em mijar um filetinho de água branca e fria. Mas escute aqui compadre, uma coisa eu te garanto: tanto o morro do Chapéu, que vez ou outra a neblina teima em esconder, quanto as memórias impressas vida afora dentro de nossa cabeça e que o passar do tempo, muitas vezes, arresolve turvar estão vivos; vivos com suas sombras e seus sóis: não fugiram de dentro de nós; e, compadre é muito boa mesmo esta branquinha.”

E assim que ia falando, virou o copo e bebeu um gole grande de pinga, cuspiu longe o que era “para o santo” e ficou assim a ensimesmar-se com os olhos fechados, as rugas formando pequenas estradas de lado a lado na testa, parecendo aumentar ainda mais a calvície envolta de grisalhos pichainhos. Carecia de fumar um cigarro forte!

E começou a contar.

- “Paciência então, compadre. A história é longa e tem que ser bem contada por respeito ao morto, finado Agostinho, que já há mais de trinta anos descansa na paz de Deus e também por todo o merecido respeito à Emerenciana, viva até os dias de hoje, que Deus a guarde assim forte e sã, embora triste em sua sofrida e solitária viuvez, pois a infeliz, desde o passamento do Agostinho nunca mais quis saber de homem ao seu lado, fora os netos, e, claro os filhos, mas é que com estes, o que se tem é outro tipo de amor, que até ajuda a aguentar a solidão da ausência de um outro amor o de Agostinho, é o que ela, sempre que me encontra, diz.

Pois foi assim: Agostinho se enlouqueceu doidamente por Emerenciana desde a hora em que a viu, pela primeira vez, lavando roupas no córrego do Bom Jesus, que corre ligeiro, pedregulhento, volteando o Morro do Chapéu em seu lado leste, que é o lado onde o sol nasce, até chegar mais ao norte do Morro para descansar suas águas borbulhentas e rápidas no calmo e tortuoso Rio Grande. Mas isso, do córrego do Bom Jesus, não importa: estivesse Emerenciana lavando roupa junto a uma cisterna ou na beira da Lagoa do Silvinho a coisa seria a mesma: os olhos de ambos se cruzariam e enxergariam, encantados, cada qual, um ao outro e todos os quatro olhos permaneceriam por aqueles instantes abertos sobremaneira e as duas bocas se abririam, dentes à mostra pelo sorriso de surpresa de tão inusitada e encantadora beleza que cada um via no outro. Momento, compadre, para se nunca mais se esquecer, os corpos de cada qual trêmulos de desejo pelo outro corpo, e na cabeças, pensamentos até então impensados e os corações querendo saltar boca afora, sufocando as gargantas pelo que, tão repentinamente, sentiam. Tudo duplamente, os dois!

Ele, Agostinho, aos seus dezoito anos e ela, Emerenciana, com seus quinze ou dezesseis, não me lembro mais... embora mas não mais que dezesseis, isso é certeza, pois o casamento teve que ter a autorização do seu Brechó, Juiz de Menor da comarca de Baguaçu Paulista .

E houve, compadre, depois de tanto medo e sustos, grande festança de casamento; daquelas festanças antigas e boas festas, na casa do Seu João Pedro, compadre e amigo chegado do pai de Emerenciana, Seu Ângelo. Seu João Pedro, fazendeiro bem apessoado e rico, padrinho de crisma de Emerenciana, não economizou nas compras das cervejas e dos guaranás, mandou matar galinhas e frangos e também um garrote e as comadres se juntaram para cozinhar mandioca, fazer arroz doce e um enorme bolo de casamento, todo decorado e junto com as balas de coco embrulhadas em papel celofane enfeitavam a mesa. Bonita festa! “

- “Só não entendi, compadre, o porquê do medo de antes da festança.”

