quarta-feira, 26 de novembro de 2008

E-MAILS, ou a reivenção do gênero epistolar




Para as pessoas tímidas, e me incluo entre elas, o e-mail é excelente. Silencioso, não tem o inconveniente tilintar do telefone, que exige, muitas vezes, um enorme esforço da secretária do amigo para informar que o tal amigo - que está - não se encontra, ou que está, mas acabou de entrar em uma longa e importante reunião com o presidente...Enfim, para nós tímidos, acaba com aquela chateação de se sentir invadindo o mundo, as rotinas ou o laborioso dia de trabalho do antigo companheiro de faculdade ou de time de futebol.
Veja só, um amigo me contou que ligou várias vezes para uma antiga colega de faculdade e que a mesma estava sempre “no banho”. Menos tímido que eu, persistiu e, quando, após infinitas tentativas, a antiga amiga se dignou a atender ao telefone:
- “Bom dia!”;
- “Oi, Fulana, bom dia! Aqui é Fulano. Como vai você?” e logo depois do indefectível,
- “Estou ótima e com você meu querido?”;
- “Estou bem e você deve estar limpíssima.”
Findou-se, assim, uma amizade que, se fosse cultivada por e-mail, teria, com certeza, sido mantida até os dias de hoje, o que é uma pena, a perda da amizade, claro.
Prefiro os e-mails e mantenho muitas amizades assim.
Um grande amigo, original e ocupadíssimo executivo de uma multinacional, certa vez, respondeu a um longo e-mail e disse que o mesmo resgatou o velho hábito de escrever cartas; e nele me deu, também, de graça, o título desta história, que, na verdade, não chega a ser uma história; é mais um passatempo. Mas, recordando o amigo, os e-mails, de verdade, resgataram o gênero epistolar.
Já um outro amigo, com o qual troco imensos e-mails, jocosamente disse que o grande mérito do e-mail foi deixar tudo muito familiar: fulano@, beltrano@, cicrano@; segundo ele, todo mundo primo, irmão, sobrinho ou tio.
Esta longa e, acho que para muitos, desnecessária introdução, também coisa dos tímidos, só serve para dizer que vivo escrevendo e-mails. Passo o tempo e acho muito melhor do que palavras cruzadas, agora novamente na moda, para ativar as mentes ociosas do numeroso pessoal da terceira idade.
Às vezes, começo logo o dia tomando café preto bem forte e escrevendo e-mails. Em uma destas manhãs ou madrugadas, respondi a um e-mail do meu amigo e da “limpíssima” colega, que havia ficado uns bons dias em minha caixa postal:

“Prezado Wlá,

Bom dia ou, provavelmente, segundo o seu relógio biológico, boa madrugada!!! Afinal, são 6:05 h da manhã.
Sabe que tenho um amigo, o Pedro, que agora mora em Salvador e que um dia usou a expressão "lambendo as crias" para explicar o que ficou fazendo durante um fim de semana prolongado aqui em São Paulo. Na hora, achei grosseira a expressão, mas, passei a gostar.
Todo esse "intróito" para dizer o que andei fazendo nos últimos 20 dias. Lambendo as crias. Minha "cria" menor pegou 15 dias de férias e, como o seu namorado não tinha o mesmo direito, ficamos nós, os pais, "lambendo a cria". Fizemos uma viagem para Goiás, com passagem por Ribeirão Preto, Araguari...Voltamos para São Paulo e continuamos a "lamber a cria". No fim de semana, veio aqui prá casa a "cria" mais velha e continuou a lambeção.
Engraçado, mas minha educação extremamente severa - era proibido xingar, falar nomes feios, etc - ainda é muito presente. “Cria” e “parir” são palavras com as quais - pelo menos inicialmente - não tenho uma boa relação. Besteira pura.
Bem, após tanta lambeção de crias, vamos curtir os amigos. Vou telefonar prá Lu e marcar um encontro aqui em casa. Aqueça os tamborins e vamos matar saudades, contar mentiras e falar mal dos outros. Vai ser bom.
Um grande abraço,
Orlando.”

Outra manhã, depois de uma deliciosa ópera no Municipal na noite anterior, estava folheando o jornal, à procura das críticas relativas à dita ópera. No caderno Ilustrada, encontrei: um palavrório sombrio, uma vergonha de simplesmente dizer que gostou, a tudo tendo ou querendo justificar que resolvo: em vez de ficar lendo críticas, achei que valia mais a pena escrever e-mails para uma querida amiga, fã de bons concertos e boas óperas.
“Querida Beth,
Como vai?
Fiquei sabendo, pelo Daniel, que você esteve no Municipal, vendo Lohengrin. Eu também estive lá, numa quarta-feira, e me esbaldei. Tudo me tocou profundamente. E... lá vem histórias.
Em minha infância, nós tínhamos um primo distante chamado Diquinho. Era um andarilho. Os mais velhos, quando o viam chegar, faziam cara feia. Fama de preguiçoso, sujo e outros defeitos mais. Também diziam que o único jeito do Diquinho ir embora da casa que o acolhia era pedir que ele rachasse lenha: atividade que - não sei se você sabe - exige grande esforço físico.
Meu receio era de que pedissem logo ao Diquinho que fosse rachar lenha o que o faria procurar outras casas e outras comidas.
Porque Diquinho era o sonho das crianças. À noite, não muito a noite, porque dormíamos muito cedo, era hora de ouvir suas histórias.
O Diquinho era um contador de histórias. Contava a dos Cavaleiros da Mesa Redonda, do rei Artur, e muitas outras. O interessante é que ele repetia as histórias e ficávamos disputando qual delas queríamos que ele contasse. Por ser o menor, eu ficava sempre em último lugar nos pedidos, mas não importava... gostava de todas.
Hoje, fico pensando de onde ele tirava aquelas fantasias todas. Era analfabeto. Um tipo muito franzino e débil, que vivia livre e graças à solidariedade de uma época em que não se negava cama e comida a primos distantes e, talvez, a ninguém.
Ainda do Diquinho: mudando de Pedregulho para Ribeirão Preto, em busca de trabalho e para continuar o Curso Normal, fiz uma grande amizade com uns outros "primos de longe", que moravam por lá. Era uma família muito simples, que se "arrumou" em Ribeirão: todos trabalhavam.
No Hospital das Clínicas, trabalhava a Gláucia, que estudava comigo e me deu uma grande força no velho Instituto de Educação Otoniel Mota. Na Coca-Cola, trabalhava o João, que, por pouco, não conseguiu me fazer abandonar a "missão" de ensinar para jogar futebol no Comercial de Ribeirão Preto.
Tinha também o José, que namorava a Eulália, moça belíssima, que era bibliotecária na Biblioteca Municipal Altino Arantes. Ia lá para vê-la - e ela não me via - e aproveitava para entregar livros e pedir outros emprestados. Assim, li tudo do Jorge Amado, do Érico Veríssimo, do Machado de Assis, muita coisa do José de Alencar...Enfim...lia-se muito.
Então...
Esta família era espírita - o que era grave, para mim, na época, um quase beneditino - mas nos entendíamos e eu gostava muito deles.
Uma noite, fui buscar minha irmã no Hospital das Clínicas, onde ela trabalhava, e lá encontrei com a Jacira - mãe desta família e que também trabalhava no Hospital - que me disse que tinha ido ao Centro, naquela semana, e que a alma do Diquinho havia "descido" na sessão, que o mesmo estava bem, finalmente desligado da miséria e dos pecados do mundo, e que logo reencarnaria em um corpo de alguém que não tivesse tantos pecados para cumprir aqui na Terra. Mesmo sabendo de um futuro mais feliz para o Diquinho reencarnado, me entristeci.
Pois bem, e, agora, o melhor da história. Alguns meses depois, indo a Pedregulho visitar uma outra irmã, que morava em um sítio, sabe quem encontro? O Diquinho: vivíssimo, contando histórias, mais velho e que, agora, com certeza, não daria conta de rachar lenha, de tão fraco e franzino. Contou minha história predileta, que falava de um rei que tinha sete segredos, que guardava no fundo do mar, dentro de sete caixas, cada caixa com sete princesas e tudo o mais. Lindíssima história. O Lohengrin me levou até lá.
Um beijão,
Orlando.”

