segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

A HISTÓRIA DE JURANDIR SEREBURÖIII–A LUA DO HÖ

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Acordei com a chegada do sol e fui ao rio banhar-me.

Ali no rio, banhando-me, resolvi que aquela seria a lua do meu Hö, o rito de minha passagem.

Tinha então que sair à procura de urucum tanto para arrumar tinta para pintar meu corpo como para fazer, com um galhinho fino e duro, um artifício e com ele furar minhas orelhas. E assim, pensando nisso, que sai meio sem rumo, margeando a beira do rio até que bem longe, por onde ainda não havia passado, foi que avistei uma lagoa todinha rodeada de densa mata.

Deixei a margem do rio para alcançar a lagoa. E nela vi, em seu fundo, traíras enormes nadando e procurando comida no fundo escuro, fazendo confundir seus corpos negros com a lama. Tentei e tentei flechar uma mas não consegui e penso, agora, que as flechas desviavam de rumo pela fundura da lagoa.

Desisti e saí pela mata que arrodeava toda a lagoa a procura de urucum. Os matos e os cipós espinhosos dificultavam o caminhar e o sol, por causa de tantas e copadas árvores, não conseguia chegar ao chão: sob o forte calor úmido meu corpo se derramava de suor. E, assim suado e receoso de me perder naquela mata quente e escura ou de ser picado por cobra, dei de cara com uma moita de timbó. Onde tem timbó não tem cobra e me veio uma coragem forte: me embrenhei pela moita de timbó adentro e clareou em meu pensamento: me perder? Impossível! Me perder do que? Não tinha de onde.

E continuei assim pensando e resolvi então que a minha janta seria a traíra teimosa que resistiu, na lagoa, às minhas flechadas. Colhi um feixe de ramos de timbó e sai da mata, disposto a, quando começasse a anoitecer, ir à forra com a traíra que há pouco que me vencera.

No caminho de volta para minha oca voltei a pensar em meu Hö. Comeria traíra, pintaria meu corpo com urucum e furaria minhas orelhas.

E fui para a margem do rio e com a fina ponta de uma flecha iniciei o doloroso processo de furar uma orelha. Na tribo de minha mãe essa era uma tarefa dos pais que executavam em seus filhos sem pena nem dó. Quando era necessário - por resistência do jovem pelo medo da dor - um tio ou um amigo , nunca uma mulher, vinha à ajuda do pai: agarrava o jovem pelos pelo pescoço e pelos ombros imobilizando-o para que o pai, com um ramo fino de urucum, furasse sua orelha; claro que para os mais velhos, aquela resistência do jovem, era já um sinal de que ele não seria um bravo guerreiro e que seria vencido nas lutas que teria que enfrentar pela frente, durante as cerimônias do Hö.

Eu, em meu Hö, não teria adversário para as lutas nem pai para furar minhas orelhas. Meu Hö seria, mais tarde eu viria a descobrir, a minha passagem para toda uma vida solitária.

Sem dó e sem grito peguei uma orelha, estiquei o tanto que dava e meti a flecha até atravessar: jorrou sangue que se misturava com a água clara do rio. Pequenas piranhas e lambaris, chamados pelo vermelho do meu sangue, vieram até a margem e, penso, beberam um pouco de mim naquela água tingida de vermelho.

Doeu muito, mas não chorei, resolvido que estava a não mais chorar.

Voltei para a oca, comi araticum, restos da paca que assara e iniciei o preparo do timbó para a pesca da tarde: para isso, recolhi, perto da oca, duas pedras com as quais amassei bem os galhos de timbó para facilitar a saída do veneno que faria morrer a traíra da lagoa.

Ansioso, esperei que o sol iniciasse a se esconder à margem da lagoa.

As traíras continuavam a nadar no fundo buscando comida para encher o seu corpo negro e liso. Entrei na lagoa e, quando a água chegou no peito, choqualhei e bati as varas amassadas de timbó nas águas da lagoa: fiz bastante barulho com os galhos de timbó e cantei canções que havia aprendido nas caçadas que havia feito com os meninos da tribo de minha mãe; nessas caçadas cantávamos canções que estes meus amigos haviam aprendido quando caçavam com seus pais.

