sexta-feira, 12 de março de 2010

ÁGAPE OU A HISTÓRIA DAS HISTÓRIAS



E assim, logo que o sol se despontou atrás do morro do Chapéu, todos foram chegando: de mansinho, quietos mas curiosos, olhos acesos e ouvidos atentos, mergulhados para dentro de si como que preparando a mente e os sentidos para ouvir histórias e mais histórias.
Muitos eram velhos e a idade era sinalizada pelas barbas brancas nos homens e pelos cabelos grisalhos nas mulheres, algumas com cabelos longos, trançados, adornando a cabeça como uma coroa, coisa de muito antigamente, que não se usa mais; mas chegavam também jovens rapazes e moças: lindos em sua juventude, em seus dentes brancos à mostra em permanentes sorrisos, na força de seus corpos ágeis.
Alguns, principalmente os mais jovens, traziam pesadas mochilas às costas enquanto outros puxavam, pelas alças, pequenas malas com rodinhas, que lembravam pequenos carrinhos com os quais haviam, certamente, brincado na infância.
Eram todos contadores de história!
Foram chegando e, cada um ao seu jeito, se acomodando. A arena ao ar livre, sob o céu azul, agora repleto de estrelas e com a lua cheia, gordona, tão enorme em sua claridade que era possível ver os rostos, os corpos e mesmo as mãos daquela horda de sonhadores.
Sim, sonhadores, pois não sei se você sabe, mas contar histórias, é, de certa forma, indignar-se com a realidade: é criar uma memória não de fatos - estes muito pouco importantes – mas, antes, gestar uma memória de fantasias, de sonhos, daquilo que o contador confia ser o melhor que deveria ter acontecido.
Resumindo, amigo leitor, no final das contas, ou melhor, no frigir dos ovos, o contador de histórias é um crédulo de que a memória do mundo pode ser corrigida, alterada, moldada sempre que a realidade não se mostra compatível com seus sonhos. Pois então, ali, naquele mundão sem fim, silêncio absoluto, todos, por dever e prática de ofício, sabiam que no momento de contar uma história, ocorre com seu contador uma metamorfose que o liberta da crua realidade e suas limitações que empobrecem as possibilidades de esculpir o mundo.
As regras eram poucas, muito poucas. Cada um contava a história que queria e todos ouviriam silenciosa e respeitosamente, pois a história contada era também sua história.
A ágape dos contadores deveria funcionar ininterruptamente, enquanto houvesse história a ser contada: uma espécie de palimpsesto oral onde cada história apagava a outra em um movimento contínuo, infinito.
O primeiro a contar uma história foi um velho homem, com seus setenta e tantos anos: magérrimo, bastante calvo, barba feita, boca pequena, olhos oblongos negros - lúcidos em seu brilho –, mãos longas - próprias para pianista -; apresentava, enquanto narrava, movimentos largos e ágeis e, ao que parece, incontroláveis à racionalidade de sua mente, mas obedientes, sim, ao anseios de suas histórias.
Disse que, se tivesse título, gostaria que sua história fosse chamada de MISTO.
Sua história:
“Amigos: eu nasci no interior do meu Ceará tão querido, ao meio da caatinga, sob o calor forte do perene sol e pouquíssimas suavizantes sombras.
Meu pai tinha por lá uma fazenda onde vivíamos: ele - Seu Francisco-, meu pai, Dona Zulmira, minha mãe, eu, Gilberto e mais três irmãos: Paulo, André e Júlio. Minha mãe, um verdadeiro poço de carinho, dizia não entender direito porque logo eu, que de todos os seus filhos era o que mais gostava de falar, era gago. Mas mesmo gago, desde cedo, gostava muito mesmo de falar, de contar.
Chegou então uma hora que me mandaram para capital estudar. Naqueles tempos havia, pelos lados onde eu nasci, um meio de transporte muito característico e que hoje não tem mais. Chamado de “MISTO” e era, como o nome diz, uma transmutação de caminhão metamorfoseado em ônibus: aumentava-se a boléia a ponto de que a mesma abrigasse, feito ônibus, de oito a dez pessoas sentadas em duros bancos de madeira e, claro que com isso diminuía a carroceria, mas não tanto a ponto de impedir que nela fosse transportadas dúzias de galinhas com suas perninhas amarradas com cipó, cabritos que berravam todo o tempo - reclamando, talvez, do calor e da sede -, quietas e pesadas sacas de arroz, gordas sacas de feijão de corda e pacotes e mais pacotes de doces rapaduras.
