quinta-feira, 28 de maio de 2009

Caminho da Fé, o retorno: caminhando só.


Já disse e repito: caminho por caminhar, para deter-me, sem nenhuma pressa, no agora como se não houvesse o depois. É disso o que mais gosto, o que mais aprecio em longas caminhadas: a quietude do agora sem fim, de ver a montanha lá longe e pensar que vai demorar um tempão para nela chegar, ou não chegar...
Tive um colega de faculdade, o Hélio Pedro, com quem me encontrei há alguns anos atrás. Nos encontramos em uma época em que eu estava me preparando, muito feliz, diga-se de passagem, para a aposentadoria. O encontro ocasional se deu no Centro de São Paulo e Hélio continuava todo bonitão: nenhum sinal de calvície, corpo forte de quem continuava a praticar judô, poucas rugas e, conforme me disse, já aposentado a três anos de seu emprego no Banco do Brasil.
Fomos para o Ponto Chic, no Largo do Arouche, tomar chope e conversar: afinal não nos víamos há mais de vinte anos e valia a comemoração do encontro. Assim depois dos rotineiros “como está você?”, “quantos filhos?”, “continua casado?”... arrisquei a pergunta:
- “E você, aposentado há três anos, o que anda fazendo?”
- “Nada, não estou fazendo nada. Nunca gostei de trabalhar.”
A franca resposta, dada de sopetão, naquele momento de minha vida me surpreendeu a ponto de me engasgar com o chope que estava bebendo.
E Hélio continuou:
- “Verdade...nunca gostei de trabalhar e sempre detestei aquela história de desafios...queria, para ganhar meus trocadaos, só ser Caixa no BB até que na bendita hora que entrei na Faculdade, resolveram me colocaram para trabalhar com Treinamento de Pessoal e veio esta história de desafio par cá, desafio par lá... e eu querendo sossego, me aposentar e não trabalhar. Só isso.”
Pois então: é impossível não me lembrar daquele encontro com o Hélio nestas caminhadas. Isso porque o grande desafio da caminhada é não ter desafio nenhum. É ir indo devagar, sem nenhuma pressa de chegar, admirar com todo tempo uma pequena flor, uma grande cachoeira, um pequeno riacho, uma vaca ou um bezerro, sentir o vento, ouvir o som do silêncio, responder cordialmente a um bom dia do cavaleiro que, também solitário, tira o chapéu e saúda sorridente.
Então é por isso que também é bom caminhar só; até para, depois, relembrar as diferentes reações das pessoas ao encontrar um peregrino caminhando solitário.
Nada de apologia de caminhar só e para provar o que digo até descrevo uma recomendação contida na Credencial do Peregrino: “recomenda-se não caminhar sozinho, pois todos estamos sujeitos a imprevistos”.
Mas, continuando a história, é interessante observar como as pessoas vêm o caminhante solitário, principalmente velho, penso eu. Vou contar: ainda no albergue do Caminho da Fé, enquanto fornecia meus dados para obter a credencial de peregrino a simpática atendente, curiosa, não resiste e pergunta:
- “Mas o senhor vai sóz... perdão, sozinho não porque está acompanhado de Deus e de Nossa Senhora...”
Respondo:
- “Sim, vou com Deus e com Nossa Senhora.”
Outro dia em Andradas, de manhã, saindo da pousada para pegar a estrada cruzo com uma senhora:
- “Bom dia, senhor peregrino.”
- “Bom dia.”
- “Mas o senhor está caminhando sozinho?”
Aproveito a dica da atendente do Caminho da Fé e:
- “Não minha senhora. Estou com indo com Deus...”
E ela rápida:
- “Sim o senhor vai com a proteção de Deus, de Nossa Senhora da Aparecida, do seu Anjo da Guarda, da Santa Izildinha...”
Vou parar de enumerar o nome de todos os santos que aquela senhora resolveu que me acompanhariam pelo Caminho da Fé para não encompridar ainda mais esta história; inúmeros santos que me fez pensar: “qual é o coletivo de santo? De lobo sei que é alcatéia, de anjo parece que é miríade. Há coletivo para santo? Se tem, não sei, mas provavelmente não tem porque senão eu teria aprendido e decorado no cursinho preparatório ao exame de admissão ao ginásio...”
Em Ouro Fino, também logo após sair da pousada percebi que um senhor demorava um pouco mais na manobra do seu carro para entabular conversa. Acertei:
- “Bom dia, senhor peregrino.”
- “Bom dia”, respondo.
- “Vai para Aparecida?”
- “Sim, vou.”
- “Caminha sozinho?”
- “Sim, mas vou com D...”
Não deu tempo :
- “Ta doido” e, rapidamente, manobrou o carro.
Em um início de tarde estava descansando e comendo frutas secas sob uma pequena ponte. Mochila fora das costas, botas e meias retiradas para descansar e molhar os pés na água fria, o que queria era saborear as frutas secas compradas no Mercado Municipal, tomar água potável do pequeno riacho, ver a água passar... Estava lá me ensismemando quando chega, pedalando uma bicicleta, um senhor com mais ou menos a minha idade, penso eu.
