domingo, 20 de dezembro de 2009

FIQUEI VELHO!



Fiquei velho!

Faz tempo, que fiquei.

Certa vez, na biblioteca de uma colônia de férias, caiu-me às mãos um enorme ensaio da Simone de Beauvoir , A VELHICE, livrão pesado que compete, em grossura e número de páginas, com OS SERTÕES do nosso Euclides ou mesmo com A MONTANHA MÁGICA do Mann. Não li todo o ensaio e só posso compará-lo com as obras aqui citadas, apenas pelo volume... Mas, me recordo que uma das anotações da autora a respeito da velhice é a que sempre pensamos que a idade chega aos outros e não a nós, e naqueles dias em que lia o ensaio, pensei que aquela conclusão talvez fosse influência do companheiro Sartre: “o inferno são os outros”.

Mas chega à gente, sim!
Quero dizer, se você não morre cedo, a idade e a velhice chegam.

E cada um vai descobrindo a sua chegada de um modo.
Rubem Alves, em uma crônica, há tempos na Folha, fala de sua - agora - “implicância” em ser fotografado de perfil: a papinha ou a barbela, que nas fotos de perfil aparece abaixo do queixo, para ele, sinaliza o envelhecimento.
Um bom amigo, me disse, que se surprendeu no dia em que, no metrô, uma bonita jovem ofereceu-lhe o lugar e, depois, feliz pela prática da boa ação, olhou carinhosamente para ele com olhos de neta. Sorte, disse-me ele, a bela moça não ser “escoteira” e agradecer a boa ação diária com os dois dedinhos no alto da face dizendo em voz alta: “Sempre alerta”.
Moro em uma casa aqui na Serra da Cantareira e tive, durante alguns anos, como vizinho, um chileno educadíssimo, amante de bons vinhos, de fotografia e de uma boa prosa. Victor é o seu nome. Pois bem: ele tinha uma sobrinha, com pouquíssimo tempo de Brasil, àquela época com uns cinco ou seis anos, falante e graciosa com seu rostinho emoldurado pelos negros e lisos cabelos, parecendo uma indiazinha. Em uma tarde estava a podar plantas no jardim quando ouvi Camila, a sobrinha de Victor, aos berros em seu quintal, ao lado da piscina. Chorava alto e dolorosamente.
Depois descobri: sua tia “aproveitou”, enquanto Camila dormia, e saiu para realizar pequenas compras; ocorre que a nossa indiazinha deve ter acordado mais cedo que o normal em seu sono vespertino e se viu só na enorme casa, com um medo enorme dos tucanos que berravam no alto da paineira, medo da solidão, de não ter a tia a oferecer-lhe leite com Nescau, nem os primos para jogá-la de roupa e tudo na piscina... Assim berrava e berrava a pequena chilena!
Resumindo: me muni de uma escada, pulei o muro, fui até o quintal do vizinho e, com o apoio da mulher, “salvamos” a pequena Camila que ficou conosco até a chegada da tia. Em casa imediatamente se acalmou, ficou toda prosa, tomou leite, comeu bolo, e, a partir dali, tornou-se visita freqüente às tardes sempre pedindo bolo de chocolate, sua paixão. Mas voltando à velhice, assunto desta história: sempre que lhe perguntavam sobe o ocorrido naquela tarde, Camila dizia: “fiquei com muito medo e chorei até que um velhinho pulou o muro e veio me salvar.”
E agora de volta aos bancos azuis do metrô.
Estava indo da Sé para a República quando uma jovem ofereceu seu lugar a um senhor que, junto comigo, estava sem local para sentar.
O velho agradeceu a gentileza:
- “Obrigado, estou bem, e, também, desço na próxima” e olhando para mim: “Não quer sentar?”
- “Também, quero não. Desço na República, obrigado, não vale a pena.”
Travamos ali uma amizadezinha:
- “Quantos anos você tem?”, perguntou-me.
- “Sessenta e três”, o que dá para concluir que esta nossa historia no metrô ocorreu já há bastante, ou sendo generoso, algum tempo.