Era em um misto que eu viajava da fazenda do pai até a capital para onde fui mandado morar para os necessários estudos.
Em uma destas idas, voltando para capital depois de boas e longas férias, que me acomodei à boléia do misto, ao lado do Senhor Edmundo, meu padrinho de crisma, levando na carroceria caixas e mais caixas com dúzias de queijo coalho que minha mãe havia feito. Tantos queijos eram regalos e deveriam ser distribuídos, assim que chegasse à capital, para tios e tias, uns dois para o padre, Freio João, que foi quem me batizou e grande apreciador dos queijos de minha mãe; outros para o diretor do Ginásio, o senhor Everton, que os recebia sempre sisudo, e não agradecia; um para o Juiz de Direito, Doutor Moacir, e outros para os amigos do pai, e neste caso havia uma lista, escrita em papel jornal, pelo pai, com os nomes e na frente o número de queijos que eu deveria entregar a cada qual, sem revelar as outras entregas para não fomentar ciúmes entre os amigos, dizia, severo, meu pai: “nada dizer ao outro quantos queijos você entregou para o Pedro ou para o Rodolfo; diga simplesmente: Seu fulano: ta aqui o queijo, ou os queijos, que minha mãe fez e o pai mandou para o senhor, entendeu?”, “entendi, meu pai”, respondia, enquanto pensava em Alterar a lista de modo a reservar um ou dois para minha professora predileta, Dona Rose, que, lindíssima em sua pele clara e olhos azuis sob os óculos redondos com aro de tartaruga, dava aulas de português.
Mas como ia dizendo, íamos em nossa viagem: eu na boléia e, na carroceria, os queijos com as galinhas, cabritos e as sacas de mantimento.
E foi então que, depois de umas seis horas de viagem, na divisa do município de Parambu, o misto foi parado pelo fiscais que, mal humorados, voz alta de comando, de imediato ordenou que o mesmo se acomodasse pouco mais à frente, sob a sombra de um juazeiro, para “poder melhor revistar tudo e todos, sem sobrar nada”, dizia um dos fiscais, o de de avental banco, escoltado por dois soldados com suas espingardas, ou fuzis, não me lembro mais, apontados para o alto em posição de sentido.
Eu tinha, à época, uns quatorze ou quinze anos: tímido, gago e medroso destes negócios de soldado, ainda mais armados.
E os fiscais e seus soldados, subiram na carroceria e esquecendo as galinhas, cabritos, sacas de arroz e rapaduras implicaram com os meus queijos: “Porque que tantos? Vai vendê-los? Se vai vendê-los, como penso, eu te pergunto rapazinho, seus queijos foram devidamente vistoriados pelo posto de saúde lá de seu município? Onde está o certificado de higiene?”
E eu gago. Nervoso, mais gago ficava: como responder a tantas perguntas, feitas ao mesmo tempo, rápidas, em voz alta - autoritária - pelo fiscal de avental branco e sobrancelhas espessas, vigiado pelos soldados armados de espingardas de cano longo ou fuzis, não sei bem distinguir, esta é a verdade.
Impossível, com minha gaguice aumentada pelo atávico medo que tinha de soldados, responder, argumentar, explicar para quem os queijos seriam oferecidos, mostrar a lista com os nomes dos amigos do pai que seriam agraciados com tão perfumado regalo, berrar alto que minha mãe era a melhor queijeira de todo o interior do Ceará, que todos os queijos coalhos que levava nada mais eram que inocentes presentes.
Só, temeroso, pensava; a gagueira impedia-me a fala.
E os fiscais e seus áulicos ameaçaram, caso se eu continuasse teimando em não responder às suas perguntas, jogar, ali mesmo na caatinga, os queijos, e o “fariam estritamente dentro da lei, pois saiba rapazote, que o que você está fazendo é crime: transportar perecíveis sem a devida inspeção; saiba, frangote, que isso é o mesmo que contrabandear alimentos, que dá pena de cinco anos...”
E eu, gago, sem tempo e forças para defender-me e a meus queijos: “que joguem os queijos para os ratos da caatinga, mas Deus do céu, que não me prendam; se eu ficar cinco anos preso vou ter que faltar tantos dias das aulas no Ginásio que vou acabar repetindo de ano, e meu pai vai ficar bravo porque eu lhe prometi que nunca repetiria, que só teria boas notas”, pensava.
Aí surge meu padrinho Edmundo:
- “Mostre a ele sua carteira de estudante, Gilberto! Você é um estudante com carteira e tudo; mostre ao fiscal que logo, logo, neste fim de ano, antes do Natal, você vai se diplomar no Instituto de Educação Dom Bosco. Vamos, menino, ´mbora , tire logo a carteira do embornal”.
