terça-feira, 10 de agosto de 2010

ÁGAPE OU A HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS: 1968, nada consta. Primeira parte: O cine Aurora

Nem bem a mulher terminou a história de Angelina, veio ao palco um homem claro, cabelos crespos compridos, já grisalhos. Tinha lá seus um metro e setenta , ou um pouco menos, ficando mais para gordo do que para magro, vestido com roupas compradas, que até destoavam um pouco da simplicidade dos outros contadores: com isso tinha mais aquela cara e jeito de quem nasceu e se acostumou em cidade grande, pouco sol no rosto, conhecedor de livros, de cinemas...

Quieto em sua timidez pediu licença para contar sua história:

“Parece mentira: quase cinqüenta anos já se foram!

Foi por volta de 1964 que saí do interior para ganhar a vida aqui na capital. O grande sonho, que era viver de meus desenhos, ainda não se concretizava e a vida era, até então, sustentada por um emprego de Auxiliar de Departamento Pessoal em uma empresa “para-estatal”, no dizer do companheiro de tantos anos, o tão querido Pedro Paulo.

O trabalho no escritório fechado, datilografando fichas de admissão, era entediante e, desta forma, a ordem para que fosse eu o encarregado de ir ao DOPS buscar informações de candidatos a emprego foi, por incrível que possa parecer, recebida com radiante entusiasmo. Quando terminava o serviço no DOPS - ou mesmo antes de lá chegar - passava por um cinema da Rua Aurora, destes que funcionam das nove da manhã à meia noite, onde assistia filmes pornográficos, me masturbava ou encontrava parceiros para pequenas orgias sexuais.

O trabalho no DOPS era simples: entregava, em um guichê próprio, a ficha com o nome do candidato a emprego e, depois, era só aguardar: quando a mesma era borrada com um carimbo ”nada consta” o processo seletivo continuava; quando não era o carimbo “nada consta” a espera era sempre mais longa, mais demorada, e o espaço reservado da ficha era preenchido com uma Remington velha: “integrante do mr8, detido quando participava da greve dos ...” ou outros que tais; quando isso ocorria o processo seletivo era imediatamente encerrado para o candidato a emprego em nossa empresa e, como mais tarde Pedro Paulo me contou, em todas as outras empresas “para-estatais”.

Naquela tarde de setembro, na ficha de candidato a emprego que levava ao DOPS constava o nome de Pedro Paulo Damascena. Passei frente ao cine Aurora, pensei em entrar, mas o movimento estava fraco; resolvi primeiro ir ao DOPS cumprir minha obrigação: “primeiro a obrigação, depois a devoção” diria meu pai, a quem àquela hora, achei por bem obedecer.

Saí do DOPS com o envelope no bolso e fui direto para o cinema; a demora na devolução denunciava alguma coisa além do simples “nada consta”.

O curso de Belas Artes, que até então não me ajudava em nada para ganhar a vida, tinha suas utilidades: desenvolvi uma incrível competência em desenvolver colagens, manipulando fotografias ou gravuras, assim como abrir envelopes e os fechar sem deixar suspeita, e, com isso, alimentar perversas curiosidades.

E foi assim, naquela tarde de setembro, no banheiro do cine Aurora, que cuidadosamente abri o envelope para ler o “verdictum” com o qual o DOPS havia presenteado o Pedro Paulo. Nenhuma surpresa. Como havia previsto, baseado na demora da devolução, a velha Remington havia funcionado: “tem amigos e mantém contato com agentes comprometidos com a guerrilha urbana, foi presidente de Centro Acadêmico que liderou atividades de esquerda na Universidade e participa, regularmente, de reuniões do PC; há fortes suspeitas de liderar o grupo responsável pela impressão e distribuição de folhetos subversivos para sindicatos do ABC.”

