domingo, 12 de dezembro de 2010

A pedra do VELHO DEITADO: outra história

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“Quero ser feliz

Nas ondas do mar

Quero esquecer tudo

Quero descansar.”

Manuel Bandeira, Antologia Poética.

Aprendi a gostar da pedra do Velho Deitado. Não me cansa ver a cabeça negra, com seu longo e afilado nariz, ser vagarosamente tragada pelas ondas para, horas depois emergir meio às brancas espumas: tornou-se um amigo que, silenciosamente, ameniza a solidão que a velhice sempre traz consigo.

Rodeando a pedra do Velho Deitado pequenas lagoas se formam: são negras em seu piso de pedras e verdes em suas águas límpidas. São nestas lagoas que muitos pescadores caçam não só pequenas iscas para seus anzóis, mas também, com artesanais e pontiagudos arpões, belas lulas e polvos feios com seus olhos enormes e tristes.

Entre os pescadores de perto da pedra do Velho Deitado destaca-se Barsanufo: um negro esbelto em seu corpo de mais de setenta anos, peito e cabeça totalmente cobertos de pichainhos brancos, como se aqui fosse Europa ou Estados Unidos e tivesse caído neve sobre o velho pescador. Mas isso é bobagem: onde já se viu nevar em praia tão quente para esbranquiçar a cabeça do Velho Deitado e a do Barsanufo? Quem cobriu de branco a cabeça do Barsanufo e de verde o peito do Velho Deitado foi o tempo, foi a idade chegando, chegando.

Mas, voltando ao assunto: Barsanufo é considerado, aqui pelos lados da pedra do Velho Deitado, o melhor e o mais sábio nas artes da pesca, o que conhece a melhor isca para cada tipo de peixe, o melhor horário para pesca de cada espécie, o momento certo da fisgada. Em dias em que a maré baixa é de manhãzinha, coloca-se de pé sobre o peito do Velho Deitado, e com as mãos sobre os olhos, para se proteger do sol, vigia as ondas, olha, reolha e descobre onde os peixes estão. E aí, só, com suas varas e seus anzóis vai à caça.

Gosta de pescar.

-"Peixe para levar para casa e comer é o budião branco o que mais gosta. Tem o budião azul, mas este só se pesca em águas profundas." Para Barsanufo, na beira praia, no raso do mar, melhor peixe para se pescar e comer é o budião.

Eu o conheci quando limpava um budião de quilo e meio que havia acabado de pescar. Ao seu redor, enquanto limpava o budião, fez-se uma rodinha: um cinquentão goiano que passeava na praia, um jovem moreno, todo queimado de sol, com os braços tatuados e eu. Barsanufo concentrado na operação de limpeza do budião não nos via, ou fingia não nos ver: com uma faca afiada raspava as escamas, cortava o peixe pela barriga e retirava suas vísceras.

O goiano teimava em comprar o peixe: queria, por que queria levá-lo para fritar em sua casa, alugada para suas férias beira-mar. A cada investida do goiano, Barsanufo respondia: “é para comer em casa, com a família.”; “você pesca outro e leva para casa, me vende este. Quanto quer?” insistia o goiano, “ é para o almoço, comer coma família.”, encerrou o assunto Barsanufo.

Quando o goiano, mal humorado, desistiu de comprar o budião, o rapaz queimado de sol e eu já pensávamos em seguir nossa caminhada pela praia, Barsanufo disse sério:

- “Tem gente que come assim. Já eu não. Dos que levo para comer em casa, tiro as baratas do saco das baratas.” E enquanto falava, com sua faca afiada, fez um pequeno furo logo acima do olho do budião, tirou a pele e encontrou uma pequena cavidade – o “saco das baratas” – da qual retirou, com a ponta da faca, pequenas baratinhas do tamanho de um grão de arroz, brancas, leitosas. Umas cinco ou seis: todas vivas, espertas, espremidas como sardinha na lata, no saco das baratas. Repetiu a operação acima do outro olho do budião e mais uma leva de pequenas baratas foram retiradas e jogadas em um pequeno pocinho, perto da cabeça do Velho Deitado. No pocinho as baratinhas nadavam, ágeis, rápidas, parece que felizes, meio a tanto espaço encontrado, apertadas e comprimidas que estavam até então no saco das baratas.