Uma vez, li uma entrevista do Caetano Veloso, na qual ele diz que adora pegar o violão e, sentado na escada, ficar tocando, tocando: “enche o saco de todo mundo, menos o meu”, disse. Não toco violão, então, escrevo e-mails. Não encho o saco de ninguém, mesmo do destinatário: é só deletar; e, por isso, não uso nem mesmo aquele bendito recurso de “confirmar se recebeu o e-mail”. Livre para escrever e, mais ainda, para ler.
Mais um e chega: este para um amigo que conheci em concertos da OSESP e que estava em uma luta, finalmente perdida, contra um câncer violento. Antes de descobrir a doença e mesmo em seu tratamento, quando tinha forças, o Geraldo tinha uma mania de, semanalmente, nos encaminhar e-mails com frases, artigos e outros que tais, nos desejando uma boa semana. Em seu período de tratamento, a ausência de seu e-mail desejando a boa semana era motivo de preocupação.
“Prezado Geraldo,
E cadê o tradicional BOA SEMANA, com o qual você nos brinda?
Me acostumei a gostar deles.
Sabe que, em um e-mail, no qual te conto que fui um alfabetizador de adultos, lá pelas bandas do Vale do Ribeira, você responde dizendo que deve ter sido uma fase difícil em minha vida. O engraçado é que todos pensam como você. Só que não foi.
O que quero dizer é que, vendo as coisas HOJE, parecem difíceis, mas eu não achava assim, naquela época.
Seguinte: eu encarava aquilo tudo com muita naturalidade e até com um certo orgulho. Os horizontes eram, talvez, pequenos, mas – intuitivamente - eu os encarava como momentos de minha vida. O ano seguinte seria outro ano...e eu construiria minha vida.
Assim, achava natural andar 24 km, a pé, aos sábados à tarde - porque, naquela época, as aulas iam de segunda a sábado - para ir a Registro, dançar, namorar e - claro - jogar bola no Domingo, à tarde, e voltar, à noite: sozinho, sem medo, assobiando e pensando no próximo sábado e, também, na segunda, na terça....
Um dia, te conto das experiências de passar medo de escuros, de sacis e outros que tais pelos quais passei por lá. São estórias engraçadíssimas, hoje, porque, na época, foram terríveis. A única vantagem era a de que eu passava medo, deitava, então, com uma lamparina acesa e dormia. Uma noite dessas – com lamparina acesa, medo e sono profundo juntos - quase pus fogo na escola, que era, também, o local onde eu morava.
Uma vez, uma noite, acordei com um barulho tremendo na sala de aula. Como te contei no outro e-mail, naqueles lados era comum as escolas serem construídas, também - além da sala de aula - com quarto, cozinha e sala, agregados que se transformavam na residência do professor. Pois, como eu ia te dizendo, certa noite, estava eu lá, em sono profundo, quando um barulho enorme me acordou.
Era um barulho estranho, com pausas mais ou menos cronometradas e - parecia – que, após o descanso de cada pausa, a próxima investida se iniciava com um vigor maior, mais alto “tchock, plock. Plém, tchok,tchok, plem....”
Isto ali, ao lado de minha cabeça...separado por uma tênue parede, que isolava a sala de aula e o quarto onde eu dormia. O barulho, com certeza, vinha de lá.
Senti medo e susto com aquele barulho desconhecido.
Abrindo um parênteses: quando, uma vez, contei isso para as minhas filhas, elas logo perguntaram: mas, porque você não telefonou para a polícia? Incabível, no mundo delas, uma vida sem telefone. Fecha o parênteses.
Tentei dormir...Não dava. Acendi a lamparina e me pareceu que, com a luz da lamparina acesa em meu quartinho, os intervalos entre os diversos "movimentos" da sinfonia diminuíam. O jeito era enfrentar a "coisa": podia ser um saci, uma mula sem-cabeça ou o capeta.
De lamparina em punho, atravessei a cozinha, a salinha e ...coragem...abri a porta da sala de aula.
O barulho se repetia intermitentemente. Aguardo outro “movimento” do concerto, para localizar sua origem, e descobri: um morcego havia caído em uma lata de óleo de vinte litros, usada para jogar lixo e para a criançada apontar lápis. O coitado do morcego tentava alçar vôo, mas não conseguia: culpa destas coisas de aerodinâmica, da física ...Virei a lata e o morcego foi para o teto e eu voltei a dormir.
Tudo isso prá te desejar uma BOA SEMANA.
Abraços,
Orlando.”
Só sei que o Geraldo não respondeu a este e-mail.
Educado, tinha o velho hábito de, a todos, responder.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