Pensei na hora: “Pedro Paulo, se depender deste emprego, está ferrado”; o que era uma pena para moço tão bonito: alto, loiro, cabelos encaracolados, sorriso fácil e sensual escondido no meio do bigode e das barbas ruivas, dentes brancos e um enorme jeitão de bom rapaz.

Pena mesmo: “bem que poderia vir para o departamento de pessoal, trabalhar em treinamento, muito lindo” e assim pensando saí do banheiro para os escurinhos do cinema à procura de alguém disponível. Em um cinema com tanta gente “entendida” era fácil: todos atrás de sexo, quando na verdade, talvez, estivéssemos à procura de afeto.

Mas... Mãos à obra: todas estas teorias e falações bonitas eu aprendi depois com o Pedro Paulo; naquele dia e naquela hora o que eu queria era achar e agarrar um homem, o que não foi difícil. E, em um banheiro sujo e escuro do Aurora, mais uma sessão de sexo aconteceu.

Com dor na consciência pelo pecado cometido, saí do cinema decidido a me confessar no próximo domingo, antes da missa das nove. A atividade sexual em local tão impróprio do ponto de vista da comodidade, me deixava, sempre, extenuado. Entrei em um bar para um guaraná refrescante; ao gelo do guaraná que, gostosamente, refrescava minha garganta um outro se esparramou por todo o corpo: o envelope que levara ao DOPS não estava em meu bolso.

Deixei o restante do guaraná no copo, corri de volta ao cinema, comprei ingresso e fui ao banheiro que havia freqüentado há pouco: nada! Suava frio e me pus a rezar quando fui abordado por um senhor já idoso que me ofereceu dinheiro para um programa, mas percebendo meu estado, desistiu. Procurei pelo lanterninha e com sua ajuda buscamos o envelope entre as fileiras de assentos, no banheiro, nos corredores e não encontramos.

- “Talvez de madrugada na hora da faxina, o Senhor Alfredo encontre seu envelope. Pode deixar que eu falo com ele.”, disse, prestativamente o lanterninha.

Implorei:

- “Se ele encontrar, peça, por favor, para não abrir, é sigiloso; dou uma boa gorjeta se me devolverem”.

Saí do cinema sob o olhar lascivo do idoso senhor!

Agora era só rezar... Fui para a Igreja da Sé e, antecipando a necessidade de confissão, contei os pecados cometidos, mas omiti a história do envelope – afinal aquilo não era pecado - e obtive o perdão; com a alma mais leve fui para casa, um quartinho de pensão no Bexiga, e, para desanuviar ainda mais a alma me pus a pintar.

Dia seguinte cheguei cedo ao trabalho. Retirei, furtivamente, da pasta de um empregado, ex-padre, seu atestado com um “Nada Consta”, pedi autorização ao chefe para realizar serviços externos e saí à busca de uma empresa de serviços de cópias, onde pedi quatro fotocópias do documento.

De lá, com um fiozinho de esperança, corri até o Cine Aurora. E sobre aquele derradeiro fio de esperança, o bilheteiro jogou um balde de água fria: o envelope não havia sido encontrado. O senhor idoso estava por lá, procurou prosa, mas eu, movido pela frustração de não ter encontrado o envelope e pela ansiedade das providências a serem tomadas, fui grosseiro:

- “Quem gosta de velho é reumatismo”.

Ofendido o velho senhor respondeu com um olhar, antes tão lascivo, de pena e comiseração.

Saí rápido do Aurora.

No escritório, graças à minha habilidade e aos conhecimentos adquiridos na Escola de Belas Artes, a ficha de Pedro Paulo ganhou um “nada consta” e dois dias depois, numa quinta feira, fui o encarregado de entregar a ele a lista de documentos que teria que providenciar para seu registro como empregado na empresa em que trabalhava.

No domingo, na Praça da República - onde expunha meus quadros na “feira hippy”, recebi a visita de Pedro Paulo. Ele estava com um bando de amigos, todos barbudos, que, com ares compenetrados viram e, pelos comentários, gostaram de meus quadros: “pinturas com alto senso estético, embora pequem pelo total estado de alienação e descomprometimento para com a realidade”.