No mar as baratinhas e no ar certo mal estar; a rodinha se desfez: o goiano, sem nada dizer, saiu; o rapaz moreno, queimado de sol, disse: “e a gente acaba comendo barata e, sem nada saber, acha gostoso.”, e eu a olhar as baratinhas no pequeno poço: buscavam minúsculas locas e lá se enfiavam e sumiam, aparecendo vez ou outra expulsas pelos sirizinhos pretos, donos da loca.

Barsanufo, em um outro dia, me disse:

- “ Só os budiões têm o saco das baratas. Tem um tipo de corvina, rara aqui, que tem uma pedra acima dos olhos; dizem os mais velhos que a pedra da cabeça da corvina é um santo remédio para curar dente de crianças e para segurar filho na barriga de mulher que têm dificuldade de sustentar criança no bucho. Agora as baratinhas do saco das baratas do budião é o seguinte: o budião as come no mar e elas vão para o saco das baratas, onde se protegem.”

Eu, calado, ouvia Barsanufo, que continuou:

“ Os mais velhos contam a história do negro Rufino, ainda dos tempos da escravidão, que foi quem iniciou e a poucos ensinou o feitiço que sabia fazer com as baratinhas brancas do saco das baratas dos budiões.

Quer que te conto?

Quer?

Bem, já que quer, e tem tempo para escutar, foi assim:

Rufino era um preto baixo, avesso às lidas do trabalho, viciado em mulher. Gostava do amor e exercia fortes poderes sobre as mulheres que queria possuir e as mulheres, enfeitiçadas, não resistiam à sua magia. Era assim que fazia: ficava vigiando a mulher desejada, observando onde a mesma desaguava. Em antes, nos tempos de Rufino vivo, contam os mais velhos, as mulheres usavam desaguar na praia, deixando sobre a areia branca uma pocinha úmida de mijo. E Rufino fazia então seu trabalho: recolhia a areia úmida de urina, punha em uma latinha com água do mar e lá colocava as baratinhas dos budiões que pescava; as baratinhas se infiltravam, como minhocas, na areia do mijo e faziam a mágica: a mulher, dona do mijo, se apaixonava por Rufino.”

Interrompi Barsanufo:

-“ Sabe que coisa parecida acontecia nos sertões de Minas, só que com formiga cabeçuda, que eram presas em caixas de fósforo com terra úmida de mijo de mulher. Os mais velhos contam que funcionava: era tiro e queda.”

Barsanufo continuou:

- “Pois então, aqui nesta praia, viveu e se enamorou por muitas e muitas mulheres o negro Rufino. Trabalhar não gostava, namorar queria sempre e demais. Esparramou filhos pelo mundo: filhos com negras gordas e novas, filhos com negras magras e mais velhas, filhos com moças virgens até encontrá-lo e com mulheres casadas e, assim Rufino esparramava amor nas mulheres e ódio e vontade de vingança nos maridos traídos e nos pais que tiveram suas filhas descabaçadas e engravidadas por ele. Mas estes nada podiam fazer: Rufino, diziam, tinha acordo com o CAPETA, com o DEMO. Em troca de sua alma a COISA protegia seu corpo de facas, de balas, de punhais e até mesmo de pauladas; assim, Rufino não era, em qualquer luta, jamais ferido e vencido.

E vivia assim: para o amor. Só prejudicava as pessoas quando namorava e possuía mulher dos outros, ou fazia filhos em meninas novas, que tinham que depois de parir sustentá-los, pois amava os filhos mas não os criava. Conta-se que mesmo o xixi de Sinhazinhas brancas, como as baratinhas do saco das baratas do budião, foram, às escondidas, recolhidos e colocados em sua latinha com água do mar junto às mágicas baratinhas. E assim, graças aos encantos de Rufino, da filha mais velha do senhor do engenho nasceram dois meninos mulatos e da filha do administrador da casa da farinha nasceram Jonas e Ernestina, também mulatos. Correu, em seu tempo, o boato de que a repentina viagem para a Europa da filha do Governador foi por motivo de filho de Rufino na barriga e que na Europa, parece que na França, onde tirou o filho do bucho, refez o himem para poder voltar e casar virgem com Espósito, filho do Coronel Moreira Cezar.

