domingo, 21 de novembro de 2010

ÁGAPE OU A HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS: 1968, Nada Consta. Final: O DOPS.

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A reunião dos contadores de história estava se encerrando. Uma senhora de cabelos grisalhos, com um papelzinho na mão, acompanhou o contador da última história ao centro da arena e, antes dele iniciar sua história, tomou a palavra e disse:

- “Contadores de histórias: estamos nos finalmentes deste encontro. O nosso adeus - ou até breve – fica por conta do que vou ler, copiado do livro “Viver para contar” de Gabriel Garcia Marques: “A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.”

E a que seria a última história do encontro teve seu início:

“No bilhete, junto com o dinheiro da compra do quadro, escrito com letras de quem fez curso de caligrafia, elegantemente tombadas à direita, vinha o endereço: Edifício Copan, Rua...

E lá fui eu.

Não sei se já ocorreu com algum de vocês o que aconteceu comigo. Pois então: do estacionamento, onde deixei o carro e meus quadros, até o Copan, para onde, esperançoso me dirigi, tem por volta de um quilômetro, pouco menos, pouco mais e eu, posso garantir, nada vi, nada ouvi, nada senti em todo o percurso. Quando dei por mim estava tocando a campainha do apartamento 1360. Ocorrência inédita e explico o porquê: tenho o hábito, atávico, de frente a qualquer percurso me por a pensar, a refletir e a calcular, em uma tola tentativa de prever o que poderá ocorrer aos finais destes pequenos destinos. E sempre foi assim. Me lembro - e não lembro-me, como teima em corrigir este desobediente micro - que quando ainda no Ginásio, onde, por causa de meu diminuto tamanho, sentava na primeira fileira, o que significa que de minha carteira até a mesa da professora era coisa de uns três ou quatro passos, e, mesmo assim, ao ser sorteado para a chamada oral, o percurso naquele ínfimo espaço que separava minha carteira da mesa da professora se alongava a ponto de se a chamada fosse de latim eu recordar a primeira declinação: nominativo -a, genitivo - ae, dativo - ae, acusativo -an, vocativo - a e ablativo - a; ou mesmo os difíceis: hic, haec, hoc; já quando a chamada oral era feita pela lindíssima professora de Geografia, esquecia sua beleza morena e tinha tempo para relembrar, naquele pequeno percurso, os afluentes do lado esquerdo do rio Amazonas.

Mas, para não encompridar demais esta história: cheguei sem saber como, sem nada pensar ao apartamento do pai de Hamilton, amigo do Pedro Paulo; lembro ainda hoje do apartamento: grande, ventilado, limpo, mobiliado com móveis claros e com as coisas em seus devidos lugares; nas paredes belos quadros pintados a óleo e suaves marinhas de aquarela.

Estava ansioso e tenso.

Optei, educadamente, por um guaraná ao invés da cerveja oferecida; não queria beber: precisava da consciência clara, arguta, e tinha claro que um copo de cerveja sempre me levava a outro, e a outro e a outro até a língua crescer dentro da boca, aumentando a dificuldade de falar e entender com clareza, e a liberação, ao extremo, da libido.

- “Quando posso ver Pedro?”, perguntei de imediato.

- “Penso que esta semana, mas antes, por favor, tenha paciência: temos muito o que conversar. Meu nome é Danilo e posso saber o seu? Havia entendido pelo Hamilton e pelo Pedro que seu nome era Romeu, mas não bate com a assinatura do quadro. Qual é o seu nome?”, perguntou o Sr. Danilo.

- “Me chamo Romeu mesmo, nos quadros assino meu sobrenome: Rios.”, respondi com má vontade.

E o Sr. Danilo, calmo e simpático, colocou seu copo de cerveja sobre uma pequena mesa e enquanto bebericava:

- “Desculpe-me, é que são tantos os nomes e cognomes dos amigos de meu filho que às vezes me perco. Mas Romeu é o seguinte: Pedro Paulo é contra sua visita ao DOPS e vou tentar explicar seus motivos: ele teme, e tem lá suas razões, que sua visita seja interpretada pela polícia política com sua adesão à causa que o levou à prisão e, ainda, segundo ele, causa à qual você se mostra indiferente; assim, segundo seu raciocínio você poderá, ao visitá-lo, se comprometer, sofrer perseguição, ser preso, torturado, o que, para ele não seria ainda mais injusto do que o fato porá si só injusto. Por outro lado caso a visita seja encarada pelo pessoal do DOPS como afetiva, caso você insista, o preconceito quanto à relação afetiva ente dois homens poderá deixar Pedro Paulo em uma situação pior da qual já se encontra: à atual tortura física será acrescida a tortura moral e é por que Pedro acha que você não deve ir visitá-lo. Está me entendendo?”, perguntou Sr. Danilo ao ver minha expressão de incredulidade.