Cantei alto!

As águas da lagoa , surpresas em seu silêncio pela cantoria que eu cantava e pelo chocalhar dos galhos de timbó, acordaram e soltaram borbulhas e acordadas de seu não nada fazer, criaram pequenas ondas que chegavam às suas margens bolindo com os galhinhos e matinhos que a rodeavam. Estes, então, felizes, dançavam ao sabor da novidade das ondas que nunca haviam visto.

Uma traíra negra boiou na superfície da lagoa. Em minha pressa de apanhá-la, trunfo de minha vitória, escorreguei em um tronco e me afundei nas águas, agora borbulhentas, da lagoa. Como sabia nadar muito pouco bebi água. E assim, tossindo e vertendo água pelo nariz e pela boca, foi que agarrei a traíra que, meio morta, boiava sobre as águas borbulhantes e escuras da lagoa: para mim a negra e lisa traíra representava o troféu na vitória das lutas que não enfrentaria em meu Hö.

A traíra era enorme: negra, lisa, escorregadia, olhinhos pequenos e mostrava seus dois bigodes grandes que saiam de cado lado da boca cheia de dentes que pareciam serrote.

Mas foi então que - eu com a água chegando no meu peito, no fundo da lagoa - comecei a sentir em todo o meu corpo uma zonzeira e um desiquilíbrio: o mundo começou a girar em minha volta, as árvores entravam lagoa adentro, as traíras pulavam altas ondas, os galhos de timbó passaram a ter vida e, por conta própria, babavam uma baba pegajosa na água da lagoa e dentro de minha boca indo até minha garganta. Catei a traíra, e completamente aturdido, ajeitei o arco e as flechas em minhas costas e saí, bêbado de ter bebido água misturada com timbó, da lagoa em busca da margem do rio.

E tive o meu primeiro medo de morrer!

Chegue na pequena praia completamente exausto e tonto: meu corpo não obedecia meus pensamentos, e meus pensamentos eram incompreensíveis para mim. Deitei na areia com a traíra ao meu lado e deixei o mundo girar com mais força. Uma sede de água limpa invadiu meu corpo e, obedecendo ao que meu corpo pedia, me arrastei pela margem a procura de água.

Estava escuro: a lua do meu Hö era a lua nova.

Bebi água limpa do rio e me agarrei a um tronco de pita que, como eu, estava caído á beira d’água.

Dormi.

Acordei, assustado, no meio do rio, agarrado ao tronco de pita que me ajudava a boiar. Meus pés não alcançavam o fundo do rio e sua forte correnteza me arrastava. Me afundei mais uma vez, bebi água e então, desesperado, me pus a nadar, batendo forte os braços e as pernas, fugindo sem saber do que, buscando uma margem que não sabia qual; procurava, agora, com todas as minhas forças e livre da tontura que tanto me havia atormentado, a margem mais próxima, não importa qual fosse, mas que levasse para longe de mim a morte, que mais uma vez eu via.

E, agarrado ao tronco de pita, na escuridão da lua nova do meu Hö, nadei desesperada e fortemente até sentir meus pés tocando a terra. Exausto, me pus então em pé e caminhei para uma margem até encontrar terra firme, uma areia úmida onde me deitei e, como um cachorro amedrontado, me enrolei sobre mim mesmo, me arredondei em um buraco e adormeci.

Acordei com o sol forte às minhas costas.

Tinha comigo minhas flechas, meu arco e minha faca. Perdera a traíra, onde eu não sabia.

E me peguei a pensar em que lado do rio eu estava: do lado da tribo de minha mãe? ou do outro lado, o “meu” lado, o lado de lá?

Resolvi então em subir em um pé de buriti e lá do seu alto, perto das estrelas que furavam o teto do mundo, enxergando o mais longe que meus olhos pudessem, descobrir de que lado do rio em que eu me encontrava. E sorri ao pensar que poderia, no alto das folhagens do buriti, encontrar uma jovem ...