Chegou hora em que Rufino adoeceu, picado pelo barbeiro.

Ficou com o coração grande, fraco. Rufino, mal podendo falar, dizia que seu coração tinha ficado grande, aumentado até encher o peito, dificultando a respiração e impedindo de ir à pesca do budião, era inchaço de amor, que não tinha doença ruim mas uma doença boa de se morrer.

E contam os mais velhos que todos - maridos traídos, pais de moças virgens por ele descabaçadas e mães de seus filhos, mulheres negras e gordas com seus seios grandes como um mamão, mulheres negras e magras com seios pequenos como uma doce e saborosa manga, mulheres brancas como as baratinhas do saco do budião, todas as mães de seus filhos – enfim todas as almas vivas desta praia e das de perto, compareceram e respeitosamente prestaram homenagem, cobrindo de flores e velas o corpo morto Rufino enrolado em branco lençol de algodão.

E foi aqui, nesta praia, em um silêncio em que se ouvia até o murmúrio das menores ondas roçando as pedras e a areia, que, atendendo ao seu último pedido, foi enterrado, junto às baratinhas do saco do budião.

Seu corpo virou esta pedra do Velho Deitado que é o negro Rufino”.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A pedra do VELHO DEITADO: uma história.

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“... Em 1896 hade rebanhos mil correr da praia para o certão; então o certão virará praia e a praia virará certão.” Dizeres proféticos escritos em grande número de pequenos cadernos encontrados em Canudos - "in" Euclides da Cunha, Os Sertões.

Impressiona a incrível semelhança da pedra negra, à beira da praia, com um homem deitado, em repouso; quanto mais se olha mais se vê o nariz pontiagudo, a boca, o tórax saliente, o umbigo e o braço estendido ao longo do corpo. Sua cabeça apóia-se em outra pedra, como em um travesseiro: dorme. As algas cobriram o peito de verde, trocando os pelos brancos da velhice pelo verde da eternidade.

Quando a maré-baixa chega a 0.1 fica todo mais visível, oferecendo uma visão perfeita, linda.

Me encantam as pedras negras da praia. Na infância via formas nas nuvens e lhes dava nomes: uma nuvenzinha era a vaca Surpresa, outra a égua Queimada, outras horas, mais de tarde, ao escurecer, via o Saci, a Mula Sem Cabeça e tinha medo.

Agora na velhice me fascinam as pedras da praia que em sua negritude, dureza e perenidade não mudam de forma como as nuvens, mas vestem-se e despem-se com a água salgada e rendada de espumas; a maré, ao subir, as encobrem lentamente, até desaparecerem e, também lentamente, com a baixa da maré, surgirem como que para se aquecer ao sol e tornarem-se referência e ponto de encontro dos namorados e amantes do mar.

A história da pedra do Velho Deitado é a que vou contar.

Quem a contou para mim foi Evilásio, que ouviu de seu pai, que ouviu de seu avô, de nome João Cocobobó:

- “Esta pedra é o meu avô.

Foi aqui que ele morreu, quietamente na água, protegido por uma baleia, que é esta outra pedra: é só prestar atenção para ver como ela cerca meu avô com seu corpo enorme, defendendo-o.

A história é verdadeira e dá para provar. Meu avô, que como já disse tinha por nome João do Cocobobó, seguiu seu pai para junto de Antônio Conselheiro, na vila de Canudos. Sua mãe havia morrido e ele se acostumado a viver, em um silêncio mudo, com o pai. Na vila de Canudos foi batizado por Antônio Beato que, em Canudos, como contou meu avô, era de tudo: sacristão, dizia a missa e tinha o privilégio de, junto com as beatas de azul, tomar refeições e orar junto com o Conselheiro.

