segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA - 8–PAINEL DE MEMÓRIAS–2

 

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CAMINHANDO COM CHUVA!

Detesto caminhar com chuva; gosto, mesmo, é do sol ardendo, da sombra das árvores, dos banhos nas cachoeiras, nos rios ou nos córregos!

E já que todas as minhas peregrinações, aqui no Brasil, foram realizadas sob o signo do sol ardendo, com direito a banhos em cachoeiras, que resolvi, nesta caminhada pelo norte da Espanha, usar o mesmo estratagema e com tal segurança confiança que nem mesmo capa de chuva eu levei.

Vou contar.

Nas caminhadas realizadas pelo Caminho da Fé - que em seu trecho Águas da Prata – Campos de Jordão, fiz mais de uma vez – tenho sempre feito um acordo, ou um “trato” com o Padre Donizete para não chover. O trajeto original do Caminho da Fé - o nosso Caminho de Santiago tupiniquim - tem o início de seu percurso em Tambaú indo até Aparecida do Norte. Tambaú é uma pequena cidade situada ao norte do Estado de São Paulo e foi o palco na década 50 do século passado, de intensos e frequentes milagres do Padre Donizete. Dessa forma podemos dizer que o Padre Donizete e nossa Senhora da Aparecida são os “padroeiros” do belíssimo Caminho da Fé. Então é a ele - padre Donizete – a quem apelo e com quem faço um acordo: se ele ajudar e não chover durante a caminhada eu prometo uma coisa ou outra.

E esclareço que tenho cumprido a minha parte e o Padre Donizete a dele; em todas as caminhadas realizadas por aqui somente uma única vez choveu, e mesmo assim, muito muito pouco; e creio, mesmo, que o pobre coitado do Padre Donizete, ao atender o meu pedido de não chuva e os milhares e mais necessários pedidos de chuva, feito pelos lavradores da região, tem atendido aos dois: faz chover à noite. E nada melhor que caminhar sob o sol e saber que a terra está molhada, úmida, dando de beber as plantas, os rios, os córregos e as cachoeiras cheios, transbordando de tanta água.

Mas o Padre Donizete tem sido sempre muito exigente para definir o acordo. Explico: quando me proponho, por exemplo, rezar, toda noite, três ave-marias o padre não aceita e sempre exige mais: quer que eu reze um terço completo, ou que em um domingo eu vá à missa e confesse e comungue. Tem-se então um respeitoso processo de mercadejar entre o padre e este peregrino: explico ao padre que tenho que sair cedo o que me impede de ir à missa, que estou velho para caminhar com o sol muito ao alto e chegamos a um acordo: não vou à missa, mas rezo uns pares a mais de ave-marias, umas salve-rainhas e me comprometo a não ter maus pensamentos à noite. E não tem chovido durante minhas caminhadas: o bondoso e santo padre tem cumprido sua parte e, até mesmo, entendido pequenos deslizes e escorregões que, quase sempre, cometo às minhas promessas.

Por isso estranhei quando Santiago de Compostela aceitou, sem barganhar, minha primeira oferta que foi a de não ter maus pensamentos à noite em troca de não chover no Caminho. Santiago deve ser muito ocupado, pensei à época, face ao número de peregrinos no Caminho de Santiago ser infinitamente maior que o de peregrinos que caminham pelo Caminho da Fé, e a necessidade de atender a tantos peregrinos, falando diferentes idiomas, com pedidos os mais inusitados talvez faça com que a Santiago de Compostela não tenha muito tempo de mercadejar, aceitando logo a primeira oferta. Deve ser coisa, pensei, como a que ocorre em consultas com um medico particular e suas longas consultas, conversas, toques, estoque de perguntas, leitura dos exames, pesa e a tudo examina, do olho ao dedão do pé e a consulta em médicos de convênio: rápidas, pede-se logo um monte de exames e marca-se o retorno, para assim que os exames estiverem prontos, mas que está tudo bem, a saúde está boa, e até logo.

Mas o que importa aqui é que realmente estranhei quando Santiago aceitou, de imediato, meu compromisso de não ter maus pensamentos à noite em troca de caminhar sem chuvas.

Senti, mesmo, certo complexo de culpa pela facilidade que teria em cumprir minha parte no acordo, tendo em vista a minha idade, que, mesmo sem o peso de quilômetros e quilômetros de caminhada, tende a privilegiar o sono em relação aos maus pensamentos noturnos; e assim fui cumprindo, fielmente, minha parte no acordo.

Quanto a Santiago, diferente do Padre Donizete, o mesmo parecia não ocorrer. Já em Pamplona, no quarto dia de caminhada, a notícia corria solta entre os peregrinos: previsão de chuva e mais chuva nos dias seguintes.

E eu não tinha capa de chuva. Compro uma ou confio no trato feito com Santiago?

E caminhar com chuva no Caminho de Santiago, com a temperatura a três ou quatro graus, com longos trechos sem nenhuma possibilidade de proteção sob uma árvore ou uma casa, enchia meu coração de medo.