Mais sereno por não precisar falar, tirei do fundo do embornal a carteira de estudante e, timidamente, ofereci-a. E nas mãos enormes do fiscal ela se apresenta, viva, com sua capa azul, com meu retrato três por quatro na primeira folha, todo sério, com a assinatura do diretor, Senhor Everton, bem legível com sua letra um pouco tombada à direita, com boas notas mensais, fora um quatro e meio em matemática e de outro em trabalhos manuais, com a parte das presenças não apontando nenhuma falta durante todo o ano.
Devidamente vistoriada a carteira me é devolvida e eu a acomodo no fundo do embornal; aproveito para a acariciá-la com os dedos, em uma retribuição pelo feito: a danada da carteira azul de estudante salvou-me a mim e aos meus medos, respeitou minha gagueira, salvou os queijos coalhos feitos por minha mãe e, mais que isso, delicada, tornou-me homem àquela hora.
Perdi o medo.
E agora aproveitando já que o assunto é “misto” vou contar uma história acontecida em outra viagem, também indo de minha casa para a capital e tendo, mais uma vez, ao meu lado o padrinho Edmundo...
Agora eu tinha uns dezesseis anos e estava no científico. Já era um rapazinho com as barbas querendo apontar, sujando as faces, cultivava um bigodinho ralo - penugens claras e finas acima dos lábios - e tinha a voz em mudança, motivo de ironia pela professora de canto orfeônico, que frente às diferentes e contraditórias entonações quando solfejávamos no coral, comentava : “tem um galinho cantando no coral?”.
O que quero dizer é que era já um rapaz.
Ao meu lado, na boléia do Misto, viajavam duas meninas, lindas, usando, ambas, vestidos de organdi bordados, pequenos e rijos seios, feito pequenas laranjinhas forçando, para fora, os botões da blusinha branca.
E eu, ao lado, viajava quieto e tímido em minha gaguice, ou disfemia, como preferia a professora Rose, vestido com minha roupa nova de ir à missa. Entre o brim caqui de minhas calças e o organdi branco do vestido da linda menina sobrava por volta de um palmo de madeira de banco duro.
Queria, mas faltava coragem, aproveitar os solavancos do misto para encostar minha perna na perna da que estava ao meu lado direito e diminuir aquela, para mim, absurda distância ente os tecidos caqui de minhas calças e o organdi de seu vestido. E se a cada solavanco a distância diminuía, a coragem de uma aproximação total não era suficiente. A uma certa hora ficou uma coisa que era nada mais que dois dedinhosde distância entre nossas pernas, e quase não se via a madeira dura do banco separando os tecidos de nossas roupas.
Até que chegou a hora: em uma curva, onde o misto passava sobre o leito de um córrego seco, um buraco provocou um solavanco forte no duro misto, que fez sua vez e ajudou-me a vencer a timidez; nossas pernas se encostaram e misturou o brim caqui com o organdi branco.
Senti o calor de sua perna junto a minha. Mudo, coração saindo pelas ventas, imóvel, penso: “Deixo assim, tão gostoso, encostada a minha perna? Será que ela está concordando com minha sem-vergonhice? E se ela, descontente e brava, resolve contar para o motorista desta minha ousada pouca-vergonha?”.
Foram, penso, coisas de uns dois segundos com nossas pernas aquecendo-se mutuamente. Medroso, voltei à posição de antes do solavanco, e com as pernas desencostadas, dois dedinhos separando o organdi do caqui, me pus a pensar: “Será que ela percebeu? Será que, como eu, gostou?”.
Olho firme no espaço entre os tecidos: uns dois dedinhos de madeira a separá-los.
Veio um próximo solavanco, e com ele, um novo, mais forte, corajoso e demorado contato de pernas: “Se deixou encostar é porque está gostando”, pensava.
Temeroso de ser descoberto olhei para meu padrinho; queria verificar se ele estava vigiando minha pouca-vergonha; morreria de vergonha, com certeza, se levasse dele um pito por tamanha safadeza de minha parte. Mas meu padrinho, quieto, olhava para os lados da paisagem seca e parecia, mesmo, que eu, para ele, nem existia.
Outro solavanco, este menor, mas agora eu mais atrevido, fiz colar, novamente, minha perna na da linda menina de vestido de organdi: e desta vez com tempo suficiente para sentir sua firmeza, sua quentura; meu coração teimava em querer sair do peito, fugir pela boca, ir para onde, não sei, talvez lá pelos meios da caatinga quente e rude.