E eu ouvindo e pensando: será que vão comprar? Na verdade, sendo franco, não conseguia tirar o olho de Pedro Paulo, mas ele e sua turma, indiferentes, foram embora sem nada comprar e sem Pedro Paulo dar, ao menos, um sorriso, por menor que fosse. Só um rápido:

- “Tchau! Amanhã a gente se vê”.

- “Bofe”, pensei, mas não disse.

E foi só isso que de ruim aconteceu naquele domingo; logo depois vendi três quadros e concluí que só podia ser o Pedro Paulo que me dava sorte: ”três quadros vendidos em um só dia. Demais da conta de bom. Vou continuar pintando sem o tal comprometimento para com a realidade: bando de bofes! Uau!!!”, disse em voz baixa.

Saí da feira, guardei os quadros não vendidos no carro, almocei macarrão com frango e tomei dois guaranás. Estava radiante!

Semana seguinte Pedro Paulo foi admitido na empresa e começamos a nos encontrar na hora do almoço. Após dois meses de convivência resolvemos morar juntos.

Outro fato surpreendente ocorreu: eu havia sido o vencedor do concurso de uma empresa de aviação para desenvolver painéis que seriam usados para decorar suas lojas espalhadas em quase todas as capitais do país; isso exigiria, no mínimo, um ano de trabalho e mais dinheiro que receberia por uns cinco anos na empresa em que datilografava fichas de admissão: deixei o emprego; a isso devo acrescentar que meus quadros, expostos aos domingos na Feira da Praça da República, estavam vendendo razoavemente bem.

Mudamos para um apartamento maior, na São Luís.

E era lá que, durante o dia, enquanto Pedro Paulo trabalhava, eu pintava meus quadros e desenvolvia os painéis para a empresa de aviação. À noite saíamos, e quando não íamos ao cinema, Pedro Paulo recebia seus amigos barbudos: todos sabiam de nossa relação e a única exigência, imposta por Pedro Paulo, era que evitássemos a troca de carinhos na presença do grupo. Mas era em nosso apartamento que, sempre à noite, aquele grupo de barbudos se reunia, falavam muito, discutiam, liam e redigiam; eu pouco entendia e, de verdade, pouco me interessava por tão inflamadas discussões; o que e discutiam era, para mim, um mundo distante, incompreensível e eu aguardava, ansioso, o final das reuniões para, a sós, demonstrar meu afeto e perceber o amor que nos unia.

E a vida ia passando...

E foi assim, com a vinda passando e passando sem a gente perceber, ou dar fé o quanto ela passava, que, em uma semana qualquer de abril, Pedro Paulo teve que fazer uma viagem a trabalho; aproveitei para visitar duas lojas da empresa de aviação, no norte do país, onde o projeto estava se iniciando. Foi Pedro quem me levou ao aeroporto para, de lá, iniciar sua viagem pelo interior do Estado.

Voltei no sábado, como havia planejado, e estranhei não tê-lo encontrado no aeroporto à minha espera. Um frio enorme percorreu meu corpo: uma dor profunda e uma angústia indescritível se apoderou de mim. Tomei um táxi e fui para o apartamento que encontrei vazio.

Pedro Paulo sempre me recomendava que, por segurança, caso ele desaparecesse eu deveria silenciar-me por completo e não procurar por ele. Eu achava aquelas recomendações absurdas, incompreensíveis e sempre o questionava porque cargas d´água ele haveria de sumir? Que coisa mais absurda alguém desaparecer! Me alterava, elevava o tom de voz, prenunciando o fim da discussão, e, um pouco birrento, reconheço agora, dizia que se o motivo do desaparecimento fosse eu que achava mais adequado e correto ele me dizer, que não entendia e muito menos queria entender esta história de desaparecimento, e ponto final...

E agora não tinha a menor idéia do que fazer.