Mesmo assim resolvo: não compro uma capa, pois se o tão tupiniquim padre Donizete sempre cumpriu o acordo o mesmo, com certeza, ocorreria como o europeu Santiago. De minha parte, nenhum deslize no prometido!

E foi então, em uma manhã, creio que saindo de Puenta La Reina em direção a Estella que o céu cobriu-se de nuvens negras, ameaçadoras.

Certeza de chuva.

Em uma “tenda” procuro, com um atendente prestativo, informações de onde eu poderia comprar uma capa de chuva, e o atencioso e prestativo rapaz desembestou a falar:

- “ ?ddflakddf olkjfcefr? jejjj , dljdfd , industrial. Um momento!”

Explicando: o que está entendível na frase foi o que consegui compreender da apressada fala do atendente.

Que fazer? Pedi outro café duplo com leite e aguardar.

Pouco depois o rapaz aparece com um saco preto de plástico, destes de colocar lixo “industrial” – e ai entendi o sentido do industrial de sua fala – e gentilmente, com uma tesoura afiada faz um furo no fundo do saco onde colocaria minha cabeça, dois nas laterais, por onde passariam meus braços e assim, vestido de espantalho, caminhei sob fortes chuvas de Puenta de La Reina a Estella e de Estella a Los Arcos. E aquela capa de chuva improvisada me serviu por mais um ou dois dias de chuva forte. O percurso entre Los Arcos e Logroño foi realizado, felizmente, sob um céu azul e o sol brilhando no alto, aquecendo as costas durante toda a manhã. E, sob o sol, caminhei assobiando, cantando, feliz, esquecendo a falta de compromisso de Santiago para com o acordo feito.

Em Logroño, desconfiado, comprei, em uma loja do Serviço Municipal de Apoio ao Peregrino, uma capa de chuva verde com um enorme desenho da concha de vieira, símbolo do caminho, às costas.

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ESCARGOT E IÇÁS

A trilha, molhada pelas chuvas recorrentes, brilhavam, agora ao sol. E pequenos caramujos, sozinhos ou em pequenos bandos caminhavam devagar atravessado a trilha, deixando seu rastro luminoso feito de uma baba transparente. Bonitos e tinha que, muitas vezes, caminhar olhando para o chão para não pisotear os bichinhos com a bota barrenta e pesada.

- “Isso é escargot?”, perguntei ao Pablo, amigo e companheiro no caminho.

- “Sim, são escargots. Depois das chuvas saem e costumávamos caçá-los, prendê-los em uma gaiola vazada por uma semana, sem comida, para que ficassem totalmente limpos: depois era cozê-los e, claro, comê-los. Muito bom.”.

Nunca comi um escargot e não tenho vontade. Me causa certo mal estar pensar em comer a lesminha, parecendo um torresmo cozido, derretendo na boca.

- “Nojo?”

- “Sim, um pouco de nojo, devo confessar, coisa de falta de costume, pois já comi içá.”.

Era assim: também depois das chuvas, que ocorriam em outubro e novembro, se vigiava o céu para descobrir verdadeiras nuvens de içás e ira à caça.

Uma festa. Pai mandava e nós, ainda meninos, alegremente obedecíamos; nos juntávamos aos vizinhos, aos primos e, caçarola debaixo do braço, catávamos, sempre disputando quem enchia mais a caçarola de saúvas e sem dó, nem piedade, arrancávamos suas asas e depositávamos na caçarola. E elas caiam na caçarola feito uma bolinha de gude, ou uma jabuticaba marrom, só que com perninhas aflitas que não paravam de mexer, buscando a infrutífera fuga.

- “E vocês comiam?”.

Depois, em casa, tira-se as perninhas e lava. Em uma frigideira, coloca-se bastante gordura de porco, aquece, joga sal nas bolinhas e frita. Uns gostam de comer com farinha de mandioca, meu pai gostava de jogar pimenta malagueta em cima da fritada e comia enquanto bebia goles e goles de pinga. As mulheres, sem o costume de beber pinga, comiam com arroz.

Sabe que até o Drummond, sim o Carlos Drummond de Andrade, comeu? E escreveu uma inesquecível crónica falando das tanajuras. Em sua história Drummond conta de um amigo, menino como ele, que à noite, após alegre caçada e haver saboreado uma boa quantidade de içás sonhou que estava a escolher uma enorme içá para arrancar suas asinhas quando a mesma foi se avolumando, avolumando, tornando-se cada vez maior e ameaçava - não me lembro de mais se conseguiu ou não arrancar seus braços para jogá-lo em uma frigideira cheia de banha de porco fervendo, fritá-lo e fazer uma paçoca. Cruz credo!

E lembrei-me, naquele dia, vendo os escargots, dos popozinhos das tanajuras fritos na frigideira, estourando na boca sob a pressão dos dentes e da língua, soltando e esparramando na boca seus ovinhos, dos quais não me lembro de mais o sabor. Não sei se hoje, teria coragem de comer içás fritas, e muito menos de arrancar suas asinhas, e só para depois sonhar como o amigo do Drummond.

Melhor pão espanhol e queijo de cabra!