terça-feira, 13 de outubro de 2009

A BROCHURA DO LOUCO OROZIMBO: A história de Durvalina


Aos mais esquecidos relembro: tenho o hábito de, na hora do almoço, ler e fumar sentado em um banco da pracinha. E é lá, entre um cigarro e outro, enquanto visito meus livros preferidos, que encontro Orozimbo.
Ofereço um Continental e:
- Enquanto fuma vou ler para você Orozimbo:
“Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu tomo alegria!
Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda.”
Gostou Orozimbo, é do Manuel Bandeira?
- Não, quero mais um cigarro.
Não gostou, conforme me disse, mas logo tomou o livro do poeta de minhas mãos, e, curioso o folheou enquanto tirava do bolso de seu paletó marrom o caderno com a figura do Duque de Caxias na capa.
A lápis, com sua letra firme, uniforme e um pouco dobrada à direita, li mais esta história do Orozimbo.


MARIQUINHA PRECATA CONTA A HISTÓRIA DE DURVALINA DA INFÂNCIA À ADOLESCÊNCIA

O Tatu Galinha mais manso, andava arredio naquela época da quaresma. O motivo do seu arredio era que no fundo da sua toca a companheira carecia de comida para ela e para os três tatuzinhos filhos, de quem cuidava receosa de ataques àqueles corpinhos frágeis, ainda sem a casca protetora, lindos em sua ainda cor rosa.
Ofereci três pães, torresmo, duas folhas de couve frescas em troca da viagem até o fundo do cemitério.
- Vou mas te deixo lá e te busco dias depois, quer assim?
Fomos.
Dito e feito: nem bem chegamos Tatu Galinha já buscou o caminho de volta saudoso de sua toca, da companheira e dos tatuzinhos cor de rosa. Gostei de ficar só, sem pressa de voltar, com tempo por demais para gastar ali no fundão do cemitério: queria e queria ouvir histórias, palestrar com os mortos. Gostava daquela escuridão, me fazia bem o musical silêncio das profundezas da terra e a companhia dos probiontes e das moneras, como gosta de dizer o Dr. Netto. Engraçado do Dr. Netto: acho que por ser comunista tão ardoroso, se sente proibido de falar de almas: para ele é tudo probiontes, moneras...
Hoje não quero conversa difícil com ele: quero histórias amenas, verdadeiras, humanas. Tenho tempo! Vou longe até o lugar da Mariquinha Precata, velha puta da cidade, que em vida foi freqüentada por quase todos os homens de lá: alguns aproveitando a situação de bêbados, outros insatisfeitos com os prazeres nos limpos leitos caseiros, buscavam, em sua cama suja, prazeres outros.
- Me conte uma história, Mariquinha?
- Conto sim, qual você quer?
- Me conte a da sua irmã, aquela que ainda vive e mora lá pelos sertões do Ceará?
- É assim:
Durvalina é o seu nome. Lá em casa todas as mulheres foram batizadas com os nomes terminados em ina: Durvalina, Emanoelina, Ernestina, menos eu, de nome Marianinha. Durvalina, a mais nova, nasceu no meio do pasto, sob a sombra de um umbuzeiro; nossa mãe, gordona dela, pastoreava cabritos morro adentro quando sentiu as dores do parto. Foi pai quem ajudou o nascer de Durvalina: berrou forte o primeiro choro, assustando os cabritos e até mesmo o carcará que vigiava guloso um bando de preás.
Eu a vi crescer e cuidei dela até seus sete anos quando, ainda mocinha, descabaçada por Anselmo, filho do patrão, fui-me embora de casa para viver a profissão de puta.
Assim sei de sua vida mais do que ela me contou, pela nossa proximidade de irmã e não por companhia constante; esta foi pouca, porque me vim embora.
Mas, continuando: Durvalina cresceu forte, bonita em sua pele morena, cabelos crespos, com os dentes brancos por demais ajudando a iluminar o rosto alegre de se dar inveja.
Mocinha, peitos ainda pequenos começando a apontar foi trabalhar na casa dos patrões, cuidar dos netos do seu Sebastião, lavar roupas pequenas e dar comida aos porco; eram estas suas obrigações em troca de cama, comida e roupas que não mais serviam para Julieta, neta do patrão que tinha ido para a cidade estudar.
A vida dela era assim, me contou: passava a maior parte do dia a cuidar dos pequenos Lindomar e Sebastiãozinho; tinha que brincar de esconder a cara e achá-los e esta brincadeira era bem fácil para ela; tinha também que brincar de pega-pega e aí pegar o Sebastiãozinho já era mais difícil porque ele corria rápido e tinha também de brincar que era mula e sair carregando os dois nas costas, levar chicotadas para pular até conseguir derrubá-los. Essa brincadeira cansava mais.
A noite era seu descanso. Armava a rede e ficava quietinha a ouvir, em silêncio, a conversa que Rosa tinha com Rita, outras duas empregadas da casa. Dormia logo de cansada e também para ficar só com ela mesma, não ter que de nada dar satisfação, não pensar em buscar água na mina, em tratar dos porcos no chiqueiro, nem em brincar de mula.
A noite era, para ela, uma felicidade só até que uma manhã acordou não sabendo se havia sonhado um sonho, meio ruim e meio bom, de ter seus seios acariciados e seu ventre tocado.
Prometeu não dormir a noite seguinte para descobrir se tinha sido mesmo sonho aquele prazer e medo que ocorrera na noite passada. Naquele dia Lindomar e Sebastiãozinho quiseram brincar de mula quase que o dia todo. À noite seu corpo doía, cansado, maltratado pelos chicotes e pelo peso dos patrõezinhos: caiu na rede e dormiu. Tornou a sonhar. Neste sonho sentiu as mãos mais firmes, menos trêmulas, acariciou seus seios e seu ventre com intimidade maior que no sonho anterior. Tocou a mão que acariciava seus seios e sentiu o frio de um metal, de um ouro, de um anel.
Prometeu, outra vez, não dormir para saber se o que ocorria era sonho ou realidade. Mais uma vez cansada dormiu e as mãos, mais ousadas, menos temerosas examinaram todo seu corpo e a despiu de sua camisolinha branca. De manhã, ao ver-se despida, soube que não era sonho o que havia sonhado.
Na hora do almoço foi chamada para ajudar Rita a por a mesa e servir a refeição dos patrões. Sobre a toalha branca de renda, ao lado do prato de louça, dos garfos e das facas pousava a mão do Seu Anselmo: em um dos dedos, o enorme anel de ouro.
Mas agora me cansei de falar Orozimbo. Quero silêncio e descanso; outra hora te conto o resto.
Também eu estava cansado de ouvir: muitas palavras confundem minha mente.