A MOLDURA




Éramos cinco irmãos homens, quase todos já rapazes ou homens feitos, e eu, o caçula, com meus seis ou sete anos, era considerado, por eles, uma espécie de “rapa do tacho.”
Todos se ocupavam com as pesadas lidas da roça: capinavam o cafezal, dobravam o milho, roçavam os pastos, tiravam leite e tudo o mais que se tem que fazer em um sítio sem trator.
De segunda a sexta, trabalhavam de sol a sol; aos sábados, costumavam trabalhar até a hora do almoço e, nestes dias, à tarde, iam a um córrego que passava perto de casa e tinha um poço onde tomavam banho. Às vezes, levavam-me junto, outras vezes não. Gostava de ir: lá eu aprendia a nadar, com duas cabaças amarradas às costas servindo de bóia, me afogava, desafogava e bebia água tentando dar minhas braçadas - estilo cachorrinho - no rasinho do poço. Enquanto isso, meus irmãos, pelados, tomavam banho e aproveitavam para conversar: combinavam em qual baile iriam, falavam das namoradas, do sanfoneiro, do cavalo que pensavam em comprar, riam, contavam piadas sujas e faziam gestos obscenos, que, às vezes, eu, ingenuamente, repetia – estimulado por eles, é certo - na frente de visitas, o que era motivo para, muitas vezes, minha mãe não me deixar acompanhá-los naquelas tardes de banho ao ar livre.
De volta para casa, banhados, reuniam-se debaixo da mangueira, onde dependuravam, mais ou menos na altura do rosto, um espelho; aí, continuavam a conversa iniciada no poço e faziam, cada um por sua vez, a barba, à navalha.
Aqui é que começa, mesmo, esta história.
O espelho que usavam para barbear tinha uma moldura de madeira marrom, toda cheia de rococós, e meus irmãos já haviam me prometido que, quebrado o espelho, a moldura seria minha: isto desde que, prudentes e prevenidos, não fosse eu, com meu estilingue, a dar cabo do mesmo. Eu acompanhava e assistia àquelas sessões de barbear, maravilhado e sonhando com a moldura que, tão logo o espelho quebrasse, seria minha.
Na mangueira, mesmo, o espelho não quebrou...mas, o Alfeu, um dos irmãos, ao retirar o arreio do gancho, na parede do quarto - esta sim, a sede permanente do espelho em questão -, por um descuido, falta de jeito ou pressa, esbarrou no dito, que lá se foi para o chão. Ele xingou e disse um monte de palavrões; mas era tudo o que eu queria; os caquinhos do espelho foram para minha capanga, junto com pedrinhas coloridas e outras bugigangas, e a moldura para minhas mãos.
Passei a ver o mundo com ela e, por isso, até apelido ganhei; não gostava dos apelidos, aquilo me chateava, mas “não faz mal”, pensava; não mais me separava da moldura e todas as belezas do mundo passei a ver através dela. Eu podia, com ela, montar e, se não gostasse, desmontar quadros, mudar o ângulo; gostava tanto que, mesmo em minhas saídas para as longas andanças à caça de passarinhos, levava a moldura comigo.
E ficou sendo sempre assim: estilingue no pescoço, embornal com pedras de atirar no ombro e a moldura nas mãos.
Um dos meus “quadros” favoritos era o vôo dos urubus. Penso que, talvez, por cair e tropeçar de tanto olhar para o céu para ver o vôo dos urubus, minha mãe me pôs medo, dizendo que eles poderiam me bicar os olhos se eu insistisse naquela mania de andar olhando para o céu para vê-los. Com a moldura, agora, podia, sem medo, olhar e olhar o seu vôo silencioso e sereno; acabou-se aquela história de antes, que era a de dar uma olhadinha rápida e, receoso, baixar logo a cabeça, com medo de levar uma bicada.
Além do vôo dos urubus, via, através da moldura, animaizinhos, formigas, pedaços de serras, nuvens, vacas, cavalos, cachorros, árvores ..., tudo do ângulo que me parecia mais bonito; e, assim, o mundo, para mim, virou um museu.
Para poder estudar, fui morar na casa de uma irmã, onde, distante uns seis quilômetros, tinha uma escolinha.
“Estudar é preciso” diziam meus pais...assim fui para a casa de minha irmã e para a escolinha com minha moldura, meu estilingue e minha capanga de carregar pedras. E foi mais um mundão de “quadros” que descobri; passei a ter um interesse maior por pássaros, águas e por pedras.
Os apelidos, por conta da moldura, continuavam. Na escola, pelas crianças maiores que eu, as primeiras ameaças de que quebrariam ou tomariam a moldura, se eu não fizesse isso ou aquilo.
Continuei firme: principalmente se o lugar fosse novo e desconhecido, carregar comigo a moldura era vital. E eu, considerado por todos um menino inteligente e obediente, era chamado de “teimoso” e “meio bobo”, quando o direito de carregá-la me era negado. Aí teimava e me emburrava.
Mas, mesmo assim, veio a primeira proibição. Em um sábado, deveria acontecer, na igreja da cidade, o casamento de uma prima. E eu lá, todo de roupa nova, banho tomado, já sentado na charrete que nos levaria à cidade, quando vem minha irmã: “não, não pode levar isso com você, não”; e rápida, antes mesmo do primeiro “por que?”, “é pecado, e o padre não deixa”. Não teve jeito e foi assim que vi, pela primeira vez em minha vida, um casamento na igreja. Foi bonito e eu, maravilhado com a cerimônia, com o vestido branco da noiva, com as hortências que enfeitavam o altar, lamentava: “com a moldura, acho que veria coisas mais bonitas ainda.” Depois do casamento teve festa, comi bolo com glacê, bala de coco e voltamos para casa, já de noitinha.
Antes de deitar, coloquei, perto da cama, meu estilingue, minha capanga e minha moldura; no dia seguinte, logo cedo, queria sair para caçar passarinhos e ver, com minha moldura, um distante trecho do Córrego do São Bom Jesus. A moldura - passei a acreditar - também dava sorte na caça. Só naquele dia matei uma jacutinga, uma juriti e duas rolinhas, garantindo a mistura do almoço e aliviando a consciência pesada: matar passarinho para comer não era pecado.
A escolinha em que estudava fechou e tive que ir para outra, que ficava longe, depois do sítio do Biazoli.
Nesta nova escola, a professora, normalista e “dona da cadeira”, implicou com minha moldura.
Frente a ingênua, mas firme resistência, impôs condição: podia até levá-la para a escola, mas, chegando lá, que a colocasse dentro do embornal onde guardava os cadernos. Não podia usá-la na sala de aula e “muito menos durante o recreio”, disse ela.
A taboada do sete sempre foi, para mim, uma cruz. Decorava que decorava, estudava que estudava, mas, se a pergunta fosse salteada, errava sempre; sabia recitá-la começando do “7x1” e, também, mesmo de sopetão, achava fácil o “7x5”; mas nunca sabia o “7x8”, o “7x3”, o “7x9”; se era para resolver problemas, ou fazer as “continhas”, eu começava do “7x1” e, aí, corretamente, ia até onde interessava e acertava as contas ou os problemas. A professora resolveu que a culpa era da moldura: me deixava desatento, avoado, meio abobado.
Uma tarde, após o recreio, chega a hora de “tomar a taboada” e foram, logo, duas respostas erradas, consecutivas. Uma fúria inexplicável tomou conta da professora normalista: sem mais nem menos, apoderou-se de minha capanga e, histericamente, quebrou a moldura, atirando os pedaços para o teto, em mim e no lixo. Um ódio estúpido saía de seus olhos: os seis meses em que tinha suportado a moldura haviam, enfim, para ela, terminado.
Minhas pernas finas e empoeiradas ardiam pelo calor das varadas de marmelo. Impassível, acuado, senti uma revolta intensa apoderar-se de meu corpo frágil.
De volta para casa, com meu estilingue e sem minha moldura, pensava em outras formas de, do meu jeito, ver o mundo. Enquanto pensava, comecei a recordar, a reviver a forma da moldura; aí então, meio sem querer, usei os dedões e os indicadores das duas mãos e fiz, no ar, uma moldura; não ficou boa, assim meio ovalada, mas, mesmo assim, com ela acertei um ângulo para ver um cacho de flores azuis do jacarandá mimoso, deu certo e me animei. Comovido, acertei melhor os dedos das mãos, arredondei um pouco mais a moldura e, protegido por ela, vi o vôo de um bando de urubus, que, obedientes, não desceram para bicar meus olhos, me dando tempo para, calmamente e sem nenhum receio, vê-los em seu silencioso e harmônico vôo.
Pronto, resolvido: “esta minha moldura nova ninguém percebe, só eu, mesmo, é que a vejo. Nem apelido vão conseguir botar em mim.”
Com ela, vi, pouco depois, um touro bravo no pasto do Seu Izidoro, e, lá longe, a escolinha e a casa do seu Tó Diniz, onde morava a professora.
Me deu uma vontade grande de mijar. Antes, mirei bem a casa do Seu Tó e, como meus irmãos haviam me ensinado, apontei bem o pinto em direção à casa e gritei:
“Oh! Prá você, sua cagona”!!!
Assim, vingado, mijei, guardei o pinto, arrumei as calças, catei minha sacola com os cadernos no chão e voltei para casa.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

CAPRICHO ITALIANO...saudades do José Américo.