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

A HISTÓRIA DE JURANDIR SEREBURÃ -II -DO OUTRO LADO DO RIO

2009guaraqueçaba 038retoc

Acordei do outro lado do rio.

Cabeça encostada aos joelhos, um braço sob o corpo e outro protegendo os olhos, todo redondo, curvado como um tatu-bola; olhei em volta, desconfiado, com os olhos sujos de remela.

Vi o outro lado do rio, longe, longe as ocas da tribo de minha mãe. A pequena praia de areia branca do outro lado estava vazia dos corpos dos homens que, sempre de manhã, iam lá banhar-se: estavam longe à procura de caças para as festas do Hö.

Continuei enrolado no buraco de areia, meio acordado e não querendo, de medo, acordar de vez.

Por fim o sol aqueceu forte minhas costas e resolvi abrir os olhos de vez. Não sabia se ia à prainha, tão perto, tomar o banho da manhã ou se ficava ali quieto esperando que, a qualquer momento, uma piroga atravessasse o rio à minha busca.

Foi todo um dia de angustiante espera. Nem mesmo a sombra da árvore com araticuns maduros que matavam a minha fome me davam descanso: pegava uma fruta e corria para a beira do rio, levando comigo seu perfume forte, esperando e olhando a outra margem vendo se enxergava a piroga que não aparecia.

Comi araticum, ananás, bacupari e cambucá. Sempre assim: colhia a fruta e corria para na praia esperando a piroga.

Chorei quase o dia todo.

Ao final do dia cortei folhas de buriti e montei uma pequena oca onde dormi todas as noites daquela primeira lua que passei do outro lado do rio: só, isolado e choroso. Meus dias eram dias de angústia e de espera: a todo momento vigiava as margens na esperança de uma piroga que me levasse de volta para o outro lado.

Em um destes dias, para melhor enxergar todo o rio, subi em uma árvore de babaçu; era uma árvore que de tão grande chegava perto das nuvens e ficava muito acima das copas das outras árvores que moravam na margem do Rio das Mortes. Subi até o seu alto e de lá, quase chegando nas nuvens, olhando a outra margem e sem enxergar nenhuma piroga atravessando o rio a minha procura, foi que me lembrei, e fiquei temeroso, da história da moça- estrela.

Vou contar a história da moça-estrela. Um pequeno rapaz índio, dos tempos em que não havia Hö, subiu em um buriti e lá no alto de suas folhas encontrou uma linda jovem; os dois, encantados cada um pelo outro, desceram para a terra e, na esteira das folhas do buriti, fizeram amor. Gostaram tanto de fazer amor, e achando que era melhor se amar do que voltar para suas famílias, que o indiozinho e a moça-estrela resolveram não retornar para suas famílias.

Quando os pais do indiozinho deram por sua falta mandaram um seu irmão menor procurar o jovem enamorado. Seu irmão o encontrou com a moça- estrela, nas esteiras de buriti, se abraçando, sem querer voltar para casa. Seu irmão retornou para casa e contou o que viu aos seus aos pais que, dia seguinte, saíram a sua procura. Chegando ao local encontraram apenas o indiozinho sem a moça-estrela; Interrogado negou que estivesse com alguém, mas, mesmo assim, foi obrigado a voltar para junto de seus pais. Dia seguinte, chamou o irmão e pediu que o mesmo pegasse uma borduna para ir com ele para à floresta buscar embira. Caminharam, caminharam até achar uma palmeira, que no alto de suas folhas, se encontrava deitada a moça-estrela.

Então ele ordenou ao irmão:

- “Não olhe para cima. Pegue a borduna e vá batendo com força no tronco desta palmeira e, ao mesmo tempo, vá cantando “aiwede pana, aiwede pana” que significa “cresce árvore, cresce arvore.”

Enquanto o irmão batia no tronco da palmeira com a borduna o mais velho subiu até alcançar a moça-estrela. E o irmão bateu, bateu, bateu e cantou e cantou e a palmeira cresceu, cresceu, passou as nuvens e chegou ao teto do mundo. E foi lá, no outro mundo, que seu irmão amou, criou família e passou a viver..

