sábado, 15 de janeiro de 2011

HISTÓRIAS DO BEATO GASTÃO: PRIMEIRA HISTÓRIA

2009 Caminho da fé 025

O primeiro encontro com o Beato Gastão foi fruto de iluminada coincidência, se pode chamar ao ocorrido de coincidência. Foi assim: eu me encontrava enfiado na Serra da Mantiqueira em mais uma de minhas peregrinações pelo Caminho da Fé. Naquele dia o planejado era caminhar uns vinte e poucos quilômetros e pernoitar em uma isolada pousada para peregrinos, na serra das Limas, meio à belíssima Mantiqueira, mas o pensado e matutado não ocorreu por culpa de uma cachoeira.

Eram quatro horas da tarde, mais ou menos quando revi a belíssima cachoeira da Surpresa, distante uns cem metros da trilha que me encontrava. Não era a primeira vez que passava pela Surpresa; a cachoeira sempre me encantava, mas por um motivo ou outro não ia até ela banhar-me. “Escute: você tem seus sessenta e tantos anos, chegando aos setenta, pense nisso: a vida é curta!”, assoprou em meu ouvido o vento fresco naquele dia tão quente. As águas claras e límpidas, o silêncio absoluto - exceto o cair das águas nas pedras e um canto aqui e outro ali do bem-te-vi que me acompanhou no caminho por todo o dia - forçou a decisão. E assim me esqueci, deliciosamente, da vida: tinha lanche o suficiente para uma refeição noturna e uma minúscula barraca Bivac para o pernoite.

O sol já se punha quando, pesarosamente, saí do banho; coloquei a roupa no corpo, a mochila nas costas e saí à procura de um local para o pernoite: esperava encontrar, para armar a Bivac, uma paineira para poder ver as estrelas entre suas folhas, ou a margem de um córrego para dormir ao som de suas águas correntes. A noite estava chegando e logo depois de uma curva na trilha surge uma pequena e abandonada capelinha à margem da estrada: decidi que seria ali o pernoite.

Vou, como sempre, abrir um parêntese na história, mas desta vez acho que vale mesmo a pena. Para os que não conhecem a Bivac é uma marca de barraca típica para andarilhos. Pequena, leve e para melhor entender: quando armada lembra mais um caixão de defunto do que as redondas e confortáveis barracas utilizadas pelos que gostam de acampar. É uma barraca para dormir, na qual nem sentar-se com algum conforto se consegue. E antes de fechar o parágrafo: a primeira vez que vi a palavra Bivac foi em Os Sertões, onde Euclides da Cunha usa como verbo: os soldados “bivacaram”. Agora sim fecham-se os parênteses e vamos à história do Beato Gastão.

Ao fundo da pequena igrejinha havia um gramado plano e foi lá que armei a Bivac. Lanchei o que havia de disponível, bebi água e me preparei para dormir. Havia caminhado por volta de uns dezoito a vinte quilômetros, o banho na cachoeira relaxou meu corpo por demais e o sono me levou para dentro da barraca. Nuvens negras e clarões de relâmpagos anunciavam as típicas tempestades que ocorrem no dia de Reis.

Dormi.

Ouvi uma voz:

- “Oi de casa, peregrino! Dorme ou está acordado?”, meio sonado, não sabendo se havia sonhado ou se alguém havia, realmente, me chamado atentei meus ouvidos:

- “Acordado, peregrino?”, agora com certeza de ter ouvido.

- “Sim, quem é?”, perguntei.

- “Sou o beato Gastão e trago a paz nas palavras do Senhor.”, respondeu.

Continuei deitado em minha barraca; estava cansado e não estava entendendo se o que ocorria era um sonho ou se havia alguém naquele fim de mundo, em plena escuridão e, além do mais, sob torrencial chuva.

- “Está vindo de Tambaú?”, perguntou.

Tambaú é o início do Caminho da Fé, rota dos peregrinos, que vai daquela cidade até Aparecida do Norte. No meu caso faço o Caminho da Fé em seu trecho mais belo do ponto de vista geográfico: inicio a caminhada em Águas da Prata e vou até Campos de Jordão; mas, aprendi nestas caminhadas, que quando argüido o melhor e mais cômodo é responder que faço o caminho tal como ele foi idealizado, ou seja, de Tambaú a Aparecida.

-“Sim, saí há uns dez dias de Tambaú e vou, com a graças de Deus, até Aparecida.”, respondi.

- “Devo minha fala a um milagre do Padre Donizete, de Tambaú, que Deus o tenha, Santo homem.”, falou o Beato, e complementou: “Você visitou a sala dos milagres?”

- “Não, não visitei. Bonita?”, disse preocupado em não encompridar a mentira e ser pego de calças curtas.