- “É que Agostinho roubou a Emerenciana da casa dos pais que não aceitaram o pedido de noivado e casamento. Até que dona Terezinha, mãe de Emerenciana, sabendo dos amores da filha e da visita que Agostinho faria em sua casa, naquele domingo que coincidiu com o dia da Folia de Santos Reis, bem que tentou, prevendo a negativa do marido, amolecer o coração do Sr. Ângelo, dizendo que hora ou outra, com um com outro a filha se casaria, mas não houve acordo, nem consentimento: “com aquele louco e desmiolado do Agostinho é que filha minha não vai se casar, e pronto”. Nem mesmo preces e promessas a Santa Izildinha, feitas pela mãe e pela filha, ajudaram: nem bem terminou de expressar o pedido Agostinho ouviu um não seco que reverberou até o pé da serra, chegando lá ecoou e voltou como que aquela repetição reafirmasse a Agostinho que não haveria qualquer esperança de, por bem, se casar com Emerenciana.

E combinaram de fugir.

Agostinho era um homem alto, magro, tinha a pele de um moreno bronzeado, mistura do amarelo dos avós bugres caçados a laço pelas redondezas e de remotos portugueses vindos daqueles lados de Minas, de perto do Rio de Janeiro. Dos bugres havia herdado, além da pele amarelada, a barba rala, os lábios grossos, o cabelo negro e liso e a capacidade de pensamentos e ideias próprios, oriundos não da necessidade de ocupar a mente ociosa, mas antes, frutos da vida que levava na solidão das roças que carpia. Por parte dos portugueses herdou os olhos grandes e amendoados, de um cinza meio esverdeado: enfim a misturança de raças produziu nele um homem bonito, rosto anguloso, um sorriso irônico a mostrar dentes brancos, perfeitos. Gostava de, mesmo em sua pobreza, se vestir bem, orgulhoso de sua beleza e, nos bailes, além do sucesso com as moças, cantava e tocava pandeiro, bebia um pouco a mais o que talvez fosse motivo dos receios das mães pelas paixões demonstradas pelas filhas ao dançar com o rapaz. Dançava bem, ao contrário de jogar futebol: era todo desajeitado frente a uma bola.

Agora a Emerenciana. Emerenciana era, ou melhor dizendo, é, pois ainda vive, mas vou contar dela quando moça: morena, nariz pequeno e afilado, que lhe dá quando olhada de perfil a aparência de um gavião, cabelos fartos e negros, um pouco cacheados, ombros pequenos, seios fartos, pernas curtas e torneadas a sustentar as nádegas salientes, redondas e firmes logo abaixo de uma cintura fina. Mais portuguesa, sem bugres na família, ainda menina, já mostrava os buços acima da boca carnuda, e que, com a idade foi aumentando, aumentando, virando quase um bigode e obrigando-a ao doloroso processo de retirá-los com cera quente; tinha também bastante pelos nas pernas que eram, aos domingos, raspados com a mesma navalha que Agostinho usava para fazer sua pouca e rala barba. E em seu rosto bonito os seus olhos intrigavam: pequenos, negros, com muito brilho, mas dotados, como um espelho, de uma sinceridade que ao vê-los, sentia que a conhecia. A seus olhos, Emerenciana, nunca mentiu, nunca guardou segredos; por isso eram, mais antes que hoje em dia, transparentes, espelhosos.

Mas como ia dizendo: fugiram.

Combinaram assim: fugiriam na noite do baile da “traição” que teria no sábado na fazendo do Seu Carvalho. Aproveito aqui e peço licença para um pequeno parênteses nesta história compadre: muitos dos novos moços não sabem o que é baile de traição. Vou explicar: uma das grandes festas que ocorriam naquelas épocas enaquelas e outras regiões eram os mutirões, nos quais as famílias se reuniram para ou roçar um pasto que estava atrasado ou capinar um lote de café que estava sendo engolido pelo mato...enfim juntava-se os homens, normalmente em um sábado, a fim de por algum serviço atrasado e urgente em dia; nestes dias de mutirão enquanto os homens labutavam na roça as mulheres se juntavam para fazer o almoço, o arroz doce e preparar a tolda no terreiro para o baile. Pois uma traição, como o compadre bem sabe, é um mutirão, só que de surpresa, ou seja, o escolhido para a traição, sem nenhum aviso, era acordado, antes do dia clarear, com foguetes e gritos alegres; para ver o que é abre a porta de casa e vê a multidão se aproximar: homens com a enxada ou foices às costas, as mulheres carregando os filhos e panelões de alumínio e então se combina o serviço a ser feito; como no mutirão as mulheres vão para o fogão e os homens para a roça. O dono junto a algum outro, normalmente mais velho, se responsabiliza para providenciar, além do sanfoneiro para o baile, a tolda para cobrir o terreiro e para buscar, na venda, possíveis necessidaades e, com certeza, a pinga para o quentão e para a beberragem. Todos se divertiam, e muito!