- “Mas você está bem, parece forte. Tenho sessenta e sete, fiz agora, no dia seis do mês passado.” E para seus sessenta e sete, realmente, o velho era saudável e se equilibrava firme, braços erguidos com as mãos segurando forte na alça de apoio do vagão do metrô. Assim estávamos os dois, próximos, dependurados no apoio do vagão: ambos magros, bastante calvos e as com as nossas enormes orelhas cheias de pelos abanando e ocupando razoável espaço naquele vagão do metrô. Com certeza, caso houvesse alguma jovem mulher no vagão, estaria olhando para nós como dois simpáticos e fortes vozinhos.
- “Mas o senhor está muito bem aos seus sessenta e sete”, disse.
- “Sim, estou bem, forte e cada dia mais feio. Tenho espelho lá em casa, me vejo todas as manhãs e o mesmo não me deixa mentir. Bem, desço aqui no Anhangabaú. Tchau!”
E desceu rápido, passos firmes, ombros erguidos sem nenhum sinal de corcunda no corpo magro...Feio.
Mais uma história. Foi em um almoço onde o prato principal era uma deliciosa feijoada. Entre os participantes desse almoço, um senhor, velho como eu, talvez uns dois ou três anos a mais, o que em nossa idade é zero, muito diferente de quando se tem treze anos e encontra um “menininho” de dez, que achamos insuportável em sua infantilidade. Voltando a este velho: me disse que praticava yoga, era vegetariano, não comia carne e ficou, realmente, um tempão frente a enorme panela da feijoada, catando grãos de feijão e um pouco de caldo que misturou ao arroz e couve; nada de carne, toucinho, costelinha defumada e, nem mesmo, um pedacinho de carne-seca.
Fez seu prato e sentou-se a meu lado para comer e conversar. Assunto principal: velhice. E eu tomando coca light em homenagem a diabetes e ele com sua feijoada vegetariana!
Mas era forte, saudável e um pouco falante demais o meu vizinho de mesa.
Não perguntei, mas descobri sua idade:
- “Tenho sessenta e oito anos, mas me sinto como se tivesse vinte, não vejo nenhuma diferença”, disse, iniciando a conversa enquanto, ao mesmo tempo, dirigia um olhar lascivo para a jovem e morena garçonete que ajudava nas tarefas de por a mesa.
Eu um pouco sem paciência:
- “Eu me sinto bem aos meus sessenta e cinco, mas muito diferente de quando tinha vinte anos.”, respondi.
E ele:
- “É mesmo? Por que?”.
E eu:
- “Bem...há muitas coisas que fazia aos vinte as quais não faço mais”, respondi.
E o velho falador, que não tirava o olho da garçonete morena, quase a desnudando em público:
- “Verdade? Ah, comigo não! O que você não faz agora e que fazia quando tinha vinte?”, desafiou-me enquanto continuava a desnudar a garçonete que, agora, à luta com a travessa de couve, era obrigada a curvar-se, deixando parte das belas pernas à mostra.
- “Não jogo futebol como jogava”, disse.
A conversa foi encerrada. Comemos em silêncio: eu a feijoada e minha coca light e ele, agora calado, o seu prato de arroz, caldo de feijão e couve.
E só para terminar cuidando para que esta historinha não fique tão longa como o ensaio da Simone de Beauvoir - atenção ao “tão longa”, pois longe de mim querer competir com a velha francesa em profundidade, qualidade na escrita e competência - vou contar de uma vez quando voltava de uma caminhada de dez dias pelo Caminho da Luz. Cansado da caminhada, após desembarcar na estação Rodoviária do Tietê, pegar o metrô e depois um ônibus até o ponto final, já no pé da serra, tomei um táxi para subir a Cantareira até minha casa; e foi aí, neste percurso pela estradinha da serra, que conversa vai, conversa vem: "Mas onde mesmo o senhor foi? Quantos dias andou caminhando no meio do mato? Dormiu em barraca?" . Enfim, satisfeitas as primeiras curiosidades, o taxista deu-me tempo para, por minha livre e espontânea vontade, dizer:
- “Gosto muito de caminhar, ficar só comigo mesmo por alguns dias no meio do mato. A gente, quando está envelhecendo, precisa disso.”
E o velho motorista de táxi, agilmente:
- “Envelhecendo não: já somos velhos.”

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

EREMITAS

Não sofro pela solidão; já é bastante esforço alguém tolerar a si mesmo e as suas próprias manias.” Jorge Luís Borges, “in” O livro de areia.