E assim, juntamente com o coração querendo sair pela boca, palpitando célere, que, inesperadamente e na pior hora possível, surgiu uma dor de barriga enorme, cólicas intestinais insuportáveis a exigir rápidas medidas de alívio ou o pior aconteceria.
Tive que agir rápido: conhecia meus intestinos, minhas fraquezas. Vou até o motorista e , envergonhado, peço um tempo para cumprir minhas necessidades urgentíssimas.
- “Logo ali na frente tem uma moita de gabiroba. Agüenta até lá. Aqui neste ermo de caatinga não tem como você fazer o seu serviço. Bebeu leite cru no curral da fazenda?”.
E eu, penas cruzadas, temendo o pior, aguardei ansioso a capoeirinha de gabirobas!
Chegou e, felizmente para minha timidez, o esconderijo ficava a uns quarenta metros da beira da estrada: sons que certamente ocorreriam, seriam inaudíveis, dada a distância dos passageiros.
Dirigi-me, o tão rápido como minha situação permitia, pois correr seria desastroso, à moita de gabiroba; a vergonha da inusitada situação aliada ao perigo de que algo poderia ocorrer me fazia perder os sentidos.
Protegido pelas ralas folhas das gabirobas, aliviei-me!
O pior já passara! Agora era pensar em como retornaria ao misto e enfrentaria a menina de vestido branco de organdi. Com certeza, não teria coragem, mesmo que mil e um solavancos ocorressem, de encostar minhas pernas nas suas até o fim da viagem; não ousaria perguntar seu endereço na capital e nem mesmo seu nome descobriria.
Bem que a mãe sempre dizia: “este menino tem dois problemas, pobrezinho: gagueira e intestino fraco”.
Eu lá a pensar. O motorista tocou a buzina do misto para apressar-me! O “fommm! Fommm! Fom!...” rouco do misto invadiu a caatinga.
E o intestino resolveu voltar a funcionar: cólicas agudas aliadas a sons escandalosos que eram emitidos independentes de minha vontade, quanto mais tentava segurá-los mais as cólicas chegavam ameaçadoras, dolorosas, terríveis...
Quão bom seria se faltasse pouco para chegar a capital: faria o resto da viagem a pé, diria, como desculpa, que precisava caminhar, que era uma penitência para pagar mortais pecados cometidos, ou mesmo, menos trágico, promessa feita para passar de ano; excelente idéia, penso: mesmo longe tenho certeza que o melhor é chegar até a capital a pé...
De qualquer forma terei que informar isso ao padrinho e ao motorista: mas aí será um tempo curto, logo o misto vai embora e eu fico quieto com minhas vergonhas...
- “Fom! Fommmm! Fommmmmmm!” chamava furiosamente o misto.
- “ `Mbora, cagão!” berrou o motorista.
E os intestinos a funcionar!
Interminável e interminavelmente dolorosa a situação em que me econtrava, agachado atrás da rala moita das gabirobas, querendo morrer: “Até morte deve ser melhor que passar a vergonha que estou passando e que só vai piorar quando eu entrar no misto.”
E a caatinga foi mais uma vez invadida por mais um sonoro “Fomm!” só que este curto, sem repetição, e me pareceu que interrompido pela voz de meu padrinho.
Silêncio nas caatingas; dava para ouvir ao longe o pio lamuriante do anu preto.
Urgia de mais tempo para pensar em como entrar no misto.
Sem solução a solução era enfrentar.
Me ajeito e volto ao misto e subo em sua boléia sob o olhar dos passageiros.
Meu padrinho me recebe:
- “Senta Gilberto. Fez tudo o que precisava? Está aliviado?”
Gago, nervoso, não deu tempo para responder que sim.
Me preparava para sentar e ele continuou:
- “Você ouviu a buzina, menino?”
- “Sim, padrinho eu ouvi, mas...”, iniciei, gaguejando, minha justificativa pela demora, mas fui mais uma vez interrompido pelo padrinho:
- “Tinha nada que buzinar este puto...? Sabe o que eu disse a ele?”
- “Não, padrinho, não sei o que o senhor disse.”
- “Eu, meu filho, me emputeci e berrei alto: pare com esta buzina, seu corno, deixe o menino cagar.”
A menina de vestido de organdi branco ajeitou cuidadosamente a saia de seu vestido, oferecendo o lugar próximo a ela.
Sentei-me.
Percebi havia sentado deixando coisa de um palmo de distância entre o caqui de minhas calças o organdi de seu vestido. Logo um pequeno solavanco diminuiu uns dois dedos a distância....