E naquele dia em que subi na árvore de babaçu para vigiar o rio, quando estava lá no seu alto, tudo vendo, enxergando até o infinito da selva, foi que tive um grande medo: “e se a árvore resolver crescer, crescer...” e, com medo, desci rápido, escorregando pelas folhas e galhos da árvore de babaçu e corri para a margem do rio onde continuei a vigiar e a vigiar para ver se alguma piroga chegava até a margem do lado de cá do Rio das Mortes.

Em uma manhã, já em outra lua, acordei com barulhos e sons na outra margem. Eram os adultos que haviam voltado da caça para a cerimônia do Hö. Apenas adultos se banhavam e cantavam canções para a festa do Hö: os indiozinhos já se encontravam reclusos na oca especial para cerimônia.

Tive, então, naquela manhã, uma vontade grande de subir até o alto da árvore de babaçu.

Subi até o seu mais alto galho de onde tudo se via. E, lá no alto, perto das nuvens, me peguei olhando para o outro lado, para o cerrado e não mais para os lados da aldeia de minha mãe. Lembrei-me outra vez da história da moça-estrela mas não tive medo de que a árvore resolvesse começar a crescer e a crescer : “se ela crescer eu me encontro com a moça-estrela” e tive grandes desejos de mulher. Fiquei um tempão no alto do babaçu sonhando e vendo meu corpo que se iniciava a ser corpo de homem guerreiro.

Desci do babaçu e fui para o cerrado.

Lá encontrei moitas e mais moitas de canela de ema: retirei as suas bolotinhas que ficaram depois da florada e levei para perto da margem. Recolhi galhos e folhas bem secas de buriti e preparei uma pequena fogueira: coloquei no alto as bolotinhas de canela de ema para quando o sol ficasse bem quente aquecesse as bolotas oleosas da canela de ema, estourando-as e fazendo surgir o fogo.

E foi assim que fiz a fogueira e que depois mantive acesa usando grossos tocos de angico que achei junto à margem e à beira do cerrado.

Fiz armadilhas para caçar pacas e matei, a flechada, uma traíra que encontrei em uma lagoa que margeava o Rio das Mortes.

Era a lua do meu Hö.

E eu, solitário, resolvi que minha vida não estava do outro lado do rio.

Estava onde então?

Eu não sabia.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A HISTÓRIA DE JURANDIR SEREBURÃ - I - A INFÂNCIA

2009 Caminho da fé 065RETOC

“e é a partir dessa carência essencial, para livrar-se da ninguendade de não índios, não europeus e não negros, que eles se veem forçados a criar a sua própria identidade étnica: a brasileira.” Ribeiro Darcy, O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil”, Cia. Das Letras, 2006. Pag. 118.

Então, o meu nome, quero dizer, o nome que, mais tarde, os padres resolveram me colocar é esse: Jurandir Sereburá. De antes disso era arãrãre, que significa beija flor, e eu era chamado assim por culpa de ser muito pequeno, preguiçoso de crescer e muito quieto, silencioso de conversas.

Assim que eu nasci, e, pequeno até os dez ou doze anos, não tinha nome, nem pai. Sem pai, órfão, vivi toda minha vida: agora não reclamo mais, acostumei-me.

Foi assim: minha mãe, em um ano em que faltou comida na aldeia, saiu a procura de coco de babaçu e enxergou um branco português que estava pondo fogo no mato para fazer roça de milho; o português mostrou farinha e uma faca para minha mãe.

Mais tarde minha mãe me contou que estranhou muito o corpo do português: todo peludo, inclusive nas pernas, parecendo uma emboaba, e quase não se via o sexo de tanto cabelo nas partes de baixo. Quando voltou para a aldeia com farinha na cuia, uma faca nas mãos e comigo na barriga, os maiores da aldeia obrigaram que ela, antes de fazer comida, lavasse as mãos.