Mas voltando ao casal de enamorados, que em segredo, assim combinaram: aproveitariam a queda do pai de Emerenciana para uma pinga e, tão logo o vissem já dançando com as pernas bambas e a voz embargada, Agostinho pediria para que o sanfoneiro tocasse “O forró do Mané Vito” , que ele cantaria, trepado em um caixote de sabão; era o sinal para que Emanoelina, deixasse, quieta a tolda do baile, seguindo pomar abaixo, em direção ao cruzeiro, fingindo ir a busca de cumprir necessidadeno chegando ao cruzeiro, ficaria por lá bem quieta, quieta aguardando por Agostinho, que cantava bonito, afinado e ritmado o Forró do Mané Vito:

“Seu delegado, digo a Vossa Senhoria,

Que’u sou fii diuma família,

Qui nungosta de brigá!

Mas trasantontii,

No forró do Mané Vito,

Tive qui fazê bonito,

A razão vou lhiexplica...”

Desceu do caixote de sabão, entregou o pandeiro o Luís Antônio, olhou para sua mãe, pedindo benção com os olhos, e saiu; pegou, no pasto, Mossoró, já todo arreado, montou e perto do cruzeiro deu os três assovios combinados: Emerenciana, com uma pequena trouxa de roupas, atendeu aos assobios, subiu em um pé de cupim e montou na garupa do Mossoró.

Ela Emerenciana, então, sentiu as costas quentes do amado Agostinho e, pela primeira vez, colocou o rosto naquelas costas largas e morenas. Agostinho sentia, mesmo aos solavancos do galope de Mossoró, o rosto quente em suas costas, sentia os lábios de Emerenciana tocarem sua camisa, suas mãos agarrando firme sua barriga: acariciou suas mãos e meteu fundo as esporas nas virilhas de Mossoró que, esperto, apressou mais ainda o galope, buscando as margens do rio Grande, direção à comarca de Guaviruva, onde planejavam esperar, na igreja, os pais e os padrinhos que convidariam: amigos que, também, seriam os padrinhos dos filhos que sonhavam ter.

A noite era escura, sem lua. Mossoró galopava firme e o corpo dos dois acompanhavam os movimentos do cavalo: parecia tudo um só.

O dia começou a clarear quando estavam já chegando no alto do morro do Taquari: Mossoró, exausto, suava por todo o corpo, a boca espumava o cansaço da tão urgente corrida, como que adivinhando os sonhos que carregava. Quando foram chegando nas Três Cruzinhas Agostinho emitiu um longo “Psiuuuu”, e, ao mesmo tempo, segurou firme as rédeas; Mossoró obedece: do galope, rapidamente, passou ao trote e do trote para a marcha picada e estancou-se, parado ao outro “Psiuuu”.

Agostinho desmontou primeiro e ajudou Emerenciana a apear do cavalo. O dia clareava quando os dois se perceberam sozinhos, livres de olhares, de autoridades, de pecados. Agostinho tirou o freio que prendia a boca de Mossoró e o prendeu com o cabresto ao pé de uma mangabeira.

Cerimoniosamente tirou os pelegos que forravam o arreio e a garupa do Mossoró e pouco mais abaixo do pé de mangabeira ajeitou-os ao chão.

Os olhos se encontraram!

Os corpos, trêmulos, foram se chegando, chegando até que se tornassem um só aproveitando do macio dos pelegos que se transformaram em um leito de amor.