Mais de um mês se passou.

O desaparecimento de alguém que queremos bem é pior, muito pior, que sua morte na medida em que o desaparecimento não contempla a concretude definitiva da morte, que, de alguma forma, conforta. A indefinição do desaparecimento nos deixa como em uma montanha russa: alternam-se repentinamente os baixos momentos de profunda desesperança, com os picos da certeza do encontro próximo...

Em um domingo, na Feira da Praça da República, onde expunha meus quadros, recebi a visita do velho senhor do Cine Aurora. Pela maneira como iniciou a conversa devo ter demonstrado surpresa e estranhamento:

- “Por favor, fique tranqüilo. O que preciso lhe falar é sério e não tem nada a ver com o Cine Aurora. O que vou lhe dizer é bom e é também ruim e, por isso, peço que evite demonstrar seus sentimentos. Procure agir como seu eu estivesse interessado na compra de um quadro e que você quer vendê-lo. Se concentre nisso, por favor. Posso falar, está preparado?”, disse com a voz tranqüila, embora firme e severa, o velho senhor.

Olhei para a respeitável figura: tinha a doce expressão dos avós, estava elegantemente vestido em suas calças jeans, camisa pólo e com seus cabelos brancos bem penteados.

- “Claro, diga. O que o senhor tem a me dizer?”.

- “Conheço o seu Pedro Paulo, que é muito amigo de meu filho. Estão, ambos, presos no DOPS, acusados de subversão. Eu os visitei e estão bem, se se pode de dizer isso: estão vivos, o que já é uma graça.”, disse emocionado.

Tive certeza que aquele elegante senhor não mentia e procurei controlar minhas emoções:

- “Quero vê-lo, preciso visitá-lo. Como fazer? Faço o que o senhor me ordenar, mas preciso vê-lo hoje. Faça-me o favor!”.

Fui educadamente interrompido:

- “A gente almoça juntos e vamos ver o que se pode fazer. Agora faça de conta que estou comprando um de seus quadros. Venda-o pelo preço que vou te oferecer; meu endereço está junto com o dinheiro que vou te pagar; espero por você às treze horas.”, e, imediatamente apontou para uma de minhas telas favoritas perguntando pelo seu valor.

- “São dois mil reais. É uma tela...” fui, mais uma vez, delicadamente interrompido:

- ”Dou por ela mil e quinhentos reais em dinheiro, aceita?”, disse ao mesmo tempo em que tirava da carteira um pacote de dinheiro, com as notas presas por um clipe. “Não há necessidade de conferir o dinheiro. Está certo. Pode me embrulhar a tela? Tenho que ir, tenho fome.”

Peguei o pacote de notas, coloquei no bolso, embrulhei a tela e ao entregá-la ouvi:

- “Não tenha pressa em saber o endereço.Temos tempo porque moro perto: daqui até minha casa é um pulinho. Até mais.”

O pacote de notas, colocado no bolso, queimava minha perna, me incomodava, ardia. Mesmo assim, obedecendo ao pai do Hamiltom, aguardei um pouco, controlando a insuportável ansiedade de, finalmente, encontrar alguma coisa de concreto a respeito do tão querido Pedro Paulo. Por volta das onze e meia, não conseguindo mais suportar tanta ansiedade, embrulhei os quadros restantes e fui ao estacionamento onde os acomodei na porta malas da velha DKV.

E só então, sentei-me no banco dianteiro da perua, e tirei do bolso o pacote de dinheiro. Junto do monte de notas presas por um clipes, havia um papel com o endereço e uma foto de Pedro Paulo junto com seu amigo Hamilton. E eu emocionado, fiquei ali, absorto, chorando descontroladamente, confuso, sem saber realmente se chorava de felicidade ou de tristeza! Chorei muito, chorei em silêncio, um choro só meu, com soluços compridos que enchiam todo o corpo e lágrimas quentes que inundavam meu peito !