Não sei se com vocês, mas, em mim, a figura do eremita sempre exerceu um fascínio inexplicável. Ainda criança, via do curral de casa, ao longe, o Morro do Baguaçu que tinha ao seu pé, uma arredondada mancha amarelo avermelhada contrastando com o verde da vegetação ao seu redor e o negro de suas rochas; era a, para mim, inatingível, caverna do bugre Brechó: “é lá que mora o Brechó, negro de uma só perna, feroz e hábil na luta e na briga tamanha a facilidade que tem em manusear sua muleta”, dizia Antônio, um de meus irmãos. “Pode ir lá?”, perguntava e a resposta era sempre um “só vai quem gosta de morrer”. Aquilo me intrigava; o amarelo avermelhado da gruta e a sempre presente interrogação de como seria a vida do Brechó em sua caverna ao pé do morro. O que e como ele comia? Onde dormia? Será que, à noite, não tinha medo de onça? E também pensava no que o Brechó fazia para passar o tempo lá, tão só.
Mas foi então, com meus sessenta e tantos anos, já até meio esquecido do Brechó e do Morro do Baguaçu, que fui me embrenhar para conhecer um parque estadual do sul do país: seus cânions, cachoeiras, rio caudaloso, longas caminhadas foi o que me tirou do sossego de casa para a uma viagem, até lá, de mais de oito horas de carro. A uns dez quilômetros para chegar à pequena cidade onde permaneceria - sob intensa chuva, mau sinal para o que eu planejava fazer - uma placa aponta para uma pequena estrada calçada de pedras: a sede do parque estava há quatro quilômetros, à direita. Tomo a estradinha pedregosa, estreita, da qual se via, logo “lá em baixo” a casa que, imaginei, deveria ser a sede do parque; vista do alto, a pequena casa branca, com o grande cânion ao fundo era de um encanto assustador.
A uns quinhentos metros da sede, encontro Carlos - depois vim saber, um guia - que, em trabalho voluntário, estava a consertar o mata-burros, vítima das fortes enxurradas causadas pelas chuvas da semana. De dentro do carro trocamos os tradicionais: “Oi, tudo bem?”, “Sim tudo bem, fora a chuva?”, “É ali, naquela casa, a sede?”, “Sim, é ali mesmo”, “Obrigado, tchau”, “Tchau”. Na sede obtenho as informações e os mapas dos passeios possíveis de serem realizados sem guia, e daqueles que, necessariamente, teria que ter o apoio de um guia credenciado; quando me despeço para ir para a pousada, sou tímida e educadamente solicitado pelo guarda-parque a oferecer uma carona para Carlos.
Abrindo parênteses. Tenho, acentuada com a idade, com certeza, uma boa dose de birra dos guias com, via de regra, seus discursos “científicos”; não tenho mais, talvez nunca tenha tido, o mínimo interesse em saber se a tão amiga e esbelta “embaúva” chama-se “cecropia pachystachya” e que é, a pobre coitada, uma planta dióica; o que quero é ver a embaúva, relembrar o tanto de bicho preguiça que vi alimentando-se de suas bananinhas, rememorar a serra da minha infância coalhada de suas folhas prateadas... Enfim, o que quero em minhas andanças é sossego e não saber; o que quero é vislumbrar-me, me emocionar com o vazio, com o silêncio das palavras a salientar o canto dos pássaros ou o assoprar dos ventos. Fecham-se os parênteses.
Carlos, o guia, é um homem alto, com mais de um metro e oitenta, magro, pernas longas, jovem em seus trinta e poucos anos, rosto claro marcado pelo sol, cabelos fartos, tímido, educado, fala mansa. Enquanto conversamos Carlos me orienta a chegar até a pousada e, com um certo desânimo em relação ao tempo, se propõe a, caso o mesmo melhore, realizar comigo, no dia seguinte, uma caminhada que daria uma visão geral do parque, do cânion, e, de sobra, duas ou três cachoeiras: oito horas de duração entre caminhada, descanso, lanche e banhos de cachoeira. Isso, claro, se o tempo mudasse, e ao se despedir:
- “O pessoal da pousada tem meu telefone. Se o tempo estiver bom, é só pedir que eles me ligam. Daqui da pousada em casa são dois ou três minutinhos. Obrigado pela carona e boa noite.”
- “Boa noite, Carlos. Se o tempo estiver bom, te ligo.”
Inacreditável, parece mesmo mentira, mas o dia amanheceu sem nenhuma nuvem, com o céu azul à mostra e o sol brilhando forte, aquecendo as árvores molhadas e úmidas.