- “Boa tarde, peregrino, descansando?”
- “Sim...molhando os pés na água fria; quer uma fruta?”
- “Não obrigado, quero não” e desceu de sua bicicleta, querendo dizer com o gesto, que mais que fruta o que queria era prosa.
- “O senhor mora por aqui?” perguntei.
- “Moro na Barra, o senhor já passou por lá. Cuido de um cafezal e de umas cabeças de boi e agora se mal lhe pergunto o senhor está só?”
A preguiça me faz dar a resposta de praxe:
- “Não, estou com Deus...”
- “Cruz credo, peregrino. Perigoso, muito perigoso. Ladrões, bandidos e malfeitores andam rondando por aqui. Precisa cuidado.”
Não estava a fim de continuar aquele assunto mas percebi, pelo entusiasmo do velho mineiro, que ou se falava de bandidos ou não haveria conversa.
Então me permitam uma outra digressão, tipo abre os parênteses: Já disse que moro em local privilegiado, em um condomínio na Serra da Cantareira, meio a árvores, montanhas e que caminho quase que diariamente por suas longas e silenciosas ruas, desprovidas de trânsito mas algumas devidamente providas de cachorros; alguns destes cachorros são vira-latas, outro nem tanto, mas, em comum, todos latindo e ameaçando os caminhantes, imaginando, penso eu, que estão a cumprir seu dever de proteger a casa de seus donos. Para me proteger, ou proteger o medo atávico que tenho de cachorros resolvi comprar um cajado de alumínio, todo modernoso que virou motivo de curiosidade dos caseiros do condomínio.
Um dia um deles me pergunta:
- “Verdade que este seu cajado dá choque?”
- “Choque não dá mas solta veneno por esta ponta. A droga está contida dento do canal de alumínio. É importado este cajado.” Uma pequena ressalva para justificar tamanha mentira: há nesta casa dois enormes cães de guarda que, furiosamente, latem, latem e rosnam ameaçadores aos que passam. Pois bem: depois desta mentira o inofensivo cajado de alumínio fez história e passou a ser respeitado pelos cachorros do condomínio. Uma ressalva: para longas caminhads prefiro o longo e forte cajado feito de bambu. Fecham-se os parênteses.
Então respondo ao velho mineiro:
- “Não tenho medo. Estou com meu cajado milagroso.”
- “Milagroso? Como assim? Que milagre é que ele faz?”
- “Solta fogo pelas pontas quando qualquer ser impuro tenta me agredir. Estou com Deus e meu milagroso cajado, nada tenho a temer”, disse procurando empostar bem a voz, como aprendi no Mosteiro de São Bento.
- “Verdade?”
- “Sim...o senhor quer testemunhar a força de Deus, aqui, agora? Quer sentir o calor do fogo divino?”
- “Não senhor, quero não” respondeu o velho mineiro e imediatamente levantou-se, fez rapidamente um sinal da cruz, colocou de volta o chapéu na cabeça e retornou à sua bicicleta após tocar, respeitosamente e um pouco temeroso, o cajado de bambu, colocá-lo perto dos lábios, beijá-lo e completar: “que Deus Nosso Senhor o proteja nessa sua peregrinação meu senhor. Reze por nós lá em Aparecida”.
- "Rezarei."
E lá se foi embora pedalando a sua bicicleta o velho mineiro.
Fiquei mais um pouco ali, com os pés na água fria do riacho...Descansei mais um pouco antes de colocar as meias e as botas, ajeitar as coisas na mochila, colocá-la às costas, tomar meu cajado milagroso e partir....só.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Caminho da Fé, o retorno: pequenas generosidades.



Sim eu sei!
Sei muito bem que não há pequenas, médias ou grandes generosidades: há generosidades apenas. É como a história da gravidez: ou se está grávida ou não se está. Mas o que quero, com o “pequenas” é qualificar e homenagear, pela sua simplicidade cativante, as generosidades ocorridas no Caminho da Fé; encarem, então o “pequenas” como um “grande”, enorme mesmo, qualificativo a atos generosos ocorridos nesta última caminhada que vou, agora, relatar.
Outra coisa: prometo nesta história contar apenas “causos” verdadeiramente acontecidos, nada de mentiras ou invenções.
Deixemos de lado tanto “intróito” e vamos ao que interessa.
Em uma manhã, com o sol ainda escondido atrás das serras, um vento frio roçando o nariz e a neblina cobrindo as montanhas de Minas, saí de uma pequena cidade – Tocos de Mogi, se não me engano, em direção a Estiva, isso se o ocorrido foi mesmo logo depois de ter saído de Tocos de Mogi. Explicando um pouco melhor: foram dez dias de caminhada e há horas em que me confundo com tantas cidadezinhas de nomes estranhos, tantas gentilezas, tantas montanhas; além disso a cidade onde houve o acontecido não importa muito, vocês vão ver.