Mãe contou que durante toda a semana que havia encontado o português e trazido farinha e faca para casa procurou e procurou seu marido mas só encontrava a rede vazia: marido estava na rede de sua outra mulher. Nas outras noites seguintes minha mãe também procurou a rede, que continuava vazia de homem, só com seu cheiro, até que uma noite encontrou um sapo morto com a boca e o anus costurados, significando, com isso, que minha mãe só seria aceita na rede depois do primeiro sangramento. As luas se passaram e o sangramento não veio.

Então minha mãe pegava a cuia e ia até a roça do português buscar farinha.

E sua barriga cresceu e cresceu: eu, lá dentro, na quentura úmida de seu ventre, ouvia seu cantar e seus choros. Quando foi o tempo, em uma noite de lua cheia, ela foi até a beira do rio e eu nasci.

Por não ter pai cresci separado dos outros filhos de minha mãe.

Foi então que foi chegando os tempos do Hö que é a época da iniciação, em que os meninos são separados para a cerimônia, vivem reclusos por uns tempos, furam as orelhas para se tornarem guerreiros.

Como eu não tinha pai não tinha quem me orientasse nas feituras das flechas de tucum, negras e finas para se pescar peixes no bravo e correntozo rio e também ninguém para pintar meu corpo com urucum e carvão para as cerimônias do Ho.

Eu chorava por isso.

Mesmo assim, aprendi a fabricar flechas de tucum. Aprendi com outros meninos da tribo que tinham aprendido com seus pais: como que eu era excelente atirador e caçador os meninos sempre me convidavam para ir até a mata, à beira do rio buscar tucum para as flechas e matar pássaros e cotias que eram trazidos para juntar às farinhas de nossas refeições.

Uma noite na rede minha mãe me disse que a cerimônia do Ho estava para se iniciar: uma ou duas luas apenas e que assim, logo os guerreiros sairiam todos à caça de antas e capivaras para serem assadas nas festas do Ho. Passou uma lua e a tribo acordou um dia sem os seus guerreiros: apenas com as mulheres, velhos e crianças.

E foi nestes dias com a tribo só com os velhos, mulheres e crianças que o avô de meus irmãos chamou a todos, e eu também, para atravessar o rio de canoa: era hora de aprender a flechar dourados e mandis. Fiquei feliz e contente porque eu só podia ir junto com os meninos de minha idade em suas caçadas e pescarias quando não ia nenhum adulto. Mas naquele dia fui colocado na ponta da canoa, que atravessou o rio largo e fundo, cheio de piranhas e outros seres que à noite saiam de dentro das águas para roubar as roças de mandioca.

Eu sorria um riso de total felicidade e não entendia bem porque minha mãe chorava tanto e tanto com minha viagem de canoa até o outro lado do rio para aprender a matar dourados e mandis com flechadas de tucum para a festa do Ho.

E a piroga, remada pelo avô de meus irmãos, ia vencendo as fortes correntezas do rio das Mortes; quando foi chegando no outro lado do rio o velho remador abriu sua enorme boca sem dentes, lingua negra de tanto mascar fumo de corda e berrou:

- “Pule, pule da canoa, que já chegamos”, e eu saltei e corri com a água nas canelas para a margem cheia de areia branca.

E vi que a canoa voltava para a outra margem.

Fiquei só e com medo.

Chegou a noite e o medo aumentou: chorava por minha mãe, por uma rede que do seu alto me aliviasse dos perigos das cobras e de outros bichos que deveriam morar por ali do outro lado do rio.

Ao escurecer deitei na areia e imitei os cachorros da aldeia que se enrolavam , se enrolavam fazendo, com o corpo, um buraco na terra e lá dormiam. Fiz assim, igual: fingi de ser cachorro para não ter medo dos bichos e nem da escuridão.

E dormi.

O dia clareou com o sol iluminando primeiro o outro lado do rio e as ocas da tribo de minha mãe, os matos e só chegou um pouco depois aqui do outro lado e me esquentou.

E eu só, do outro lado do rio, com meus medos, minhas flechas de tucum, meu arco e a faca que minha mãe havia trazido junto com a cuia de farinha oferecida pelo homem branco quer punha fogo no mato para fazer roça.