- “Quando posso ir visitá-lo?”, perguntei.

Na quarta-feira seguinte, por volta do meio dia, me encontrei com o Sr. Danilo na Rodoviária. Ele se vestia de modo informal e elegante; eu mudei radicalmente minha maneira de vestir: deixei no armário minhas roupas extravagantemente coloridas que foram trocadas por calças jeans velha e surrada, camiseta branca da Hering e sandálias da Bierkestoken; enfim, nada a ver comigo aquelas roupas que, penso, me deixavam tristes, um pouco amargo.

- “Nada de toques e emoções!”, repetiu, em voz baixa, com as palavras sibiladas entre os dentes, o Sr.Danilo quando adentramos ao DOPS.

Pedro Paulo estava magro, branquíssimo, barba mal aparada, e na face uma expressão de dor profunda; ao meu abraço respondeu, sem conseguir se conter, com um forte gemido de dor: tinha suas costelas quebradas. Seus lábios estavam inchados, havia escoriações em sua face e dois dentes haviam sido quebrados pelas mãos fortes e pelo soco inglês de um dos inquisidores. Eu havia levado uma boa quantia de sementes de abóbora torradas, pois sabia que o trabalho de retirar suas sementes com os dentes era calmante, fazia o tempo passar, o pensamento voar, fazendo bem a quem estava preso. Me senti culpado por não ter previsto a impossibilidade do meu tão querido Pedro Paulo não poder usar desta terapia: sua boca estava ferida, maltratada.

Mesmo assim nosso encontro foi comovente: estava vivo e, como sempre, esperançoso; contou-me que se sentia fortalecido em relação ao que acreditava ser sua missão, que o medo havia passado e que havia aprendido a suportar, com dignidade, as torturas. “Você se lembra que vimos “O caso dos Irmãos Naves,” no Belas Artes? Meio parecido.” disse tentando me confortar, creio.

Apertei suavemente sua mão na despedida e prometi voltar tão logo fosse possível.

- “Visita encerrada.”, assim aos berros, fomos convidados, o Sr. Danilo e eu, a nos retirar. Saímos juntos.

Sr. Danilo, bondoso, convidou-me para um guaraná no bar da Rodoviária; e lá, antes do guaraná oferecido fui ao banheiro público chorar: e chorei, chorei e chorei, e aquele choro convulsivo, sentado em uma privada de banheiro público, escondido não sei de quem, e, talvez, de mim, colocou minha alma para fora. Me senti vazio, inútil e com uma única certeza: viver não valia a pena.

Sr. Danilo me esperava no bar. Já havia pedido sua cerveja e no balcão um guaraná me esperava. Tomei todo o guaraná em um gole, pedi uma cerveja, depois outra, depois outra, e outra até sentir que a língua enchia minha boca, com as salivas grossas e amargas impedindo-me de falar fluente e corretamente. E, assim, bêbado, apoiado pelo Sr. Danilo, tomei um táxi e fui para casa e lá, livre, continuei a chorar e a chorar e a achar, mesmo, que viver não valia a pena.

Minha habilidade em desenhar com as duas mãos ao mesmo tempo, esquerda e direita, era motivo de admiração mesmo entre os talentosos alunos da Escola de Belas Artes. Explicando melhor: eu podia, ao desenhar um rosto, por exemplo, iniciar pelo pescoço e enquanto a mão esquerda traçava o lado esquerdo do rosto a mão direita, simultaneamente, desenhava o lado direito; e assim, fazia o mesmo com os olhos, nariz... Fazia sucesso com esta brincadeira que era feita tanto na lousa, com giz, como também usando os antigos e hoje em desuso pincéis atômicos, com os quais, nas grandes folhas coladas nos cavaletes do álbum seriado, desenhava rosto dos professores, caricaturas de políticos, de colegas, de jogadores de futebol.

Sabia também que a mais fácil maneira de falsificar uma assinatura era iniciar sua cópia pelo fim. Resumindo: unindo meu talento em desenhar com ambas as mãos e falsificar à confiança que Pedro Paulo e seus companheiros depositaram em mim, passei a ocupar parte do meu tempo em um trabalho de falsificação de passaportes, carteiras de identidade e outros documentos para militantes políticos. Embora, principalmente no início, Pedro Paulo, por motivos ideológicos, fosse contrário a minha participação neste trabalho, reconheço hoje, que graças a este meu talento ajudei muitos de seus amigos, e, também de desconhecidos, ligados ao grupo, que precisavam de documentos especiais para sair do país, ou para, mesmo aqui no Brasil, viver na clandestinidade.