Meu avô ganhou fama por tanto saber caçar: tatus, calangos, seriemas e peixes no Vaza-barris; também por isso ganhou clavinote e a confiança de Joaquim Tranca-pés para fazer trabalhos de vigilância e espiar as forças do mal que ameaçavam Canudos. Meu avô tinha, então, seus quatorze ou quinze anos: era muito pequeno, magro, quieto, sem nenhum pelo no rosto: parecia uma criança velha.

Com o cerco a Canudos, pelas tropas do mal, meu avô sabia dos perigos que corria e conhecia a morte: um seu amigo, também treinado para espiar, havia sido pego pelas forças do mal e ao ser assassinado com uma faca berrou: “Viva o Bom Jesus”; e posso afirmar, pois foi meu pai quem me disse, que este episódio está mais que provado, até escrito em livro que se lê nas escolas.

Quando o Conselheiro morreu quem a todos avisou foi Antônio Beato. Naquela noite meu avô foi destacado para ir até a estrada do Cambaio vigiar e contar o número de inimigos que chegavam e chegavam. O sino havia sido derrubado por balas de canhão e dias depois as torres da igreja forram ao chão.

Canudos foi invadida, destruída.

Meu avô, devido ao seu pequeno tamanho, apesar da idade de mocinho, ficou junto às mulheres, crianças e velhos. Seu pai tinha sido morto com um tiro no peito quando montava guarda em uma tocaia na estrada de Uauá.

Meu avô foi passado em revista, junto às mulheres e os velhos, mas nada foi encontrado: esperto e desconfiado, havia deixado sua garrucha, balas e uma peixeira escondidas em uma tocaia no alto da Favela.

Á noite meu avô fugiu. Conhecia a palmo toda a região. Durante uma semana, com as tropas do mal por perto, enfiou-se em uma caverna na serra do Cambaio e ali ficou dia e noite: de barulho se ouvia apenas seu respirar, às vezes o canto agudo das seriemas ou de um solitário trinca-ferro.

Aproveitou a chegada da lua quarto - crescente para começar sua viagem. Para onde? Ninguém sabia, nem Deus. Caminhava à noite: evitava assim, usando deste expediente, tanto as forças do mal que andavam pela região à caça de fugitivos de Canudos, como o sol ardente, que a tudo queimava. De comer? Bem, meu avô dizia que comia calangos, frutas de umbu e coquinhos de dendê. De beber? Água, quando achava, muitas vezes salobra, porque a sede é forte e não oferece escolha a quem a tem. Peregrinou sem rumo, guiado nos primeiros dez dias pelas estrelas e depois, quando se achou fora do perigo das tropas do mal, guiou-se pelo sol. Caminhou rumo ao Leste, sem saber o por que: puro instinto, “guiado por Deus”, disse meu avô a meu pai.

E viu, pela primeira vez, o mar. Encantou-se de imediato: maravilhou-se com sua grandeza, com suas cores que iam do verde claro ao azul escuro do céu, com as ondas que iam e vinham, batendo nas pedras incessantemente, sem se cansar, deixando, na areia, espumas que se assemelhavam às rendas de papel que as beatas faziam para enfeitar a igreja de Canudos em dias de prédicas do Conselheiro. Tudo lindo demais e, no ar, o cheiro o cheiro de sal que lembrava boas comidas e muita fartura!

Chegou à praia de tardezinha, viu tudo isso e buscou lugar para se esconder. Chegou a uma clareira ao meio de uma floresta de dendezeiros e, cansado, se ajeitou para dormir. Tirou da cintura a garrucha e dormiu com a peixeira atada, pelo cabo, com cipó, em uma das mãos, melhor dizendo, atada à sua mão esquerda: era canhoto. Acordou, com a lua ainda baixa, prenunciando início de noite, com barulhos e vozes na clareira. Nem abriu os olhos e se viu agarrado, preso por dois homens negros, altos, fortes: o maior pegou-o pelas costas, ergueu-o do chão; meu avô, suspenso no ar esperneava, gritava, dizia palavrões e pedia socorro a Deus, ao Antônio Beato e ao falecido Conselheiro. Berrou: “Me largue seu corno filho da puta, desgraçado do diabo” e a resposta veio logo: o negro forte, que o carregava pelas costas como se peso não tivesse, lhe deu um tapão no ouvido e ordenou que parasse de berrar como “um cabrito de merda”.