Comecemos pelo começo, como dizia meu tio Olímpio.
Assim: minha amizade como o José Américo teve início quando ele “entrou” para o grupo de coroinhas. Antes disso, até pelo pequeno tamanho da cidade onde morávamos, claro que nos víamos e já havíamos até mesmo jogado futebol juntos....mas, amizade mesmo, forte e carinhosa, teve início quando, autorizado pelo Frei Elói, José Américo se juntou aos coroinhas, ou, aos “ajudantes do padre”, como, maldosamente, alguns colegas mais velhos se referiam a nós.
Por ser coroinha há mais tempo, por já saber responder a missa em latim e conhecer todas as diferentes funções dos coroinhas nas diversas liturgias, fui encarregado de ajudá-lo em sua “iniciação”. Nossas “batinas” ficavam, nos fundos da sacristia, presas em ganchos próximos e, assim, a preparação para ajudar a missa, a reza ou uma outra cerimônia religiosa já nos colocava um perto do outro.
Tínhamos por volta de doze ou treze anos e cursávamos a segunda série do antigo Ginásio Estadual.
Das brincadeiras na sacristia, antes e, às vezes, durante e após as cerimônias religiosas, passamos a nos encontrar pelas manhãs - já que, no período da tarde, estávamos na escola - para jogos, caçadas, conversas ou outras estripulias.
José Américo e seu irmão, o Riquinha, eram órfãos de pai e tinham uma irmã, a Ritinha, à época com seus dois anos e pouco, nascida do casamento de sua mãe e seu padrasto. Os dois, José Américo e Riquinha, tinham como obrigação cuidar da Ritinha durante as manhãs. Assim, se íamos nadar no sítio do seu Sílvio lá ia Ritinha conosco...e, mesmo quando íamos nadar no fundo, perigoso e longínquo Poço da Cachoeira, Ritinha dividia as nossas costas, onde, de cavalinho, a transportávamos, e, enquanto dois nadavam, um tinha que ficar a tomar conta da pequena.
Nos treinos do time infantil de futebol, José Américo começava a despontar: jogava na ponta direita e tinha um etilo de jogar alegre, rápido e elegante.
Estranhei a falta de José Américo na reza de uma quarta-feira em que eu e ele estávamos escalados para ajudar o frei Elói. Não foi à escola na quinta, faltou também na sexta e ao treino do “infantil” que tivemos no sábado; a doença que o atacara devia ser mesmo grave, pensei.
Na missa das 6:30h de domingo, sua ausência continuou a pesar: vesti minha batina e fui ajudar a missa. No finalzinho do sermão, Frei Elói, após suas recomendações e louvores de sempre, falou a todos os presentes da visita que fizera ao José Américo, confirmou que era tétano a doença que o acometera e chorou ao repetir o diálogo que tivera com seu coroinha:
- “Frei Elói, será que vou para o céu?”, perguntou José Américo.
- “Você já está no céu, meu filho”, respondeu o padre.
Choramos todos, seus colegas no altar e penso que todos os fiéis que estavam naquela missa.
Frei Elói continuava a sua função de “dizer” a missa, embora não conseguisse conter sua emoção... O “confiteor” foi entremeado de soluços e, na hora da distribuição das hóstias, percebi claramente sua comoção e o sentimento geral de tristeza dos fiéis.
José Américo morreu na terça feira seguinte àquele domingo.
Seu sepultamento foi em Patrocínio Paulista, ao lado de seu pai, que lá estava enterrado, e foi organizada a participação de seus colegas de classe na cerimônia. Fomos, após o almoço, de Pedregulho para Patrocínio Paulista, em um caminhão, todos uniformizados ....
O velório foi na casa de um tio seu e, em fila, todos pudemos render nossa homenagem ao amigo. José Américo estava vestido, como nós, com seu uniforme de calças e camisa caqui e gravata preta. Tinha nas faces uma expressão de muita dor: boca levemente aberta, com os dentes um pouco à mostra, não para apontar seu sorriso permanente, mas, sim, demonstrando a dor que a doença que o acometera lhe causara e a saudade de abandonar, tão cedo, a vida amada.
Na hora do enterro, Jaime, excelente músico, estava a postos, com seu trompete, naquele dia, enfeitado com um lenço preto, em sinal de luto.
O sol se preparava para se por quando o caixão foi baixado à terra. Jaime empunha o trompete e inicia o toque, o rosto vermelho pelo esforço que a melodia exigia e as bochechas enormes cheias de ar, impingindo a todo o cemitério o som de uma melodia triste, linda, inesquecível.
Nos dias seguintes, no Ginásio, todos nós a assobiávamos ou a reproduzíamos, em “bocacuse” ...
E os anos se foram...
A melodia continuava gravada em minha mente, cheia de emoções, embora , muitas vezes, quando tentava assobiá-la, não me recordava.
Já casado, ganhei, em uma festa de amigo secreto de final de ano, um LP do Tchaikovsky, que, além da Patética, sua sinfonia número seis, continha a abertura do Romeu e Julieta e o Capricho Italiano. Conhecia e gostava muito da Patética, já tinha ouvido a abertura do Romeu e Julieta e não conhecia o Capricho.
No dia seguinte, minha surpresa e emoção, ao ouvir o Capricho: o início da peça me levou de volta a Patrocínio Paulista, ao enterro, ao amigo, à volta do enterro para Pedregulho, no caminhão, pelas estradas empoeiradas, em uma noite sem lua, muito escura. Era a melodia que Jaime havia tocado no enterro do José Américo
Contei a história à minha mulher, que chorou. Choramos...

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Em uma recente tarde de sábado, segui rumo para um dos meus programas favoritos: um concerto na Sala São Paulo, sede da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Integrando o programa, como peça de abertura, o Capricho Italiano, de Pjotr I. Tchaikovsky.
Já imaginava as emoções, saudades e paisagens que o Capricho me traria naquela tarde de concerto. Assim, me preparei, com o peito aberto, para voltar a ouvir o trompete do Jaime, em Patrocínio Paulista, jogar futebol com o José Américo, ouvir sua gargalhada após as travessuras que, juntos aprontávamos, rever seus dentes, em seu sorriso alegre e mostrando tanta dor no dia de sua morte. A melodia do trompete, que tanto me emociona, dá início ao concerto daquela tarde.
Estava, ainda, remoendo essas emoções quando tem início a peça seguinte e seu início me lembra um sino a tocar: dém ...dém...plém...plém...
Instantaneamente, surge outra história.
Na igreja de Pedregulho, onde éramos coroinhas, havia dois sinos em sua torre. Um deles, chamava os fiéis para cerimônias mais simples, como a missa das seis, as rezas noturnas e os “benzimentos” de defuntos. Cada uma dessas cerimônias exigia, claro, um ritmo e um badalar, e o manejo desse sino era fácil e leve porque a corda que o acionava estava diretamente ligada ao pêndulo. O outro, anunciava cerimônias menos triviais, como a missa das nove, aos domingos, ou a missa do galo no final do ano, e era de difícil manejo; suas badaladas eram originárias do giro que o mesmo tinha que dar sobre si mesmo, o que exigia muita força física para fazê-lo badalar. Os coroinhas menores, eu e o José Américo entre eles, não tinham força e nem autorização para fazê-lo.
José Américo resolveu, então, inovar. Assim como renovava o futebol com seus dribles fáceis e desconcertantes, na ponta direita, resolveu que poderíamos, tanto ele como eu, tocar aquele pesado sino de cerimônias mais complexas. Na ponta da corda daquele sino, havia um pequeno pedaço de madeira, que servia de apoio para as mãos, e a inovação deu-se aí: ao invés de apoiar as mãos, José Américo montou na madeira, foi até uma escada lateral, apoiou-se nos degraus e, como em um balanço, soltou o corpo e, gostosa e sorridentemente, ia e vinha pelo ar, com o sino tocando a todo vapor.
Acabou-se, ali, naquela manhã, convidando os fiéis para a missa das nove, a inveja que tínhamos do Ataliba, do Dutra, do Lúcio, os quais, até aquele momento, eram os únicos, do grupo de coroinhas, autorizados e capazes de tocar aquele sino.
Frei Elói só estranhou o ritmo...Como o sino era muito pesado, quando normalmente tocado, as primeiras badaladas tinham um ritmo lento e continuavam, em um crescendo, até que o seu embalo o tornava mais leve. Só a partir daí é que o dém...de...lê...lem...mantinha-se constante até o seu pesado término.
Naquela manhã, o dém...de...lê...lem...já iniciou rápido, em um delicioso “alegro”.
Assim, quando estava ainda a me recompor do Capricho, vem lá uma outra avalanche de emoções, de recordações da infância e do amigo querido.
Casualmente, naquele mesmo fim de semana, a casa estava repleta, com a família reunida: minha mulher, nossas duas filhas, seus companheiros e nosso netinho. Na manhã de domingo, após o café, coloco o Capricho Italiano no CD player e conto a todos a história do José Américo e da emoção que havia sentido, mais uma vez, no concerto do dia anterior. Choramos todos, sob o olhar de pouca compreensão do pequeno Antônio, agora com a idade que tinha a Ritinha àquela época, e que, de forma simples e graciosamente infantil, resolveu nos consolar:
- “Não chóia...mamãe tá aqui.”

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

VAI GRAXA AÍ, DOUTOR?