Era bem de manhãzinha, a mão livre do cajado enfiada no bolso para “esquentar do frio”, os passos um pouco mais apertados para aquecer o corpo friorento e eu caminhava distraído brincando de soltar fumaça de neblina pela boca e pelo nariz quando ouvi:
- “Oh! peregrino, bom dia.”
Percebendo que a voz vinha de dentro de um pequeno curral ao lado da estrada parei e procurei pelo dono da voz que para facilitar a minha busca repetiu:
- “Aqui peregrino, dentro do curral... Achou? Quer beber um leite de vaca tirado na hora?”
Mais uma vez volto à distante infância: “beber leite no curral” como era costume dizer permanece firme na memória; é bem verdade que a expressão era motivo de chacota pelos primos da cidade que ironizavam: “beber leite na caneca e não no curral”; mas voltando ao que importa: “beber leite no curral” ou “beber leite na caneca” é inesquecível...
Era assim: colocava-se na caneca de alumínio ou de ágata uma boa dose de café já adocicado e a cobria com colheradas de açúcar cristal até formar um grosso melado escuro no fundo da caneca; depois, ainda com o dia meio escuro por ser tão cedo, dirigir-se, sonolento, até o curral, subir em uma das suas tábuas e esperar o grito:
- “Quer o leite com muita ou com pouca espuma?”
Sempre queria com muita espuma o que exigia que o retireiro colocasse a caneca bem próxima do chão, aumentando a distância entre ela e o peito da vaca; para quem pedia com menos espuma o retireiro aproximava mais a caneca ao peito da vaca, mas em ambos os casos sempre as enchia até a boca com leite quente e perfumado.
Bebia-se o leite quentinho ali mesmo no curral e quase sempre um forte desarranjo intestinal exigia velocidade para alcançar o bananal que havia nos fundos da casa. Era lá o nosso WC.
Embora ansioso e querendo muito reviver o sabor de “beber leite no curral” procurei avaliar as condições locais para descobrir onde um possível desarranjo intestinal poderia ser resolvido. E, assim, vistoriando o local percebi que a uns cem metros do curral, em uma baixada, havia um capão de mato que poderia servir de esconderijo para resolver o provável desarranjo.
Apesar dos riscos concluí ser impossível perder oportunidade tão única.
- “Quero sim, beber leite no curral. O senhor tem café?”, perguntei enquanto tirava das costas a mochila, encostava o cajado no barranco e me dirigia à cerca do curral.
- “Tem sim, ali naquela garrafa. A caneca está logo ali no moirão da cerca, pegue a maior para o senhor”, disse de dentro do curral o retireiro cujo nome, vim saber logo depois, era Bié.
Fui até o moirão, peguei lá uma enorme caneca de alumínio, coloquei uma boa dose de café e subi na tábua do curral, e, como em minhas memórias fiquei aguardando:
- “Com bastante espuma, peregrino?”
- “Sim, bastante espuma, por favor.”
Enquanto tirava o leite para encher a caneca:
- “Vai para Aparecida?”
- “Sim, vou.”
Trouxe a caneca com a espuma derramando pela borda e disse:
- “Reze por nós lá. Tá aqui o seu leite.”
Delicioso, morno, doce pelo açúcar contido no café e como na infância a espuma fazendo bigode acima da boca...Tomo todo o leite e agradeço.
- “Boa viagem e que Deus o acompanhe. Não se esqueça de rezar por nós.”
- “Rezarei”, afirmei enquanto ajeitava a mochila às costas e com a língua saboreava o resto da espuma que formava o gostoso “bigode” branco de espuma do leite.
O desarranjo intestinal não deu o ar da graça, felizmente passei imune pelo capão de mato e lá fui eu caminhando agora com a barriga cheia de “leite tomado no curral” e com a memória revigorada, remoçada mesmo. Muito bom: o leite e as memórias nele contidas.

Mudando um pouco de assunto mas ainda fiel ao título e buscando relatar as pequenas generosidades me recordo que há uns dois anos atrás, na outra caminhada que fiz pelo Caminho da Fé, em apenas dois locais havia oferta de “água potável para peregrinos”. Lembro-me bem de um sítio, ao lado direito da estrada, com uma placa oferecendo água potável aos peregrinos. Paramos, naquela peregrinação tinha a alegre companhia do Pablo, e nos atendeu uma senhora que além da água potável conversou conosco e nos informou que logo logo instalaria ali um banquinho para o descanso dos peregrinos. Havia também, naquela caminhada ocorrida há uns dois anos, outra oferta de água potável: esta no sítio do sr. Joaquim, no município, se não me engano de Ouro Fino; este além dos banquinhos de madeira sob uma frondosa árvore, canalizou água potável de sua residência até aquele recanto e mais ainda: construiu perto do seu terreiro de secar café um “puxadinho” com ducha para banho – chuveiro elétrico, vejam, só – e uma “privada patente” de uso exclusivo dos peregrinos. Bom de papo, assim que vê os peregrinos se aproximando deixa sua casa e vai até o local de descanso contar histórias, falar de suas caminhadas e de sua fé.