À caminhada, pois!
Ao fim da tarde, depois da subida, por trilha, do poço da última cachoeira do dia, com mais de duzentos metros de altura, exaustos - eu, pelo menos - Carlos propõe:
- “Vi que anda bem. Assim, se quiser, amanhã a gente pode descer o cânion, contornar o rio, visitar a cabana de um eremita que vive isolado no parque; lanchar junto à cabana do eremita, retornar e lá por volta das quatro da tarde, tomar um café reforçado na casa de uns colonos amigos. Andando bem, lá pelas seis da tarde estaremos de volta na pousada. Caminha-se uns trinta e pouco quilômetros, ida e volta, e o eremita que vamos visitar, se o senhor quiser ir, é o meu pai.”
As palavras “visitar um eremita” boliram fundo com a minha curiosidade.
Impossível não ir. Acertamos quanto ao lanche a ser levado, horário de saída - “temos que sair bem cedo” - e fui deitar pensando na figura do eremita: cabelos longos, barbas grisalhas, peito desnudo, calcanhares calejados nos pés descalços?
Saímos às seis horas: mochila com lanche, água, um potente binóculos – que se tornou a paixão do Carlos – e uma disposição enorme alimentada pela beleza do cânion, pelas rochas esculpidas em suas encostas, pelo rio tão lá em baixo com suas águas correndo forte entre pedras formando pequenas quedas e pela ansiedade de encontrar o eremita. Durante a caminhada não tocamos no assunto do eremita, pai de Carlos.
Já havíamos alcançado os fundos do cânion e caminhado há mais de uma hora margeando e ouvindo bem de perto o barulho das águas do rio quando, assim que atravessamos um pequeno córrego pedregoso, com águas límpidas e claras, com muitos lambaris à vista, Carlos aponta:
- “É ali, a cabana do eremita, meu pai.”
Na pequena clareira uma pequena cabana, com as paredes de bambus amarrados e justapostos muito próximos uns aos outros, vedando a entrada da água das chuvas e a cobertura feita com folhas de uma palmeira típica da região, também caprichosamente executada; as paredes de bambus tão justapostos e a cobertura com as folhas da palmeira conferiam, à pequena cabana, ares de um “bunker” com um pé direito de mais ou menos dois metros de altura e com uma área de, no máximo, oito metros quadrados, contemplando a cozinha e a sala e quarto. Vista por dentro, lembrou-me uma pequena “kitchenete” que morei quando estudante: aqui, em um dos cantos da cabana, uma pequena cozinha com panelas e frigideira limpas e areadas pousadas no fogão de taipa, sobre uma pequena bancada de bambu dois pratos de ágata, garfos e um facão enorme, com cabo de osso; na sala, contígua à cozinha, a cama sob a pequena janela, também feita com bambus, protegida por um colchão usado e gasto. Em toda a cabana um cheiro de limpeza, asseio e ordem.
- “Benção, pai.”
- “Deusabençoe, filho!”
O eremita estava barbeado, tinha os cabelos aparados e curtos, aparentava ter a minha idade, peito à mostra no corpo musculoso, magro, dentes brancos e um olhar intenso e curioso.
- “Pai, este senhor é de São Paulo e veio aqui conhecer o vale e o rio”, apresentou-me Oscar.
- “Prazer, meu nome é Tiago.”
Era hora do lanche. Tiro da mochila três bananas, ofereço ao eremita Tiago, que sem cerimônia, aceita duas, comendo-as rapidamente. Fala com elegância, voz clara de tenor, acentuando o sotaque típico da região. Reclama do cachorro, que pelo visto, era o xodó de Carlos:
- “Caga de medo de onça, o peste. Esta noite mesmo, por causa da lua, ela veio por aqui e o Tarzan, ao invés de atacar fugiu, ganindo morro acima. Que adianta cachorro que tem medo de onça? Só para gastar com comida?”
Carlos diz que vai ao rio desocupar. Ficamos o eremita e eu , sentados em um banco sob a árvore; comemos mais bananas e umas cenouras quando ele disse que aquilo seria seu almoço.
- “E o seu?”, perguntou.
- “O meu também: hoje nosso almoço é de bananas e cenouras”, respondo.
- “Ontem jantei mandioca e lambaris fritos. Comi bem demais. Quer ver a roça de mandioca?”
Fomos.