Dois sisudos “nãos” a dois convites para engraxar os sapatos me fazem refletir: será que meus sapatos estão tão sujos assim ou é a falta de fregueses? Olho para os pés e os sapatos estão a meio termo: um pouco sujos e sem nenhum brilho. Cedo ao próximo convite e, com as pernas cansadas, solto todo o peso do corpo, gostosamente, na cadeira do velho engraxate.
Antes de oferecer o jornal ou a velha revista, o engraxate, já cinqüentão, desamarrava o cadarço dos sapatos e, à queima roupa, pergunta:
-“O senhor é padre?”
Rapidez de raciocínio não é o meu forte. Normalmente, sofro com piadas, das quais rio falsamente na hora em que é contada, e só depois, em casa ou no ônibus, relembrando-as, as entendo, e aí sim, fora de hora sorrio; o que parece – quando ocorre no ônibus - sinal de loucura ou demência para os outros passageiros. Em casa, quanado rio fora de hora, já estão acostumados: “contaram piada prô pai”.
Naquele dia, não. Fui rápido:
-“Ô louco, como o senhor adivinhou?”
Logo após, contente com a inesperada agilidade que tive - mas sempre muito exigente comigo mesmo - pensei que em vez de “ô louco, como o senhor adivinhou?” – parece coisa do Faustão – deveria ter dito: “Por Deus, meu filho, como você adivinhou?”
Entretido lá com os cadarços dos sapatos, o engraxate fica quieto. Aguardo e, alguns segundos depois, insisto:
- “E então, meu filho, como você adivinhou?” Reparem bem no “meu filho”.
- “Sei não. O jeito. A cara boa. O senhor tem um jeito sincero, de honesto, de padre.”
Em dúvidas sobre a continuidade ou não do diabólico plano que tramava, fui buscar forças em uma história do Monteiro Lobato. Chamado sempre de doutor, por ser advogado, certa vez foi – altas horas da noite - convidado para acudir uma parturiente. Ele foi e fez o parto. Coragem para tanto eu não teria, mas o caso aqui é bem mais simples. Daí:
- “O senhor é católico?”
- “Com a graça de Deus, sim. Católico e devoto de Nossa Senhora de Lourdes. Em minha família todos crentes e devotos, mas não desses crentes do bispo Placebo, que rouba dos pobres. Crente e temente a Deus, da antiga e verdadeira Igreja Católica Apostólica Romana, com muito orgulho e com a santa graça de Deus”.
- “Praticante?”
- “Bem, ultimamente nem tanto. Bebo muito aos sábados à tarde e amanheço aos domingos com uma dor de cabeça desgraçada. Tem também um pouco de preguiça, mas vou parar com isso. Domingo que vem já vou. Gosto da missa das sete. A igreja da Vila Formosa é perto de casa”.
Os sapatos começavam a ter um outro aspecto. Velozes, com ritmo, a escova e os panos davam nova vida a eles.
- “Ah, na Vila formosa, e quem é o pároco lá? Talvez conheça.”
- “O nome não sei, me esqueci. Mas é um velho italiano. Sei que é italiano pela fala diferente na hora do sermão. Toda vez que escuta, minha velha chora. Teve uns tempos que eu pensava que chorava de arrependimento e brigava com ela, depois, em casa, por causa de seus pecados que eu queria saber quais eram. Ela dizia que não chorava por pecado nenhum e que era de tanta beleza do que o padre falava.”
- “Crente em Deus, sua velha.”
- “Ah. Ela é sim. Quando eu não vou, vai sozinha à missa: reza, confessa e comunga. Eu faz tempo que não confesso. Muito tempo, mesmo!”
- “E por que meu filho? É tão bom confessar seus pecados, ter a alma limpa e a consciência tranqüila para receber o corpo do Senhor.”
Novamente muito ágil, sem muito pensar, resoluto, o velho engraxate:
- “O senhor me confessa, aqui?”
Enquanto me preparava para responder que sim, que eu o confessaria ali mesmo na praça, puxei pela memória na busca do rito da confissão. O pensamento voou para os velhos tempos lá no interior, ainda meio criança e meio adolescente. Uma pequena fila no confessionário e, quando chegava minha vez, ajoelhava, fazia o sinal da cruz e, sempre rápido, sem nenhum cuidado com a pontuação, mas muito com a pressa, desembestava meio de cor: “Faz uma semana que não confesso; briguei, xinguei, desobedeci meu pai, desobedeci minha mãe, fumei escondido, pequei contra a castidade”. O “pequei contra a castidade” funcionava como uma campainha para acordar o sonolento padre que, também automaticamente, penso eu, interrompia minha ladainha...
Mas vamos voltar à praça; todo constrito respondi:
- “Sim, meu filho, te confesso. Quais são os seus pecados?”
Talvez pego de surpresa , agora um pouco hesitante, o velho olhou para os lados, olhou para mim, depois olhou para trás buscando uma sombra ou alguém que se aproximasse e o livrasse daquela confissão a céu aberto. Não dei tréguas, curioso que estava para saber dos pecados do engraxate. Monteiro Lobato fez pior, me desculpava.
Mas, também não querendo ser pego de surpresa, teimava em relembrar minhas velhas confissões: o “pequei contra a castidade”, que funcionava como campainha, era sempre rápida e maquinalmente interrompido pela pergunta “Sozinho ou acompanhado?” Se sozinho, a confissão continuava sem interrupção. Se acompanhado, vinha lá outra rápida pergunta: “Com pessoa ou com animal?”
- “Cometi um pecado grave, senhor padre, tenho vergonha de contar”, humildemente iniciava sua confissão o nosso engraxate.
Era só estimular:
- “Fale meu filho. Deus é bom Pai e sabe perdoar. Ele ama seus filhos, vamos, coragem. O que te envergonha? Está mesmo arrependido?”
- “Estou sim, arrependido e envergonhado. Foi na casa do vizinho, um roubo. Precisar não precisava, podia passar sem, mas...Sei lá. Sim eu roubei e sei que é pecado. Me perdoa?”
Aí fui eu que me senti pego de surpresa e precisava ser rápido. Estava imaginando lá umas traquinagens sentimentais do velho e lá vem ele com roubo. Não tinha experiência em confissão e absolvição de roubos. Nos pecados contra a castidade, me lembrava, a absolvição e a penitência sempre variava em função do “sozinho” ou “acompanhado”; se “com pessoas” ou “com animais”; assim como o número de vezes que o pecado havia sido cometido. No caso de roubo, tinha pouca ou nenhuma prática; no máximo, uns cachos de uvas na parreira do seu Edmundo e ainda mais junto com o seu filho, o Nenzinho. Roubou o que, pensava: uma bicicleta, uma banana, uma peça de roupa, ou sei lá o que? Cada roubo tem seu peso. No caso de atentados contra a castidade, se a coisa era “sozinho”, uns dois pai nossos; já “acompanhado”, a penitência era maior: quatro ou cinco pai nossos, umas dez ave marias e, às vezes, segundo o humor do padre, uma salve rainha.
- “Deus há de te perdoar, filho. O que você roubou?”
- “Que Deus me perdoe, tenho vergonha, senhor padre, roubei lá do meu vizinho umas garrafas de pinga. Sei que não devia, mas, na hora, sem pensar, roubei”.
- “Quantas garrafas, filho?”
- “Da primeira vez, uma, na segunda vez, duas...Não devia, mas fiz. Estou arrependido”
Fiz então algumas contas da penitência, mas, para ser justo e correto, precisava de mais precisão de informações. Uma idéia seria multiplicar o número de garrafas por cinco e o resultado seria o tanto de ave marias; o número de vezes do pecado definiria os pai nossos.
- “Então, filho, quantas vezes você cometeu este pecado?”
- “Bastante; meu vizinho tem um bar. Preciso parar. Vou parar com isso, padre me perdoa?”
- “Meu filho, reze cinco pai nossos, doze ave marias, um salve rainha e faça bastante sinal da cruz; um sinal da cruz para cada vez que você roubou. Fique com Deus, seus pecados estão perdoados.”
Sapatos limpos, brilhantes como novos, pago o velho engraxate e me despeço.
- “Adeus, filho”
Outra vez muito rápido, o velho engraxate toma minha mão e a beija:
- “A benção, senhor padre”.
Da banca do engraxate até o ponto de ônibus dava lá uns quarenta ou cinqüenta metros. Que porco e sujo sou. Já pensou se, baseado nesta falsa confissão, esse velho senhor vai à missa e comunga? Deixa de besteira: ter confessado seus pecados a mim, ao Dom Evaristo ou ao Cônego Arnaldo é tudo a mesma coisa; pior quem fez foi o Monteiro Lobato. Volto e confesso ao engraxate a minha farsa? Não, tá louco, o velho vai virar bicho. Deixa para lá. Não dá. Se não falar com ele, penso que vou ficar com esta história me atormentando até sempre. Porque fiz esta besteira de confessar o engraxate? Poderia ter lido jornal, olhado a revista de mulher pelada que sempre tem nessas bancas, mas não, fico aí sabendo da vida das pessoas; saber da vida das pessoas tudo bem, mas não do jeito que fiz. Volto e falo. Volto não, sei lá como vai reagir o velho.
Volto.
O velho engraxate já está lá todo enturmado com seus colegas, cantando e fazendo samba com as escovas em suas caixas. Acho que até já esqueceu a confissão; ou não, o que é pior: crente de estar com a alma limpa, canta e se prepara para, amanhã, ir à igreja e comungar com sua velha.
- “Queria falar com você. Vamos tomar um café?”
- “Café não, mas uma pinguinha, sim, eu aceito”; e já estava o velho me arrastando, parando o trânsito da avenida para que, rapidamente chegássemos ao bar do outro lado.
- “Oi, Baiano, uma branquinha para mim e um cafezinho aqui prô seu vigário” e, me olhando de soslaio, “posso também uma cervejinha?” e já ordenando: “Dá também uma meia brama. Hoje, aqui o seu vigário está oferecendo.”
A pinga bebeu rápido, cuspiu no chão um pouco que era pro santo e começou a por a cerveja no copo. Meu pingado estava quente.
- “E aí seu padre?”
- “Não sou padre”.
- “Eu sabia.”
- “Como sabia? Até confessou pra mim que roubou pinga de seu vizinho?”
- “Que vizinho seu padre. Moro em pensão lá no Bexiga, que vizinho o que? Tudo brincadeira, nem casado eu sou” e, sempre muito rápido, deu um "tchau" para o Baiano, um outro para mim e atravessou a avenida em direção a roda de samba.
Acabei de tomar meu pingado, paguei o café, a cerveja e vi meu ônibus se aproximando. Corri, quase fui atropelado, mas atravessei a avenida a tempo de tomá-lo.
Alguma risada devo ter dado porque a senhora vizinha do banco, sorrateiramente, me deixou sozinho e foi ficar de pé ao lado do cobrador.









sábado, 1 de novembro de 2008

CAMINHOS DA FÉ E DA LUZ: MEMÓRIAS, CASOS, DIÁRIO DE BORDO...