Eram estes dois os locais onde água potável eram ostensivamente oferecidas aos peregrinos. Claro que sede não se passa no caminho. Independente destas ofertas basta, quando se tem as garrafinhas vazias, bater palmas nas portas e tem-se as mesmas enchidas, sempre com muita boa vontade e cortesia.
Pois então: aumentou o número de ofertas de água potável para os peregrinos no Caminho da Fé em pelo menos mais três locais.
Vale contar de uma fonte de água oferecida dentro do quintal de uma pequena casa, no município de Crisólia. Além da fonte o proprietário do sítio oferece, frente à sua casa, sob uma frondosa árvore, uma “área de descanso para peregrinos” onde se encontra uma mesa de madeira coberta com toalha, vasinhos de plantas decorando-a e pequenos bancos esparramados em sua volta. Pode?
Vontade de contar mais não falta, mas acho que já chega: uma generosidade minha aos leitores do blog.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Caminho da Fé, o retorno: de mata-burros a top model...


Vontade grande de contar casos acontecidos e inventados neste retorno ao Caminho da Fé. Tantas histórias, afinal dez dias de andanças a pé pelas estradas daqueles mundões da Mantiqueira não se passam em branco, que não sei por onde começar. “Comece pelo começo”, ouço a paciente voz do Tio Olímpio, quando ansioso queria lhe contar casos ocorridos, aventuras ou desventuras.
O começo mesmo deste retorno foi, novamente, em Águas da Prata. Foi lá no “albergue” do Caminho da Fé, que dormi; explicando melhor: o albergue é uma casa grande, próximo da Rodoviária, com seus quatro amplos quartos repletos de beliches que convidam ao sono e ao descanso. Há uma copa e uma cozinha com geladeira e fogão e o único serviço prestado no albergue é o de “cama arrumada”. Naquela noite, no albergue, apenas eu; assim ao sair para jantar recebi a chave da casa e a recomendação de colocá-la na caixa do correio na manhã seguinte, quando partisse.
Pé na estrada logo de manhãzinha... Mochila nas costas, cajado de bambu nas mãos e uma pequena ansiedade por percorrer, novamente, os 34 km que separam Águas da Prata de Andradas, pequena cidade na encosta da Mantiqueira, já em Minas Gerais.
Caminho por caminhar, por gostar demais de andar, de apreciar curioso o que vem depois da primeira montanha ou do que vem logo depois da árvore grande que tem na curva mansa da estrada de chão. Gosto também de ver o azul do céu nesta estação do outono, de tomar banho pelado em rios e poços no meio do mato, de ter tempo sem nenhuma pressa para ficar só e reviver lembranças e cheiros e sabores e neste mundão de deus pensar no agora com a calma que as montanhas e o silêncio me dão. É por isso, e só por isso, que caminho.
Percorre-se o Caminho da Fé por estradinhas vicinais por onde passam charretes, cavaleiros e caminhões que buscam leite nas fazendas. O primeiro mata-burro que encontro me conduz à distante infância...
“Porque será que vaca , boi, burro, mula e cavalo não sabem atravessar o mata-burro?” Pensava e concluía, àquela época, que era porque aqueles animais não conseguiam baixar os olhos até ver o chão e enxergar seus pés; ficava assim, concluído, até que outra hora, sem mais nem porque, pensava: “Estou errado, eles sabem enxergar o chão sim, porque comem comida no cocho; se não enxergassem o chão não conseguiriam comer. Então será porque que não sabem atravessar o mata-burro?” E tão importante dúvida, anteriormente resolvida, retornava com toda a sua força . “Vou perguntar ao Padrim”, pensava, “ele deve saber, já que sabe de quase tudo.” E esquecia novamente até a noitinha, quando estávamos a ouvir rádio, criava coragem suficiente para, no intervalo da novela do Jerônimo, perguntar. “É porque tem quatro pés”, respondia o Padrim, com um tom de voz que impedia novas perguntas: não queria perder em nada as aventuras do Jerônimo, o Herói do Sertão. E aí eu concordava e por uns tempos, aceitava, até que mais uma vez sem saber até porque já que não estava nem mesmo a pensar naquele assunt: “Mas cachorro também tem quatro pés e atravessa, sem cair, o mata-burro. Será porque então?” E a dúvida continuava a me atormentar por segundos ou talvez por minutos. “Vou perguntar para a professora e se ela não souber pergunto, quando estiver de férias na casa dos meus pais, ao tio Olímpio; ele, porque já tem todos os cabelos brancos, vai saber” prometia a mim mesmo.