- “Sim: uma sala repleta de muletas, cabeças de cera, rosários, crucifixos, botas; muitos que alcançaram a graça de um milagre do Santo Padre Donizete, retornavam a Tambaú para colocar uma lembrança da graça alcançada; outros já deixavam lá as muletas até então necessárias para poder andar e que depois da graça recebida, sem mais utilidade prática, ficavam ali em uma demonstração de fé; meu pai mandou fazer uma cabeça de cera e voltou a Tambaú e a colocou lá na sala. Comigo foi assim: até os treze anos eu não falava, tinha a língua grossa, dura e presa; aconselhados por uma beata de minha região, fomos a Tambaú e graças a Nossa Senhora de Aparecida e ao Padre, minha língua desenrolou, e saí de lá falando, matracando, feliz. Enquanto eu exercia o dom da fala minha mãe chorava e rezava de felicidade. É muito bom poder falar”.

- “Sim, é uma dádiva: nos torna mais humanos.”

- “Gosto muito de falar, contar e cantar...está cansado para ouvir?”, perguntou.

- “Não, estou desperto. Pode falar, Beato...”

- “Gastão...Beato Gastão é o meu nome. Nasci pelos lados do vale do Jequitinhonha, norte de Minas, já perto da Bahia.Em casa era meu pai, minha mãe, Dona Terezinha, uma irmã mais velha, muito linda, depois tinha eu e um irmão caçula, o Odilom. O nome de meu pai era Chiquito. Nasci com muitos problemas e dificuldades: além da língua grossa e presa que me impedia de falar e cantar, até a graça alcançada em Tambaú, eu era torto, corpo curvado com os braços pendentes ao lado corpo: “parece um orangotango quando anda, este nosso filho”, dizia meu pai. “Que isso Chiquito, está ofendendo um filho de Deus, Cruz Credo.” Mas, realmente, pela minha sombra percebia que quando andava me assemelhava a um macaco. Também não conseguia segurar o mijo e vivia com as calças molhadas, fedendo.

Mas como te dizia antes, depois da graça recebida pude falar e cantar. Não poder cantar sempre foi um motivo de tristeza para mim enquanto tinha a língua enrolada e dura. Lembro bem de minha mãe cantando para mim enquanto me gestava em sua barriga e também não posso esquecer as tardes que, quando o rádio tinha pilha nova, ouvíamos a Ave Maria do Júlio Louzada: eu me encantava com a música que iniciava e terminava o programa, gostava mais até do que a reza propriamente dita. Mas até o milagre não podia falar e muito menos cantar, embora, internamente, eu cantasse e falasse.”

- “E você é Beato, desde quando? A partir do milagre que te deu voz?”, perguntei.

- “Não. Resolvi ser Beato desde o dia que pela primeira vez eu vi, quando rezávamos uma novena e molhávamos a cruz pedindo chuva, o Beato Jeremias, que foi ordenado Beato pelo milagroso e santo Beato de Ibiapina, fundador de uma ordem de beatos do sertão. Logo depois de me ouvir cantar na novena pedindo chuva, Beato Jeremias abriu sua Missão Abreviada Para Despertar os Descuidados, Converter os Pecadores e Sustentar o Fructo das Missões e, solenemente, passou a ler: “ninguém podia aprender esse cântico, a não ser aqueles cento e quarenta e quatro mil que foram resgatados da terra. Estes são os que não se contaminaram com mulheres, pois são virgens”Apocalipse, 14.3 . E assim que terminou a leitura Beato Jeremias disse: Gastão você é um eleito! E naquela tarde, depois de mais de seis meses de seca choveu tanto quanto chove aqui agora. Resolvi seguir Beato Jeremias em sua peregrinação santa: ajudava-o em seus mutirões para construir igrejas nas mais afastadas vilas e nas plantações de roças comunitárias onde a fome destruía vidas e espalhava doenças, matava crianças e velhos.”

Um clarão acompanhado de forte estrondear de trovão iluminou a barraca, cegando os olhos e encobrindo e calando a voz do Beato Bernardo.

Percebi que, quando o Beato voltou a falar, sua voz não era a mesma: demonstrava insegurança, medo. Como sempre tive um medo atávico por raios e trovões entendi, de início, o tom angustiante de voz, denunciando temor do Beato; refeito do susto não conseguia me dar conta do medo do Beato e perguntei:

- “A alma carrega os medos para o além?”

- “Sim, carrega.”, respondeu.

- “Só os temores e as dores? Também os amores?”, sem muito pensar, perguntei

- “Vamos parar um pouco esta nossa palestra. Estou assustado.”

A chuva continuava a cair torrencialmente e, felizmente, a velha Bivac resistia firme e forte, permanecendo seca, sem respingos em seu interior.

Dormi novamente.