São estranhos os nomes das cidades pelos lados dos caminhos da Fé e da Luz: Manhumirim, Manhuaçu,Tocos de Mogi, Carangola, Tombos, Luminosa...

No ônibus, em Manhumirim, de volta para casa do Caminho da Luz, sentei-me ao lado de um mineiro, senhor de seus 65 anos: viúvo, tagarela, só parava de falar ao dormir e vinha para São Paulo visitar um filho. Havia perdido um braço ainda criança e, ao que me parece, não tinha muito controle do toquinho que sobrou, que, quando o dono dormia e relaxava o corpo, me cutucava o tempo todo. E o homem falava, falava e falava, assuntando os mais diferentes ocorridos com o sotaque e a cordialidade dos homens do interior de Minas. Quando resolvia mudar de assunto dizia: “e por falar em água”...e vinha história de chuvas, minas d´agua, raios, colheitas! Bastava ouvir e concordar: AM RAN! UM RUM!!! SIM SENHOR!!! A atenção à conversa às vezes era pouca: me encantava o sotaque e, mais que isso, os diferentes assuntos e a maneira como os casos eram contados, que me levavam – como em um surto de regressão hipnótico – à infância, às casas e aos “causos”, às escolas, às amizades, aos ares e à vida vivida na divisa entre São Paulo e Minas. “Sabor de infância”, como diria Eva, a minha mulher.

E por falar em “sabor de infância” - que lembra comida - vale contar das comidas nestas andanças. Come-se bem nestas caminhadas: comidas simples, quase sempre feitas e cheirando banha de porco. Nos restaurantes daquelas pequenas cidades, há, nos dias de hoje, a tal de “comida caseira”: prato que consiste em arroz, feijão, salada – pouca -, um legume e a “mistura”, que pode ser escolhida entre bife de porco, de galinha ou de vaca. Em Tocos de Mogi, além destas opções, havia a deliciosa lingüiça de porco, a escolhida por mim, claro.

Havia tempos, e bota tempo nisso, em que não ouvia mais a palavra “mistura”, muito comum em minha infância. “Mistura” era a carne, quase sempre muito pouca, o legume – quase sempre o chuchu, ou a abobrinha, ou, mesmo, a abóbora madura - que eram “misturados” ao básico arroz, feijão e farinha.

Li, certa vez, um artigo no qual o autor dissertava a respeito das tradições culinárias da fartura e opulência versus a tradição da divisão, da restrição, da parcimônia. A cultura culinária da parcimônia, do pouco, da “mistura”, é a cultura do frango matado no quintal e que, somado ao quiabo, tinha que ser dividido por toda a família: a coxa grande e carnuda para o pai, o peito para o tio, a moela para o irmão mais velho; sobrava, para os menores, misturar ao arroz e feijão, os pés, a cabeça e o pescoço... Quer saber de um sabor de infância, difícil de ser repetido agora na velhice? No caldo do fundo da panela, onde o frango havia sido cozido, colocava-se bastante cebolinha verde, misturava-se bem, para depois ser jogado sobre uma generosa porção de farinha de mandioca: quer coisa mais “sabor de infância” que isso? Será que o “sabor de infância” é, na verdade, fruto da culinária da parcimônia, da divisão, da “mistura” tão dividida? Tem horas em que acho que sim, que o “sabor de infância” foi roubado pela cozinha da fartura; mas o “sim” da certeza dura pouco: o dia de fazer pamonha era dia de fartura, muita, aliás.
Agora, aproveitando ainda o assunto “sabor de infância” e para assuntar o escrito de que foi a “fartura” que acabou com estes sabores, vale contar dois casos verdadeiros, acontecidos, mesmo. O primeiro, de um sobrinho em uma viagem que fizemos a Santos, com direito a posterior passeio para “pagar promessa” em Aparecida do Norte. Ao saber que, pela primeira vez na vida, comeria em um restaurante, Zezinho foi taxativo: no restaurante, só queria comer um “monte” de coxinhas de frango: nada de arroz, nem feijão, muito menos pescoço e pés; empanturrar-se de coxas de frango era o seu desejo. Outra história de verdade foi a de uma minha cunhada, me lembro bem, que uma vez disse que seu sonho seria, um dia, poder comer maçãs sem se preocupar em dividir: comer, comer e comer maçãs. Eu, já adulto e a trabalho, em São Luiz do Maranhão, fiz o mesmo com camarão: nada de comer camarão como mistura; queria, e o fiz, me empanturrar de camarão; até hoje me lembro o tão bom que foi.

Voltemos às “misturas”: em Catuné, comemos um palmito refogado, colhido de pouco, e, em Alto Caparaó, comemos uma taioba que dava gosto: mistura com fartura e sabor de infância; já em Estiva, o café da manhã foi à base daquele biscoito de polvilho assado, grandão, meio duro, saborosíssimo.

E já que o assunto é comida: em Borda da Mata, no Caminho da Fé, chegamos ao hotelzinho, no final de uma tarde de domingo. Saímos à procura de um lugar para comer: eu para um lado e o Pablo, meu companheiro de viagem, para outro. Descobri um restaurante que estava fechado e o Pablo descobriu um bar perto da praça principal da cidade, que tinha uma televisão com canal por assinatura e que – logo, logo - iria transmitir um jogo do Corintians. Fomos para lá. O bar virou um estádio: cadeiras colocadas em fileira, muita cerveja, pinga, petiscos e fumaça de cigarro. Comemos frango assado, destes de televisão de cachorro, com pão, até que eu, desatento ao jogo na TV, percebi que havia no balcão pedaços de chouriço fritos, pousados sobre uma manta de farinha de milho: negros, feios, com as manchas transparentes de gordura em seu miolo mole. Não há nada mais “sabor de infância” que chouriço: dá para ouvir os berros aloucados, estridentes e alucinantes do porco sendo morto pela faca de ponta, sentir o clima de festa dos “dia de matar porco”, o cheiro de banha, de torresmo. Foram muitos os sabores, os cheiros e recordações de infância trazidas pelos vários pedaços de chouriço saboreados naquele bar. Além disso, o Corintians estava ganhando o jogo: tem coisa melhor que isso?

Em Faria Lemos, no Caminho da Luz, há um restaurante, penso que o único da cidade, chamado de FEIJÃO SEM BICHO. Marqueteiro, o dono esparramou placas de seu restaurante ao longo da estrada. O Feijão sem Bicho serve moqueca de cascudo, cascudo frito e traíra sem espinha. Dado o cansaço e à chuva que caia torrencialmente, escolhemos o trivial: comida caseira com bife de vaca. Pinga, cerveja, coca light e, para cumprir o ritual de “sabor de infância” que Minas sempre traz, pedimos uma porção de lambaris; e estes vieram fritos, envoltos em fubá de milho, sequinhos, gostosos de comer até a cabeça crocrante: croc, croc, croc!!! Eram tantos os lambaris douradinhos no prato fundo que nem pareciam “mistura”. Tempos modernos, de agora, de cozinha da fartura, de lambaris caçados em rede e não pegos um a um no anzol com isca de minhoca; a cada fisgada, o lambari chicoteando e prateando o ar com suas escamas: uma festa para o coração! Daí era o tempo de, com os dedos, cortar outra minhoca, iscar de novo o anzol e esperar. Tempos de infância, lerdos, preguiçosos, sem pressa e sem depois; tudo agora.