Pois então: estas estradinhas do caminho da fé, percorridas por caminhões leiteiros, charretes, cavaleiros e agora também por motociclistas estão repletas de mata-burros a separar bois, vacas e cavalos famintos das roças de café, de milho e de morangos que são as plantações que mais se vêm hoje em dia por aquelas bandas da Mantiqueira; são bonitas aquelas roças com as plantações cobrindo as encostas das montanhas negras e altas de Minas Gerais.
E agora eu, aos 65 anos, e como o tio Olímpio com todos os cabelos brancos, será que sei porque bois, burros, vacas, cavalos e mulas não sabem atravessar mata-burros? Acho que não.
Mas logo me distraio e ao ver uma pinguela atravessando um pequeno riacho: “Porque será que cachorro cotó não atravessa pinguela?” Outra dúvida até hoje não resolvida.

Voltando à caminhada: perto de Andradas, depois da serra dos Lima, há o Pico do Gavião com mais de mil e quinhentos metros de altura e ponto de encontro de aventureiros que para lá vão planar e voar em asas deltas. Aos velhos e barulhentos caminhões leiteiros e às charretes e aos cavaleiros se misturam modernos jipes, land rovers e pickups carregados de moços e moças bonitas, que ao ver peregrinos caminhando, respeitosos, reduzem a velocidade para diminuir a poeira da estrada e quase sempre não se esquecem de simpáticos e sorridentes “tchauzinhos”.
Quando faltam uns oito ou nove quilômetros para se chegar a Andradas deixa-se a estradinha vicinal e passa a caminhar por uma trilha íngreme e pedregosa.
E foi lá naquele fundão de mato, cercado de montanhas por todos os lados que vou encontrar um velho, porém reluzente Jipe Willians, rodeado por um grupo que tinha, imagine só: um jovem fotógrafo, um outro rapaz auxiliar segurando uma peça que parece uma antena parabólica, que descubro depois ser um refletor de luminosidade para o fotógrafo realizar a contento seu trabalho, uma moça com um estojo enorme de maquiagem às mãos e uma magérrima, altíssima e bela manequim. Estavam, segundo o fotógrafo, a “produzir fotos de moda”, este sempre circundado de perto pelo rapazinho que segurava a parabólica dando pulinhos e reclamando das formigas, berrando meio histérico que deve ter “até aranhas aqui, cruz credo, o que vim fazer neste fim de mundo? oh! como sofre um produtor de moda, Deus que me livre”. E o fotógrafo, paciente, exigia e exigia que a parabólica fosse colocada assim ou assado e o rapazinho continuava com seus pulinhos, enquanto a moça com o estojo maquiava a bela face morena da Giselle Bündchen , ou melhor, da mistura da Giselle com a Naomi Campbell, aquela modelo negra que puseram a varrer calçadas em Nova Yorque acusada de ter dado vassouradas em sua empregada. Linda, alta e magérrima a nossa manequim de Andradas.
O fotógrafo se dirige educadamente a mim: “Somos produtores de moda, estamos fotografando para a revista XXX, e gostaria saber se o senhor não gostaria de fotografar ao lado da Bianca, nossa top model internacional ?”
- “Eu, posar ao lado da manequim? Para que?”
- “Produção! Ficará extremamente informal, um peregrino ao lado...” Não terminou, interrompido pelo saltitante carregador da parabólica:
- “Chique, chiquérrimo, lindo demais, se apronte senhor. Débora passe um pó para eliminar o brilho no rosto do peregrino, ta muito suado...”
Agora é a vez do fotógrafo interromper:
- “Pouco pó, deixe um pouco do brilho do suor, quero naturalidade.”
Bianca lá do alto me olhava entre triste e curiosa sem deixar em nenhum momento de mostrar os lindos dentes brancos em seu permanente sorriso de manequim.
Fui arrastado, com minha mochila e meu cajado até as rodas do jipe.
- “Não sou manequim...” reclamei.
- “Nada de manequim...Bianca é uma model, com book, desfiles internacionais; uma top model” resmunga ofendido o carregador da parabólica.
Bianca e seu permanente sorriso é orientada para sentar-se no capô, logo acima da roda do jipe e eu fui literalmente colocado em pé ao seu lado; fiquei lá, baixinho, com a cabeça careca coberta pelo boné de legionário chegando à altura de seu umbigo à mostra e de suas ancas ossudas. Lembrei da Tuwigi, modelo inglês, que penso que foi quem iniciou esta mania de magreza, de ossos salientes ao invés de carnes macias a cobrir ossos pontudos. Continuo achando que tanta magreza e ossos pontudos deve ser bom para vender roupas, tirar fotos e estas coisas mas que para namorar de verdade era melhor ancas, ou melhor, quadris como o da Sofia Loren: macios e redondos. A Norma Benguel também tem generosos quadris...
- “Mas moço, não quero não fotografar. Obrigado, mas não sou fotogênico, muito menos bonito e já tenho os meus 65 anos.”