Para realizar estes trabalhos eu era sempre apoiado por Francano: um jovem “arte finalista” extremamente habilidoso. Francano usava muletas, tinha a perna esquerda infinitamente menor que a direita, fumava de dois a três maços de Continental por dia, usava uma barba rala e bigodes ainda mais ralos; ele mesmo dizia que tinha um time de futebol de cada lado - referindo-se aos “vinte e dois” fios de bigodes que teimavam em deixar a desnudo a parte superior de sua boca suave, sempre pronta ao sorriso franco, mostrando dentes claros, perfeitos. Francano, que falava o tempo todo, me introduziu no vocabulário do grupo ao qual pertencia e admirava; suas conversas me faziam lembrar as reuniões de Pedro Paulo e seus amigos em nosso apartamento: eram conversas recheadas de “campesinato, burguesia nacional, guerrilha urbana, reeducação, luta armada, lumpemproletariado...”. Tornei-me seu amigo.

Em um sábado chegou um novo passaporte sobre o qual eu deveria trabalhar. Meu trabalho consistia, entre outras coisas, em falsificar as assinaturas das autoridades e “copiar” a assinatura de quem seria beneficiado pelo novo documento. Em minha última visita ao DOPS percebi que Pedro Paulo estava barbeado e com os seus longos cabelos cortados. Estranhei e ele, percebendo, me disse: “logo me verá assim”; não entendi, mas em ambiente tão impróprio para perguntas achei por bem dar o não entendido por entendido. Agora estava claro: o passaporte a ser produzido em nome de Sérgio Manreza seria para Pedro Paulo utilizar; ele estava ali, na foto, sem barba, cabelos cortados rente; também reconheci sua letra na assinatura que deveria usar e eu deveria falsificar. Dedução: provavelmente Pedro estaria para ser libertado e quando isto ocorresse iria para outro país ou viver na clandestinidade com outro nome. O fato de estar falsificando o passaporte, e não a carteira de identidade, indicava fuga para outro país.

Fiquei comovido: falsificar o passaporte da pessoa querida foi um ato de extrema gentileza da direção do grupo, que desconsiderou as severas e minuciosas normas de segurança, sempre sugeridas e, por todos, obedientemente acatadas; para mim, tal ato, foi de uma generosidade e solidariedade ímpar, demonstrada por pessoas que corriam permanente risco de vida em função do que acreditavam, mas que, em atos como este, apontavam a riqueza humana e os valores que regiam suas vidas e, principalmente, uma prova de extrema confiança a um alheio às suas causas. A falsificação do passaporte de Pedro, significou no momento e significa até hoje coerência com valores universais e até hoje me comove e ao qual me sinto grato.

Fui instruído, pelo Sr. Danilo, a solicitar visita ao DOPS apenas quando ele voltasse a me falar. Dois meses se passaram sem visitas a Pedro Paulo.

Em uma manhã de domingo, recebi, na feira da Praça da República, a visita do Sr. Danilo. Discretamente olhou meus quadros, apontou um e disse: “Quero este. Pode embrulhá-lo para mim?”. Não tive dúvidas: iniciei, rapidamente, o trabalho de acondicionamento do quadro enquanto o Sr. Danilo retirava do bolso um pacotinho de notas presas por um “clipes”. Não aceitou a oferta de gratuidade: “Posso pagar e, ademais, junto ao dinheiro você terá boas surpresas, penso que até melhores que o dinheiro”, disse enquanto saia. Não houve, desta vez, recomendação para que eu aguardasse tempo algum para “contar” o dinheiro. Peguei o bolinho de notas e junto a elas, preso pelo clipes, o envelope que eu havia perdido no banheiro do cinema da Rua Aurora um com um endereço anotado no verso.

Havia combinado de almoçar com o Francano e soube por ele que Pedro Paulo e seu amigo Hamilton haviam sido libertados, graças, principalmente, aos esforços desenvolvidos pelo arcebispo de São Paulo e que, fugitivos, estavam na Argélia.

Entendi, então, o estranho endereço escrito com a elegante letra do Sr. Danilo. Era o endereço de Pedro Paulo na Argélia.

Nunca, até então, havia feito uma viagem internacional e meu projeto, quando pensava nessa possibilidade, era sempre a Holanda. Sonhava, quando pensava ou falava no assunto, em conhecer a Holanda, suas tulipas, seus moinhos e sua Amsterdã tão liberal. Nestes devaneios sempre comprava passagens, de primeira classe, pela Air France, na viagem comeria salmão e beberia champagne.

Em novembro, em uma quinta feira depois do feriado de quinze de novembro, entreguei o último painel para a companhia de aviação. Logo na segunda feira seguinte deixei meu carro no mesmo estacionamento que o deixo para expor meus quadros na feira da República e de lá fui até o Copan. Revi o prédio e tomei um café no Floresta. De lá fui até a loja da Air France, na São Luiz, de onde saí com minha primeira passagem internacional: São Paulo/Paris/Argel: classe econômica.”