Mudar de assunto para não enjoar. Um pouco de diário de bordo.

Fizemos o Caminho da Fé, em seu percurso por Minas, em toda sua extensão: saímos de Águas da Prata e fomos parar em Campos de Jordão; o Caminho todo tem seu início em Tambaú e seu término em Aparecida do Norte. A parte que percorremos foi feita em duas etapas: a primeira, de Águas à Borda da Mata, nossa primeira experiência em caminhada longa; depois, numa segunda etapa, de Borda da Mata a Campos. Este trecho do Caminho da Fé é simplesmente maravilhoso; inicia-se “ladeando” a Mantiqueira e, depois, principalmente de Tocos de Mogi a Luminosa, penetra-se em seus fundões e a gente se vê cercado de Mantiqueira por todos os lados. Luminosa, por exemplo, uma pequena vila, com mais de mil metros de altitude, é cercada por altas, inalcançáveis, azuis e pedregosas montanhas. Em uma delas, em seu topo, o observatório astronômico de Brasópolis. Tivemos sorte; foram noites estreladas, céu azul, cheiro de ar, corpo cansado caído em cama limpa: depois de um dia de caminhada, um bem inestimável para a alma.

Ainda um pouco mais de diário de bordo. O Caminho da Fé tem sua origem em caminhadas de peregrinos à Aparecida do Norte para cumprir promessas por graças alcançadas ou para buscá-las; é isso, talvez, que leva o pessoal da região a respeitar, e muito, os caminhantes que fazem o Caminho hoje; há um certo clima místico envolvendo os peregrinos que, em sua grande maioria, faz o percurso motivado por questões religiosas. É um caminho bem sinalizado e que, no geral, permite sempre que se faça diariamente, em pousadas ou bares, as duas refeições tradicionais: almoço e jantar; assim, como os pernoites são em hotéis, pousadas ou casas de família cadastradas, não há necessidade de “matulas” nas mochilas. O Caminho da Luz exige um maior preparo físico porque as distâncias diárias a serem percorridas são, em média, maiores e há dias em que o almoço tem que ser levado na mochila; não é tão bem sinalizado, mas há, quando comparado com o Caminho da Fé, uma abundância maior de frutas nas estradas e maior facilidade de acesso a cachoeiras, riachos, corredeiras.

Contar um pouco do que as pessoas perguntam nas voltas destas caminhadas, ou mesmo durante as mesmas; responder perguntas e não ficar falando o que dá vontade. Por preguiça, é melhor resumir: não se passa fome, não se dorme em barracas no meio do mato, a maior parte do percurso é feito em estradas vicinais e não em trilhas e as pousadas são agradáveis, limpas e a custos muito razoáveis: em média, uma pousada com “janta”, cama e café da manhã fica em torno de vinte reais. Resposta à outra curiosidade muito perguntada: marcha-se, em média, de seis a sete horas por dia, sendo que, no Caminho da Luz, esta média cai para cinco ou seis horas, fazendo-se, em média, 20 a 24 quilômetros por dia. A segurança é absoluta: você caminha seis, sete dias e não há nenhum estresse, apenas cansaço físico. No geral, as cidades do Caminho da Fé são mais bonitas que as do Caminho da Luz: neste caminho sobressaem Tombos e Espera Feliz.

Caminhar é uma resposta ao prazer de falar consigo mesmo. Fica-se muito quieto, fala-se muito, bebe-se água destas em garrafinhas de plástico e nas bicas da beira da estrada; descansa-se à sombra de uma árvore ou à beira de um riacho para tomar fôlego ou só para descansar mesmo; cansa-se nas subidas e enche-se os olhos e ouvidos com tanta beleza do em volta: às vezes um mar de montanhas, às vezes o barulho rouco da cachoeira invisível, tão desejada; outra hora é o agudo som do canto dos galos e, vez ou outra, de ariscas de seriemas; e o dia se passa assim, devagar, muito devagar, sem pressa, pouco se importando de chegar e isso é o melhor! Chega-se sempre cansado ao fim do dia; aí então, é um dedo de prosa na pousada, na praça da cidade, no bar da esquina. O banho quente é o aperitivo para mais uma “janta” silenciosa, restauradora das forças e do ânimo. Deita-se cedo e aproveita-se para recordar os acontecidos: muitos.

Luminosa é um pequeno distrito no município de Brasópolis. Pertenceu a São Paulo e desgarrou-se deste estado para se amasiar com Minas Gerais, na revolução de 32. Tem mais cara de cidade mineira mesmo. Pouco depois de se passar pelo povoado de Canta Galo, município de Paraisópolis, vê-se do alto de uma vertente da Mantiqueira, lá embaixo, a pequena Luminosa, com seus mil e poucos metros de altitude: cara e jeito de uma cidade medieval européia. “Só que de gentios desrespeitosos deixaram do lado de fora os seus mortos”, pensei, ao ver, separado da cidade e fora dos muros inexistentes, o cemitério. No mais era só inventar com o pensamento o muro de pedra e lá estaria a medieval Luminosa. Era dia de festa religiosa. Cidade cheia de gente e de misturas improváveis nos dias de hoje: encontrava-se lá, na ruazinha única da cidade, estacionadas ao lado dos cavalos e das mulas, potentes motos “off road”; caipiras com suas calças justas, canivete atado ao cinto, chapéu de aba larga ao lado de fortes e ruidosos rapazes em suas indumentárias coloridas de percorrer velozmente trilhas com suas motos; por ser dia de festa, muitos bêbados nas ruas: alguns tentavam, em seus cavalos, acrobacias e peripécias para fazer bonito para as mocinhas, mas seus cavalos, obedientes e dóceis, mesmo cutucados pelas esporas afiadas e cortantes, reconhecendo o estado de seu dono, teimavam em andar a passos curtos e seguros, o cavaleiro cambaleando - com o sorriso de bêbado - todo torto em seu dorso. Na calçada, carros estacionados, com o volume do som o mais alto possível, tocando forrós acompanhados por bandos de jovens alegres e barulhentos. Perto da igreja, em um galpão improvisado, havia leilão para “arranjar fundos” para reformar a bela igrejinha de frente à praça. E jovens namorados se beijando na boca com muita sensualidade, pouco se importando com o mundo lá fora: puro prazer. Tinha de tudo em Luminosa.

A “janta” e o café da manhã estavam inclusos nos vinte reais a serem pagos na pousada de Luminosa. Muito simples e limpa, fica no andar de cima do bar do casal; naquele dia, o movimento aumenta e dona Neuza vai ajudar o marido: fritar frango e batata para acompanhar a cerveja dos motoqueiros e cavaleiros daquele domingo de alegria na pequena vila; “tem que se aproveitar o dia”, dizia; da janela da pousada se vê o difícil caminho do dia seguinte: serão por volta de quatorze quilômetros de subida forte. Hora da “janta”, que é servida na cozinha da família. Por causa da festa e para ajudar no bar, estava lá a mãe da Dona Neuza, que é intimada: “Mãe, janta com os moços para fazer companhia para eles.”

O cheiro de fogão de lenha e banha de porco, ser chamado de “moço” e a companhia da velha e comilona senhora aumentou o apetite. Uma repentina folga no bar deixou livre Dona Neuza, que, esperta, fez logo seu prato e, como minha mãe o fazia, comeu em pé, ao lado do fogão. Comida da “janta”: arroz, feijão, farinha de mandioca, salada de alface com tomates, chuchu, mandioca frita, bife de vaca e pedaços de leitão assado, arrematado no leilão da igreja por vinte reais - deliciosos.