- “Lindo, o senhor é lindo...” berrava e saltava ao meu redor o carregador da parabólica.
- “Senhor, vai ficar muito original, menos formal, por favor aceite. Tiro uma foto e se o senhor não aprovar, deleto. Vamos tentar.”
No visor da Nikon a foto: ao fundo o jipe willians verde exército com as calotas reluzentes, mais ao fundo ainda o Pico do Gavião, no capô a Bianca e eu lá parecendo, perto dela, um anão com minha mochila, boné e o enorme cajado de bambu. “Credo como estou velho e enrugado”, pensei.
- “Está horrível, ou melhor, estou horrível, a foto até...” sem poder terminar interrompido pelo afoito auxiliar de fotógrafo.
- “Lindo, gato...gatíssimo” saltitava e berrava o carregador da parabólica.
- “Excelente, veja só Bianca. Produção dez...Vamos, por segurança fazer outra.”
Agora Bianca colocava uma de suas longas mãos sobre a mochila, enquanto a outra se apoiava em meu cajado e a tal da “produção” conseguia me tornar menor ainda, ridículo mesmo na altura da parte inferior do maiô escarlate.
“Porque será que estas manequins, ou top model ou modelos têm que ser tão altas?” fico a pensar enquanto “poso” para mais uma foto. Gostaria de ter coragem para perguntar à top model de Andradas porque quando desfilam andam sempre trançando as pernas, uma na frente da outra, quase tropeçando... “Será que a Bianca andaria assim aqui nesta estradinha cheia de buracos e pedras?”
Mas Bianca não fala e concluo que deve ser para não desmanchar seu permanente sorriso. Será?
Liberado da coleção de fotos caminho de volta aos meus mata-burros, cavalos, bois, árvores e sons e dá uma vontade de chegar à próxima pousada, a uns oito quilômetros dali, para um banho quente e um possível escalda-pés.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

TEMBÉ



“Completados os cem anos, o indivíduo pode prescindir do amor e da amizade. Os males e a morte involuntária não o ameaçam. Exerce alguma das artes, a filosofia, a matemática ou joga um xadrez solitário. Quando quer, se mata. Dono de sua vida, o homem também o é de sua morte.” Jorge Luís Borges , “in” Utopia de um homem que está cansado.

Ao ser anunciado pelo cabo Jaime e entrar, Antônio Henrique verificou que a sala do delegado era bem menor do que imaginava:
- “Boa tarde, Dr. Edmundo”.
- “Que isso, Antônio Henrique, está me estranhando. Ainda ontem à noite bebemos cerveja juntos, falamos de mulher, de futebol, de seu amigo...sem essa de Doutor Delegado, meu!“
- “Sim, mas era no bar e não na sala do Delegado de Polícia. Posso sentar-me?”
- “Claro, sente-se. Fique a vontade, por favor. Está muito aborrecido?”
- “Sim...era meu amigo e eu gostava muito dele.”
- “Viam-se sempre, não?”
- “Não...nosso último encontro, fora o de ontem, foi há mais de trinta anos. Mas, embora isso possa causar estranheza, éramos amigos.”
- “Você está muito comovido. Quer deixar o depoimento para outra hora, ou mesmo, deixar para amanhã?”
- “Não, acho melhor não.”
- “Você é quem sabe. Vou, então, chamar o escrivão. Fale devagar, por favor, para que ele possa anotar. Nenê ainda não se acostumou ao teclado do micro, prefere a velha Olivetti, mas, agora, com esta história de tudo on-line...”
Saiu à porta e berrou:
- “Nenê, entre para colher o depoimento.”
- “Pode falar”, disseram, ao mesmo tempo, Dr. Edmundo e Nenê, o escrivão.
- “Vou relatar os acontecidos pelas palavras do próprio, posso?”
- “Sim.”
- “Foi assim que ele começou a me contar, ontem, a sua história.”
- “Pode anotar, Nenê.”