Ficou tonto e, ainda zonzo, foi atirado no centro da clareira da floresta de dendezeiros. Lá no centro da clareira se encontravam mais homens negros, reunidos em volta de uma mulher forte, gorda, toda de branco e de uma linda moça, também de branco. Flores e velas acesas enfeitavam uma colorida imagem. O negro forte que o carregara e lhe dera um tapão no ouvido disse ao grupo ali reunido, mas com o olhar na negra gorda:

- “Achamos este cabrito entocaiado na moita de dendê, mãe Onice”, sossegou por um pouco a fala e acrescentou: “só pode ser espía dos brancos.”.

- “Assente ele aí. Perigo nenhum: é uma pobre alminha perdida nos tempos, carece ter medo não.”, disse, com autoridade, a gorda Onice.

E, meu avô, acostumado às rezas e prédicas do Conselheiro e do Antônio Beato, na igreja dos Canudos, viu, sob o céu aberto, estrelado – sentindo-se protegido pela mãe Onice – uma nova liturgia, conduzida pela negra gorda, cujo corpo se agitava, e da garganta emitia estranhas palavras: “Tar tá ta ta... rrries, mozzz” enquanto virava e revirava os olhos. Mãe Onice perdia a serenidade bondosa da gorda face, trêmula, em transe: “ Se assentem todos... é chegada a hora... Zurrr... Ta trá to.. Rrrém, amém!”. E guiados por ela, rendiam, todos, graças a Oxossi, rei das matas, caçador imbatível.

Depois da cerimônia Mãe Onice levou meu avô com ela. Deu-lhe o que comer, para beber deu água limpa e clara e mostrou o paiol que tinha no fundo da casa, onde passou a dormir.

Desacostumado de família, de calor e carinho materno, meu avô era uma felicidade só; cedo se esqueceu de Canudos e de suas misérias.

Para não depender totalmente de mãe Onice ganhava sustento aprendendo ofício e ajudando na casa de farinha.

A barba teimava em não cobrir a cara e o corpo em fingir que era menino. Mas os pentelhos ralos foram surgindo, cobrindo a região do púbis e estranhos, indecifráveis e incontroláveis desejos anunciavam a meu avô sua mocidade. Mãe Onice, em um domingo, mandou matar uma galinha, limpou-a das penas em água fervente e depois com uma faca afiada cortou a borda superior do curranchinho, logo acima da cloaca da galinha, e deu ao meu avô: “Passe este sebo no bigode e na cara. Faz nascer e crescer barba para ficar com cara de homem.” Meu avô obedeceu. Como também comia carne de baleia, quando menos se viu, estava com o rosto pedindo navalha e o corpo crescendo a cada dia. Sonhava à noite que estava caindo do pé de coco e mãe Onice dizia: “ é porque você está crescendo; cada pulo deste na cama é um dedo a mais em seu tamanho”. Também sonhava com Dasdores, filha de seu Pitu, e acordava com a roupa suja e as pernas melando com grossa e malcheirosa baba.

Saiu da casa de farinha para trabalhar na queima do óleo de baleias: homem forte carregava os tachos quentes e respirava o mau cheiro da fábrica. E foi ajudando Zacarias no transporte do óleo da fábrica para as barcaças que se imaginou no mar caçando baleia. E assim se tornou ajudante de barco e depois mestre. Caçava baleias.

Casou com minha avó Rufina Dasdores.

Às tardezinhas, segurando a mão com minha vó e acompanhado dos filhos que chegavam, ia ver o mar.