Como, no dia seguinte, a caminhada prometia ser árdua, o recurso era sair cedo: foi o que dissemos à Dona Neuza, e tivemos a mais inusitada das respostas: “Meu quarto é este aqui. É só baterem na porta, me acordarem que faço o café rapidinho; vou deixar tudo arranjado.”
Na manhã seguinte, pela primeira vez em minha vida, estou eu lá batendo na porta do quarto para acordar e não ser acordado pelo dono do hotel; sono leve, Dona Neuza acordou rápido e mais rápido ainda fez o solicitado café sem açúcar, ou, em seu dizer, “café margoso”: palavra que há anos não ouvia.
Como disse um pouco antes, para chegar a Luminosa, passa-se por Canta Galo: um amontoado de quatro ou cinco casas em volta de uma igrejinha, a mais ou menos doze quilômetro de Luminosa. Canta Galo fica no estado de São Paulo, município de Campos de Jordão. O povoado é anunciado por um caudaloso ribeirão e uma placa “peixe frito” colada ao poste de energia elétrica. No povoado, dois “bares” com pequenas mesas de sinuca; em um, uma turminha de rapazes jogava e bebia, no outro, uns três ou quatro senhores bebiam e conversavam.

“Peixe frito hoje não tem, mas tem lingüiça”. E lá se vai um bom papo, regado a lingüiça: fininha, apimentada, feita com a tripa de porco. Papo vem, papo vai: de onde somos, porque fazemos a caminhada, quando saímos? Penso que, mais pela idade, somos focos de muita curiosidade e admiração.

Aí fala seu Alfredo, o dono do bar, um senhor gordo, ágil, forte e de um otimismo contagiante para os seus setenta e tantos anos: “Comercial hoje não tem porque a mulher foi para Luminosa rezar; estou eu e a filha só; se quiserem um prato feito, tem.” Quizemos. O seu Alfredo some lá para os fundos e se sente logo o cheiro de alho e banha de porco. Pouco depois, lá vem ele - gordo, balançando a barriga - segurando dois enormes pratos fundos, cheios e altos como as montanhas de Minas. No topo da “montanha”, uma omelete de um amarelo ouro, manchado com o verde escuro da cebolinha. Para segurar os pesados pratos, os dedos do seu Alfredo se enfiavam adentro da deliciosa comida: feijão, arroz, macarrão e o omelete delicioso - três reais. Enquanto comíamos, seu Alfredo contava de seus planos: abrir uma pousada, para receber os peregrinos do Caminho da Fé.

Você leu Cidades Mortas do Monteiro Lobato? Se leu, vale a pena ir a Consolação, há uns vinte e poucos quilômetros de Tocos de Mogi, para reverenciar o talento do velho Monteiro ao descrever as cidades mortas do Vale do Paraíba. Se não leu, vale a pena ir do mesmo jeito: sentir nos ossos e na alma o que sentiu o escritor. A cidade é o silêncio total: um silêncio que incomoda, que não descansa, silêncio de velório. Mesmo na principal rua da cidade, perto da igreja, há casas abandonadas, trincadas, cheias de musgos. Nada se escuta, não há barulho até que, de repente, o alto falante da igreja anuncia, para as quatro horas da tarde, a missa da padroeira. Volta o silêncio, o ninguém nas ruas, os cachorros na praça...

À tarde, sentado na praça frente à igreja, somos abordados por um morador que tem consigo um livro com a história de Consolação. Uma publicação simples, em “of set”, feita pela Câmara Municipal, com nome e foto de todos os prefeitos, presidentes da câmara e dos párocos – que hoje não tem mais – da cidade e mais um amontoado de dados: hoje, a cidade tem por volta de mil habitantes; no final do século dezenove, chegou a ter mais de cinco mil e a realizar, em um ano apenas, mais de duzentos batizados de cristãos e “ingênuos.”

Choveu bastante durante a tarde; o quarto onde dormimos era úmido e o clima de “fim de festa” da cidade contagiou-me: baixou uma tristeza melancólica e uma vontade de não falar e de ficar quieto até no pensamento.

Em Consolação, e também em Luminosa, é ansiosamente aguardada a volta de seus aposentados que, quando moços, de lá saíram para ganhar a vida em outros campos: casas serão reformadas, o jogo de damas e cartas na praça ganhará mais um parceiro e as “rezas” da tarde mais uma “puxadeira” de terço.

Em casa, mais tarde, vejo no Aurélio: “ingênuos” são os filhos de escravas beneficiados pela lei do Ventre Livre.

Ao silêncio triste de Consolação se opõe o barulho de Estiva e Paraisópolis...Burburinho na praça cheia de crianças correndo e brincando, de casais de namorados, de velhos de terno, passando apressados para não perder a hora da missa, pessoas nos bancos conversando, ouvindo o barulho...Fechava os olhos e ouvia o burburinho de vozes e sons e, apesar de ser um amante do silêncio, aquele mormaço de vozes, de berros e gritos, do som do alto-falante me fazia bem; me sentia como na pracinha de Pedregulho, aos domingos, logo depois da missa das nove. Muito bom. Caminhar é isso também.

Por falar em barulho, vou contar das sonoras gargalhadas dadas em Faria Lemos. Não sei se já disse antes, mas chovia adoidado no fim de tarde e início de noite, naquele dia. A pousada que ficamos era sobre um pequeno supermercado: mesmo dono. Roupas lavadas, banho tomado, a noite começa a aparecer e a fome vem junto com a escuridão. O restaurante indicado pelo pessoal da pousada era o único da cidade: o FEIJÃO SEM BICHO. Chovia torrencialmente. Uma sugestão do dono da pousada: pedir a comida por telefone. “Delivery”, sim senhor, serviço do Feijão sem Bicho, basta telefonar e logo, logo chega a “quentinha”: só que aí não teria a pinguinha, a cerveja, o papo, o cheiro de restaurante...Resolvemos ver se a chuva esmaecia um pouco: demos a São Pedro um prazo de meia hora.

Aproveitando o prazo de meia hora dado a São Pedro, tenho que abrir um parênteses, que é o seguinte: quando estive fazendo um curso no Japão, um dia qualquer por lá, resolvi comprar uma capa de chuva, que estava em promoção, para oferecer à minha mulher, quando de lá retornasse. Até hoje, a bendita capa não foi usada: ela lembra um pouco os ponchos mexicanos, feita de tecido a prova d´água, com capuz e tudo o mais: branca, cheia de bolinhas pretas. Pois bem: em minhas caminhadas, pelo pouco peso e pelo pouco espaço que ocupa, levo a tal da capa. Fecham-se os parênteses. Afinal, passaram-se vinte e cinco minutos, a chuva continuava e resolvemos ir ao Feijão sem Bicho, mesmo sob a forte chuva. Ponho, então, minha capa. À porta do supermercado, clientes e proprietários comentam a chuva e indicam a localização do restaurante: coisa de cinco ou dez minutos, dizem. Percebo que o Pablo mantém sempre uma distância de mim; não entendo o porque? Andados uns cinqüenta metros, vem lá o amigo espanhol com a pergunta:
“Não tinha uma capa menos “maricon”? Esta é demais, ainda com estas florzinhas...Não percebeu que fiquei longe de você? Era para mostrar que não tenho nada a ver com isso”

Gargalhada geral: um riso forte, incontido, saía do fundo do estômago faminto, atravessava todo o corpo e, quando chegava na boca, soltava um som que era o barulho de todo um corpo que gargalhava gostoso.

Chegamos os três no Feijão sem Bicho: Pablo, eu e minha capa de “maricon”. O dono do restaurante, que, naquele dia de semana e com aquela chuva toda, não esperava cliente nenhum, nos olhou desconfiado. Fui arranjar um local para pendurar minha capa. O estranhamento, disse ao Pablo, foi que, ao nos ver entrar, imaginou logo um casal de velhinhos e ficou intrigado ao ver que a “velhinha”, ao tirar a capa, era um velhinho; será que passou debaixo do arco íris? Mais um parênteses: não sei se vocês sabem, modernos leitores, mas quem passa debaixo do arco-íris troca de sexo: se for homem vira mulher e se é mulher vira homem; bom mesmo, quando se trata de arco-íris, é encontrar e alcançar seu começo: ele sempre sai de um pote cheio de ouro, por isso é colorido e tão bonito; fecha-se o parêntese. Era a senha para continuar a gargalhada de corpo inteiro. Rimos muito e jantamos bem. Da comida deste restaurante já contei, aquela do prato cheio de lambaris. Não choveu mais durante toda a caminhada.

Escrever, como caminhar, é também um jeito de conversar consigo mesmo: sonha-se, pensa-se, e o pensamento voa...Mas tem uma hora em que se tem que parar, e esta hora chegou, porque fim não tem mesmo.