- “Era bem pequeno e calorento o quartinho do hotel, na verdade, um H.O: nele uma cama de casal, devidamente ”ornada“com duas toalhas velhas, surradas e descoloradas, mas, caprichosamente colocadas em forma de leque sobre o lençol, cobrindo algumas manchas duvidosas. Tinha, também, sobre a cama, dois destes sabonetinhos minúsculos, que parecem prensados dentro de um plástico azul e que, quando se pensa em usá-los, são necessários bons dentes para abri-los, e, claro, por se tratar de um quarto de hotel de alta rotatividade, duas ou três camisinhas;”sei não, mas logo logo, quando o preço do Viagra cair um pouco mais, um ou dois comprimidos fará, também, parte deste pacote, ou melhor, do “combo”, que é como se diz nos dias de hoje “. Estava lá aguardando Maria Amélia já há umas duas horas. Será que não viria? Se não viesse, de novo, seria o quinto encontro, tão marcado, tão ansiosamente esperado, a que ela não aparecia; pensando melhor, feitas bem as contas, se ela não viesse hoje, e é o que parecia, seria a sétima longa e frustrante espera neste quartinho de hotel. Há dois meses não a via, o que, para mim, era uma eternidade. Fixada na parede, uma pequena televisão, dessas de dezesseis polegadas, com imagens em preto e branco e um som de fazer inveja aos bailes funks da periferia: um ronco só. Aguardei e aguardei Maria Amélia. O que me levou a me encantar por uma mulher tão mais jovem? Ou o que é pior: o que levou Maria Amélia, uma mulher de 26 anos, linda, assediada por todo lugar que passa, profissional de sucesso em uma Agência de Publicidade a se interessar por mim, velho, com meus 58 anos, já calvo e cansado, com uma barriga proeminente que, apesar de flácida, dificulta carinhos mais profundos? Veja só, Antônio Henrique, Maria Amélia é uma mulher cheia de manias, que faz de mim gato e sapatos, o que quer e o que não quer. E eu a obedeço, como um vira-lata faminto de comida e de afagos. Seu último presente, comprado em “boutique” especializada em Nova Yorque, foram estas perucas: uma de cabelos e outra de barba. Exige e, claro, eu obedeço, que as use em nossos encontros; não sei se por fetiche puro ou por querer me remoçar com utensílios tão desnecessários e incômodos, tanto para serem colocados como para, simplesmente, permanecer com eles. Dá sempre um medo de que a barba caia quando, ao vê-la tão bela, despida, me renovo todo e, repleto de forças que não sei de onde vêm, me excedo em carinhos, toques e longos e desesperados beijos. Mas, ela exigia e sempre iniciávamos nossos encontros vespertinos comigo vestido com os adereços “comprados em Nova Yorque, no Soho, veja bem” dizia ela. Estava lá, naquele quartinho quente de HO, sonhando e esperando, e esperando, quando, na pequena TV, a voz grave e impostada de um locutor interrompe o filme da seção da tarde para anunciar “uma verdadeira tragédia ocorrida, há apenas alguns minutos, nas obras de construção do Metrô de São Paulo” me tirou do estado letárgico em que me encontrava. As imagens em preto e branco não deixavam dúvidas: era bem ali, perto do Largo de Pinheiros, que o mundo havia desabado, uma enorme cratera afundou a rua engolindo carros, caminhões e gentes; perplexo, mudei para outro canal, que também anunciava, agora com imagens ao vivo, do local onde ocorrera a tragédia. Com a certeza de que, mais uma vez, Maria Amélia não viria ao encontro, deixei o hotel, e me dirigi ao local da tragédia e, chegando lá, tive a certeza de que entre os carros, caminhões e pessoas engolidas pela cratera imensa que se formou, estava o meu Honda. Tomei um táxi e fui para a Rodoviária. Logo estarei sendo anunciado como um dos mortos, pensava...”
Nenê interrompeu bruscamente o depoimento:
- “Querem café? Vou buscar.”
Dr. Edmundo explicou: Nenê, agora proibido de fumar na sala do delegado, sempre inventava uma “vontade dos outros” de tomar café par sair um pouco, descansar as mãos do teclado, que passara a odiar, e fumar seu cigarrinho. O delegado, aproveitando a ausência do escrivão, pediu a Antônio Henrique para que, se pudesse, quando retornasse o depoimento, partisse de como ocorreu o encontro no banco de jardim da pracinha em frente à igreja matriz. Nenê chega com duas fumegantes e perfumadas xícaras de café: “parece que está muito bom este café, veio em boa hora, para por a cabeça em ordem” ,pensou Antônio Henrique. Nenê voltou ao odiado teclado do micro, Dr. Edmundo desligou seu celular e ordenou:
- “Voltemos ao trabalho. Todos prontos?”
- “Pode falar, Antônio Henrique”, disse Nenê, e Antônio Henrique reiniciou o seu depoimento:
- “Continuando, então...eu estava em casa, ontem à tarde, quando o telefone tocou. Eu mesmo atendi e fiquei surpreso ao ouvir o velho amigo, que se anunciava do outro lado da linha. Mais surpreso ainda, e feliz, fiquei ao saber que estava na pracinha me esperando, para conversarmos.”
- “Mas, prepare-se, estou mesmo banquinho que costumávamos sentar e papear, só que vai me encontrar de barba e não mais calvo, como até a pouco. Venha logo.”
- “Fui. Encontrei-o, realmente, no banco que costumávamos nos sentar para conversar e fumar. Nos abraçamos, comovidos, e ele iniciou o relato de sua história, que procurei contar usando de suas palavras, para ser o mais fiel possível. Fumamos, depois, em silêncio, um cigarro e ele pediu que eu telefonasse à sua casa para saber “dele”. Liguei e ouvi, do outro lado, a voz doce e triste de Beatriz, sua mulher:
- “Sim..estava lá e morreu, mas, ainda não acharam o corpo.”