Sua tapera, que é como ele chama sua cabana, ficava a uns trinta metros da base de uma grande montanha rochosa e a uns cinqüenta do rio. “Os guardas do Ibama estiveram aqui e implicaram com a minha roça. Me disseram que deste jeito, com o desmatamento, as pedras da montanha podem se desmoronar e rolar em cima da minha tapera. Mas, olhe doutor, eu não acredito: se Deus colocou ali aquelas pedras desde os eternamente, porque agora iriam querer sair de lá, para justamente, vir derrubar minha tapera? Besteira.”
Não consegui, na hora, formar minha opinião: estariam corretos os ficais do Ibama? Será que o desmatamento provocado pela roça de mandiocas do eremita Tiago - que se limitava a uns trinta pés da planta, em um quadrado de vinte metros por vinte - poderia, mesmo, em longo prazo fazer rolar as imensas rochas que ficavam ao pé o morro? Sei não!
Nem bem Oscar, após ter cumprido suas necessidades à beira do rio, se aproxima, seu pai muda de assunto:
- “Oscar, comprei plástico grosso para cobrir a tapera; semana que vem vou buscar.”
Ficou evidente a decepção do filho, orgulhoso da engenhosidade do pai em cobrir tão perfeitamente sua tapera com as folhas de palmeira:
- “Mas pai, está tão bem coberta, não chove dentro. Para que por plástico, pai? Vai esquentar muito nos dias de sol quente.”
- “Até pagar, já paguei. Semana que vem, vou à cidade pegar a aposentadoria, ver sua mãe e trago ...tenho também que trazer mais querosene, arroz e óleo. Você não quer me ajudar a trazer? Te pago o dia.”
- “Ajudo pai, não precisa pagar o meu dia, mas não precisa do plástico.”
- “Quero, sim”, aparentando, pelo tom de voz, que o assunto do plástico estava encerrado.
O jeito foi Oscar muda de assunto:
- “Vamos embora? O pessoal está esperando a gente, às quatro, para o café. Pai, sabe que vamos tomar café na casa da tia Geraldina? Ela vai fazer biscoito de polvilho frito na graxa, bolo de mandioca e café margoso para o senhor aqui, que não pode com açúcar, por doença. Sua bênção Pai.”
- “Deusabençoe, filho. Pra semana a gente se vê.”
- “Até um outro dia, seu Tiago”, me despedi.
Deu-me a mão e respondeu timidamente:
- “Inté. Volte mais vezes, quantas quiser; gostei de conversar com o senhor.”
Nem bem coloquei a mochila nas costas para o retorno, Seu Tiago já descia em direção ao rio, dirigindo pesados palavrões ao “cagão” do cachorro Tarzan, que indiferente, abanava seu rabo a todo vapor, derramando-se em carinho pelo dono.
O retorno deveria ser realizado, para alcançar o sítio onde teríamos o festejado café na casa dos colonos, por um outro caminho, que nos deixaria a oeste da sede do parque, onde estava o carro. Por este caminho, segundo Carlos, bem mais difícil e cansativo que o da vinda, passaríamos pela caverna de calcário, ao pé do morro, que até “hoje em dia ainda é morada das onças, mas foi, de antes, morada dos bugres, que até enfeitaram suas paredes com desenhos rupestres; estes desenhos não podem ser tocados, mas, mesmo assim, se quer ir ver, podemos. Não atrasa muito a caminhada, coisa de uma meia hora, e estamos adiantados. Quer?”
Impossível não querer.
Enorme a caverna de calcário! Uma boca de mais de quatro metros de largura por uns sete de altura. Até uns cinco metros entrava-se com a luz a clarear; após isso, seu fundo era de um escuro absoluto, breu, tudo imensamente negro e com um silêncio capaz de fazer ouvir as batidas do coração e sentir, tamanha a solidão naquele negrume, o pulsar do sangue nas veias.
E foi então, aos sessenta e tantos anos, que visitei Brechó em sua caverna, ao pé do morro do Baguaçu, e o ajudei a desenhar, ao fim do dia, nas paredes da caverna, figuras que relatavam as aventuras de nossas caçadas, de nossos amores, de nossos sonhos e de nossos medos; repousei em sua cama ao chão, ajudei a fazer fogo, junto ao monte de pedras que era o fogão, para assarmos a paca que havíamos caçado e o enorme pintado que, no rio pedregoso, havíamos pescado; comemos, com as mãos, sentados no chão, a carne de paca e o peixe assado e ao despedir-me, coloquei sua muleta à entrada da caverna, para defendê-lo das onças e de outros bugres inimigos...