Era diferente aquele mar que via ao entardecer - com as pessoas que amava - do mar que enfrentava durante o dia caçando baleias. Gostava mais deste mar, perto da areia branca, com peixinhos pequenos mordiscando o calcanhar das crianças que brincavam de nadar nos pocinhos, meio às pedras. De verdade, pensou meu avô, gostava de todo o mar: o que não gostava e o que o entristecia no mar de seu trabalho de mestre de barco baleeiro era a matança dos bichos: enjoou de ver o sangue das baleias mortas tingir de vermelho o azul da água do mar, enodoar as suas águas e suas carnes apodrecendo – fedidas – encher a praia de urubus famintos que pulavam e brigavam entre si e afugentavam os gaviões carcarás que vinham a busca de comida.

Certa feita, em alto mar, viu o que não podia: no horizonte uma enorme baleia mãe, que amamentava a filha; para lá teve, contrariado, que levar o barco e ver a baleia ser arpoada e ao receber na carne - no lombo, perto da cabeça - o enorme arpão, desesperada, chorar o canto triste de dor pela certeza da morte e da saudade que a morte lhe traria da filha.

Ajudou a descarnar a baleia, jogar os miúdos na praia: desta vez, sentiu enorme enjôo que o fez vomitar até as tripas chegarem à boca.

Triste recusou os pedidos da mulher e dos filhos para o rotineiro passeio à praia. Aquela tarde não queria companhia, precisava de solidão para se entender no mundo.

E foi só para a praia. No sagrado local em que ficava com a família a baleia filha chorava com seu canto desafinado e triste de saudades e de medo da solidão no gigante mar. E meu avô contou para meu pai: foi a primeira vez que chorou depois de homem feito.

Feriu propositadamente, com uma faca, o braço esquerdo, e foi, por isso, impedido de conduzir o leme do enorme barco baleeiro.

Mãe Onice faleceu.

Meu avô voltou a trabalhar na casa de farinha.

Seus filhos cresceram e nenhum foi autorizado a trabalhar com barco de caçar baleias. Dasdores morreu.

Me avô sabia, porque mãe Onice havia lhe contado dos perigos de se comer a delicada carne do baiacu. As peixadas de baiacu, muitas vezes, resultam na morte de todos os que saboreiam a nobre carne. “O perigo da morte é porque não tiram a pele, não limpam o peixe direito, mãe Onice?”, perguntou meu avô, enquanto ajudava mãe Onice preparar uma dúzia de baiacus que seriam servidos após uma cerimônia religiosa. “Nada disso: depende de quem faz. Se quem prepara pensa e quer a morte, o baiacu é um veneno só. Sua mãe Onice, não: gosta da vida e já preparou centenas de peixadas, todas elogiadas pelo seu sabor, e graças a Deus e a meu pai Xangô, em minhas peixadas de baiacu nunca houve morte, só vida, amor, meu filho.”, respondeu sorridente mãe Onice.

Meu avô se lembrou daquilo e resolveu.

Não foi trabalhar na casa de farinha e partiu com o barco pesqueiro de manhã: pescou cinco ou seis baiacus. Quis apenas um: os outros ofereceu à tripulação do pesqueiro, grato pela generosidade do passeio e da pesca. Recomendou que bebessem pinga na hora de preparar, que cantassem alegres músicas, pois assim, a carne do baiacu lhes traria felicidade, fartura na mesa e bons amores na cama..

Foi para seu canto preparar o baiacu; preparou a carne do baiacu no dendê e no leite de coco, como havia aprendido com mãe Onice; enquanto assistia a fervura da carne branca do peixe no dendê e no coco, pensava na morte.

Sozinho, à tarde, como sempre, vinha rezar aqui nesta praia. Era seu costume: já cansado e velho, sentava uma pedra a beira mar, rezava e esperava a maré subir até a água molhar seus pés.

Naquela tarde, enquanto tinha os pés salgados pela água do mar, enfeitados com pequenas espumas trazidas pelas ondas, meu avô comeu o baiacu que havia pescado e preparado.

Era uma tarde de março – época de marés bravias – e uma onda o levou.

Manhã seguinte, maré baixa, meio às pedras surge seu corpo que descansava deitado ao lado dos ossos da baleizinha.

O tempo passou e seu corpo virou esta pedra, que é meu avô.”