- “Ele ouviu a conversa, ligou o seu celular, que, me disse depois, estava desligado desde sua entrada no HO, e telefonou para Maria Amélia:
- “Deus do céu, homem, você não está morto?”
- “Não, estava no hotel, te esperando...”
- “Mas que merda...pensei que havia morrido. Por favor, então, me esqueça; para mim, você morreu” e desligou.
- “Os dois telefonemas o deixaram abaladíssimo, foi perdendo a cor nas faces e um estranho suor inundava seu corpo molhando sua camisa e a falsa barba. “Deus do céu”, eu disse. “Quer um café? Vamos tomar um café, para fumarmos outro cigarro?”, perguntei, e ele respondeu:”
- "Não..não quero, obrigado."
E começou , outra vez, a falar:
- "Sabe quem passou ,há pouco, por aqui? A Mirinha. Rapaz, como continua linda a Mirinha. Que mulher, parece que a idade se esqueceu dela. Está casada? Interessante, sabe que li um conto de um escritor italiano, o Calvino, que conta a história de um míope que retorna a sua cidade natal. Seus óculos são sua máscara, como a minha barba e minha peruca, que impede que as pessoas o reconheçam, mas necessários pára que ele consiga reconhecer as pessoas. Uma loucura, porque quando tira os óculos, é reconhecido, mas não reconhece...Eu me senti assim com a Mirinha: eu a reconheci e quase tirei a barba para ver se ela me reconhecia., mas acho que não se lembraria de mim, mesmo sem barba e peruca postiças."
Parou para respirar e eu disse:
- "E então, você continua com sua mania de passar para o concreto os livros que lê? Achava interessante e engraçado aquela sua mania...lembra-se do tembé?”
- "Claro que me lembro, aliás irei lá, hoje ainda. Sempre achei, e continuo achando, que Guimarães Rosa passou por lá para descrever o local onde jogaram o seu Augusto Matraga. Adoro aquele local, a cachoeira, o precipício alto, com a pequena queda d´água e, lá no fundão, onde Guimarães Rosa jogou o Augusto, com pedras enormes e o pequeno poço...”
- "E você dizia que, se fosse mesmo lá o lugar onde teriam atirado o Augusto,ele não teria escapado, não?” procurei recordar-lhe.
- " Sim, desde que ele não tivesse acordado da surra levada no meio do tombo e tivesse tido forças para jogar o peito para o alto, como uma pássaro, e aliviar a queda, aterrisando devagar.”
Não pude conter o riso: " Você e sua mania de voar. Continua acreditando que pode? Pense em seu joelho quebrado, por tentar saltar de “pára-quedas”, com um guarda-chuva, do alto do pé de eucalipto...Se lembra, também, que não descansou enquanto não me levou ao tembé, me fazendo descer pelas escorregadias ladeiras, até seu fundo e encantado, realmente, é muito bonito visto debaixo, me dizer: o Guima passou por aqui, é certeza...bons tempos.”
- "Sim, muito lindo o tembé. Lembra-se que a professora de português reclamou porque dei a uma narração esse título? Tive que procurar no dicionário e comprovar que, apesar de indígena, a palavra existia e era correta sua aplicação? Pois então, Antônio Henrique, hoje eu vou lá no tembé?”
- "Fazer o que lá, rapaz ?", perguntei
- "Relembrar e ver se sei, mesmo, voar.”
- "Tá louco!”, disse-lhe e me ofereci para ir com ele.
- "Prefiro ir só. À noite a gente se encontra na pensão do Baca e tomamos uma cerveja, certo?”
- “ Você é quem sabe.” Fumamos mais um cigarro e nos despedimos, com o compromisso de nos encontrarmos depois do jantar.
- “Quando o relógio da matriz bateu oito vezes, e ele não aparecia na pensão, tive maus pressentimentos e resolvi te procurar no bar do Nenzinho. Lá, falei de minhas preocupações e você disse para eu não me preocupar, e que tomaria as providências. Depois disso, Dr. Edmundo, o que ocorreu já teve a sua participação. Fomos na viatura até o tembé e encontramos, na beira do precipício, a barba e a peruca postiças, e o papel dobrado, com meu nome.“
- “O bilhete de despedida vai ser anexado ao depoimento?”, argüiu Nenê?
- “Você é quem sabe, Antônio Henrique; é um bilhete pessoal. Se quiser, podemos transcrevê-lo e você fica com o original.”
- “Gostaria de tê-lo comigo.”
- “Então leia-o”, disse Nenê.
- “Vou ler:"
- “Antônio Henrique: Vou voar. Vou saltar no tembé e começar logo a contar, no pensamento, até três, bem rápido, e, logo que chegar no três, vergar bem forte o peito para cima, desafiar a lei da gravidade e aterrisar, devagarzinho no pocinho da cachoeira ou sobre as enormes pedras negras. Já completei os meus cem anos e preciso, urgente, deste voar."